sábado, 24 de setembro de 2011

Esquizoanálise do currículo

por Clermont Gauthier
em: Dossiê Gilles Deleuze. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.27 n.2 p.143-155, jul./dez. 2002
Resumo – Esquizoanálise do currículo Ao invés de definir currículo como sendo “isso” ou “aquilo”, este artigo pensa em termos de agenciamentos curriculares. Nessa perspectiva, não haveria, portanto, um objeto “currículo” ou um “ser-do-currículo” a ser explorado, mas um devir-x do currículo. Assim, currículo é aqui entendido da mesma forma pela qual Deleuze e Guattari concebem o inconsciente, ou seja, como máquina: que não pára de produzir, que é produzida por sua produção, cuja essência não se pode determinar a priori e que não pára de efetuar novas ligações. A intenção não é a de realizar uma análise totalizante do currículo, mas, antes, uma esquizoanálise do currículo. Trata-se, portanto, de propor três aspectos de um uso “menor” da pedagogia. O primeiro deles está ligado à desterritorialização do ofício de pedagogo; o segundo, à política; e, por fim, o tercero, ao agenciamento coletivo de enunciação.
Palavras-chave: currículo, Deleuze, desterritorialização, política, agenciamento coletivo de enunciação
O CURRÍCULO COMO AGENCIAMENTO
Podemos pensar num modo de conceber a idéia de objeto que não seja a habitual. Em geral, representamos o objeto como um ser, isto é, como alguma coisa de contornos limitados, como alguma coisa que existiria em si, na realida¬de, e da qual poderíamos fazer uma imagem. Tudo se passa como se pudésse¬mos determinar a identidade desse objeto, mostrar de uma maneira clara e ine¬quivocamente aquilo que, legitimamente, faz parte dele e aquilo que não faz. Em suma, pensamos, em geral, que é possível apreender a essência do objeto. Trata¬se sempre de escolher entre essas duas alternativas: ou esse objeto é "isso" ou ele não é "isso". Não existe uma terceira possibilidade. Por exemplo, nessa pers¬pectiva seria possível determinar a essência do objeto mesa. Haveria alguma coisa que seria uma mesa e alguma coisa que não o seria, e essa distinção poderia ser claramente estabelecida. Haveria, de qualquer maneira, uma forma "mesa" que poderia ser preenchida por todas as variedades possíveis de mesa. Ou ainda, um gênero "mesa" que compreenderia uma gama de espécies de me¬sas ou um gênero currículo que compreenderia toda uma variedade de espécies de currículo. O gênero "currículo" seria o currículo concebido como domínio de estudo, e as espécies de "currículo" seriam todos os discursos sobre o currículo construídos no interior dessa categoria englobante, quer se trate de programas escolares específicos, quer se trate de discursos sobre uma ou outra dessas partes, tais como os discursos sobre a implantação e a avaliação de programas escolares, etc. Poderíamos, dessa forma, dizer, de maneira precisa, de quê se ocupa o currículo, ou o que é uma questão curricular e o que não é.
A essa primeira concepção de um objeto podemos opor uma segunda. Em vez de pensar em termos de gênero e de espécie, inverteríamos essa concepção e provocaríamos uma explosão do objeto, ao concebê-lo como uma multiplicidade de agenciamentos possíveis. Trocaríamos, assim, as competências pelas performances. Nesse caso, entretanto, não falaríamos mais de currículo, mas de agenciamentos curriculares. A forma, feita de contornos bem delimitados, cede¬ria lugar aos diversos agenciamentos do objeto. Do objeto ou do ser do currícu¬lo passaríamos a um devir-x do currículo. A questão não seria mais a de saber se esse ou aquele problema está dentro do domínio do currículo ou não, mas, antes, de experimentar no currículo, de experimentar com o currículo, de fazê-lo entrar em novos agenciamentos, sem procurar conformá-lo a uma definição pré¬via. O novo agenciamento assim obtido não passaria de mais uma parte, de mais um rizoma.
Nenhum artista se preocupa em conformar seu trabalho a essa suposta "totalidade" que seria a arte. O artista simplesmente continua a produzir suas obras sem pensar se vai esgotar a definição de arte ou sem pensar em defini-la clara e distintamente. Ao contrário, na maioria dos casos, seu trabalho consiste em romper com a definição que dela se tinha. A questão não é a de saber se o artista faz arte ou se ele se torna cada vez mais artista, mas, antes, de estudar a composição dos novos agenciamentos que ele produziu, de examinar os devires da arte que ele realizou. Deleuze ilustrou esse problema com um belo exemplo. Há mais semelhanças entre um cavalo de lavoura e um boi do que entre um cavalo de lavoura e um cavalo de corrida. É como se o cavalo de lavoura fizesse balançar a categoria cavalo ao entrar em um agenciamento "charrua-lavrador" diferente, um agenciamento que é o mesmo que o do boi. Esse novo agenciamento, esse novo devir do cavalo, não é uma evolução em direção a um "ser mais" do cavalo, mas tão simplesmente uma máquina ao lado das outras máquinas que é possível construir.
E o currículo em tudo isso? Historicamente, o currículo se constituiu no interior de um debate sobre o "ser-do-currículo". Havia diferentes programas escolares que eram desenvolvidos e havia diferentes maneiras de desenvolvê¬-los (cf. Pinar e Grumet). Os estudiosos tentaram construir uma espécie de "du¬plo" disso, ou seja, uma "teoria", para tentar apreender o que era um programa escolar e como se poderia desenvolvê-los (ver os clássicos: Tyler, Bobbit, Smith, Stanley e Shores, etc.). Ao tentar, assim, dar uma forma aos programas escolares e às maneiras de desenvolvê-los, eles esboçaram o contorno de uma nova disci¬plina: o "currículo" ou a "teoria do currículo".
Mas os teóricos do currículo se depararam, então, com um novo problema: as definições do currículo se multiplicaram de uma tal forma que se tornava cada vez mais impossível colocar uma ordem no emaranhado que se formou, isto é, se tornava cada vez mais difícil encontrar o "ser-real-do-currículo" que permitisse distinguir de maneira clara e unívoca o que é currículo e o que não é. Vários autores tentaram resolver esse problema da ambigüidade da definição do currí¬culo. Tanner e Tanner, por exemplo, após haverem feito um inventário das muitas dezenas de definições, denunciam-nas como sendo parciais e propõem uma definição que, segundo eles, conteria "o significado pleno do termo". Essa definição completa do currículo estaria situada num "justo ponto intermediá¬rio". Para eles, o ser-do-currículo é a média. McDonald, por sua vez, afirmou que uma definição universalmente aceita era necessária, indicando a sua, evidente¬mente, como sendo aquela que apreende verdadeiramente o que é o currículo.
Goulet é outro teórico que pretende apreender a essência do currículo, ao tomar como definição verdadeira de currículo aquela que é enunciada pela maio¬ria dos autores. A maioria determinaria, nesse caso, a natureza do ser-do-currículo. De um outro ponto de vista, Zais sustenta que todas as definições se equiva¬lem e que deveríamos utilizá-las de acordo com o contexto. Essa posição oportu¬nista é dificilmente aceitável, se consideramos a diversidade e a distância irredutível entre as ideologias em questão. Schwab, por outro lado, chegou a sugerir que deixássemos de lado os debates fúteis sobre as questões de defini¬ção e que nos ocupássemos dos problemas concretos: posição astuciosa que, ao mesmo tempo que procura fugir à questão, acaba, indiretamente, respondendo a ela.
Todas essas tentativas de ordenar as definições do currículo terminam, portanto, em fracasso. Ninguém conseguiu ainda determinar a natureza do "ser¬do-currículo". Por quê? Porque o problema está mal colocado. Não se trata de determinar um "ser-da-currículo", mas, antes, de produzir agenciamentos curriculares.
Espinoza abordou a definição do objeto (ou do corpo, o que é a mesma coisa) de uma maneira bastante original. Em vez de tentar buscar sua essência, ele se perguntou: o que pode um corpo? De que ele é capaz? Espinoza definiu a natureza ou o real como sendo uma substância única, mas com uma infinidade de atributos. Essa maneira de ver se opõe nitidamente à visão do real em si, à visão baseada na noção de essência. Seguindo a mesma lógica, ele define um corpo não por sua substância (Deleuze, 1981, p. 85), mas por seu movimento ou por seu repouso, por sua velocidade ou por sua lentidão. Um corpo não é, pois, senão um certo modo de existência (Idem, p. 70), senão uma certa maneira de afetar a substância.
O corpo não é, assim, algo fixo: ele é como alguma coisa que se estende sobre uma grande superfície e que pode tomar emprestado um grande número de modos de existir. Ele está cheio de devires potenciais.
E o currículo como corpo, de quê ele é capaz? Quais são seus modos de existir? Quais são os agenciamentos nos quais ele pode entrar?
Vemos, assim, agora, uma outra maneira de esboçar uma concepção bem diferente de currículo. Ao currículo como corpo, nós opomos uma concepção do currículo como superfície; ao currículo como ser, nós opomos uma concepção do currículo como devir; ao currículo como objeto claro e distinto, nós opomos uma concepção do currículo como "obra aberta", isto é, como obra fundamen¬talmente ambígua sem, contudo, cair no indiferenciado; a um plano teleológico, nós opomos um plano geométrico.
O currículo como plano geométrico não tem natureza fixa, ele não é obrigado a ter objetivos, atividades de aprendizagem, etc. Ele até pode ter essas coisas, mas elas se tornam acessórias. O que importa é que ele pode ter atributos, ter componentes, entrar em agenciamentos variados.
O plano geométrico é como o zero, o caso vazio, ele é puro movimento de velocidade e de lentidão, ele é a própria desterritorialização. O plano teleológico, em troca, é a reterritorialização. Um é a fuga, o outro, a captura. O plano teleológico é um desenho, uma forma, feita à imagem do bom senso e do senso comum. O plano geométrico é um desenho abstrato, é o inverso do bom senso e do senso comum, é a dissolução da forma e instauração da velocidade.
ESQUIZOANÁLISE DO CURRÍCULO
Primeira analogia
Inspirando-me em Deleuze e Guattari, quero fazer algumas reflexões exploratórias sobre uma esquizoanálise do currículo.
De início, uma primeira analogia. O inconsciente psicanalítico é para o in¬consciente maquínico aquilo que o currículo como totalidade é para o currículo como máquina. Esse objeto que se chama o inconsciente tem sido concebido de duas maneiras: ou como triangulação edipiana ou como agenciamento maquínico.
Como triangulação edipiana, o inconsciente é uma estrutura, um mecanismo (isto é, um sistema de ligações entre termos dependentes) (Deleuze e Parnet, 1977, p. 125). Esse mecanismo se articula em torno de três termos - pai, mãe e filho - e de dois processos fundamentais – a identificação da criança com a pessoa adulta e seu impulso amoroso para com ela. A relação com o desejo é construída sempre em termos de falta relativamente ao Phallus: para o menino, por não ser o Phallus (o Pai); para a menina, por não tê-lo. A estruturação edipiana cria na criança um complexo de emoções contraditórias muito difíceis de serem suportadas. Como conseqüência, ela as recalca no inconsciente, te¬mendo a castração caso o adulto venha a descobrir seu segredo. Esses senti¬mentos recalcados se exteriorizam então, ocasionalmente, de maneira parcial, pois a consciência exerce o papel de censura e impede uma "tomada de consciência" total por parte do indivíduo. O inconsciente psicanalítico é, pois, inicial¬mente, um inconsciente familial e está duplamente estruturado na falta. Em pri¬meiro lugar, a criança fracassa em ser ou em ter o Phallus e, depois, o que se manifesta na conduta não é senão parcial e é preciso refazer a unidade perdida.
O fato de que contemporaneamente a família tenha se desintegrado não muda em nada essa descrição. Vale a mesma maneira de ver: há simplesmente uma substituição dos agentes, os quais cumprirão as mesmas funções.
A essa concepção mecânica do inconsciente podemos contrapor uma con¬cepção maquínica. Por máquina entendemos um conjunto de "vizinhança" entre termos heterogêneos independentes (Deleuze e Parnet, 1977, p. 125). O que isso quer dizer? Isso significa conceber o inconsciente não como um desenho figu¬rativo que representa a família, mas como uma pintura moderna, uma desenho puramente abstrato, no qual pode haver, obviamente, componentes familiais, mas também outras coisas.
Vejo o inconsciente,antes, como alguma coisa que estaria um pouco em toda parte ao nosso redor; tanto nos gestos e nos objetos cotidianos, quanto na televisão, no espírito da época e até mesmo, e talvez sobretudo, nos grandes problemas• do momento ... Portanto, um inconsciente que trabalha tanto no interior dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de viver o seu corpo, seu território, seu sexo, quanto no interior do casal, da família, da escola, do quarteirão, das fábricas, dos estádios, das universidades... Dito de outra forma, não um inconsciente de especialistas do inconsciente, não um inconsciente cristalizado no passado, cristalizado em um discurso instituciona¬lizado, mas, ao contrário, voltado para o futuro, um inconsciente cuja trama não seria outra que o possível mesmo, o possível à flor da linguagem, mas também o possível à flor da pele, à flor do socius, à flor do cosmos ... Por que colar-lhe essa etiqueta de "inconsciente maquínico"? Simplesmente para su¬blinhar que ele está povoado de todas as espécies de maquinismo que o levam a produzir e a reproduzir essas imagens e essas palavras (Guattari, 1979; cf. Deleuze e Guattari, 1975b, p. 421).
Duas concepções, portanto, desse objeto que é o inconsciente: mecanismo de contornos bem delimitados e máquina, cujos agenciamentos são infinitos. Na primeira, nós apreendemos a essência do inconsciente, enquanto que, na se¬gunda, ele se mexe sem parar.
E o currículo nisso tudo? A literatura sobre currículo tem procurado, cons¬tantemente, delimitar o contorno dessa disciplina, fixar-lhe uma essência, uma identidade. Basta examinar a natureza dos debates dos últimos quarenta anos para se convencer disso, uma vez que eles estão cheios de tentativas de defini¬ção, de pesquisas sobre a natureza do currículo. Podemos assim afirmar que, na tentativa de determinar a natureza do objeto, tem-se procedido, no domínio do currículo, de uma maneira análoga à da psicanálise. Nós o temos imobilizado nas categorias da representação. É possível, entretanto, contrariamente, conceber o currículo um pouco como Deleuze e Guattari concebem o inconsciente: como máquina. Máquina que não pára de produzir, máquina produzida por sua produ¬ção. Máquina da qual não se pode determinar a essência a priori. E mesmo que o façamos a posteriori, nem por isso ela pára de efetuar novas ligações, nem por isso ela se torna fixa. Assim, ela se parece mais com um desenho abstrato do que com uma representação figurativa da realidade. Não, pois, uma definição "edipianizante" do currículo, mas uma definição "maquínica" desse objeto am¬bíguo.
Segunda analogia
Há, entre uma análise totalizante do currículo e uma esquizoanálise do mesmo, a mesma relação que existe entre a psicanálise e a esquizoanálise. A psicanálise não se limita a isolar um objeto que se chama inconsciente: ela, ao mesmo tempo, utiliza um método para estudá-lo. Esse método consiste em traçar a história das faltas. A criança teria recalcado os sentimentos difíceis de serem suportados, mas quem diz "recalcado" não quer dizer, com isso, sem efeito sobre os comportamentos reais dos indivíduos. Os psicanalistas estão bastante vigilantes relativamente aos atos equivocados, aos lapsos, aos sonhos, uma vez que eles, muito freqüentemente, manifestam o que ficou escondido no inconsciente. Trata-se de voltar à origem. Mostrar como o pênis equivale a uma teta de vaca e como a teta de vaca equivale a um seio matemo. Uma vez que o inconsciente teria se totalizado em torno da família e da falta, procura-se, então, ver o que falta a esse ato, relativamente àquela grade totalizante (Deleuze e Guattari, 1975b, p. 53-54; cf. Deleuze e Parnet, 1977, p. 28).
A essa visão totalizante da análise do inconsciente, Deleuze e Guattari opõem o método da esquizoanálise. Se o inconsciente não se estrutura em torno de Édipo e da falta, mas em torno das produções maquínicas e do corpo pleno, então a análise do inconsciente não pode se efetuar por meio da aplicação de uma grade construída inteiramente em termos de uma diversidade de enuncia¬dos e que tenha como finalidade reconstituir a totalidade da significação, de restabelecer o que faltava ao enunciado. Para a esquizoanálise, ao contrário, o universal, o total não existem (Guattari, 1979, p. 27). Sempre que encontramos um universal, podemos estar certos de que houve, de forma sutil, uma tomada de poder por parte de um dos termos em jogo, uma tomada de poder que vale por uma evidência e que exerce sua autoridade sobre o resto. Por isso, a esquizoaná¬lise não rebaterá uma grade interpretativa sobre os enunciados, mas colocará a problemática em termos de agenciamentos maquínicos. Não buscaremos saber "o que isso quer dizer?" mas, antes, "como isso funciona?".
Assim,fui levado a considerar que toda idéia de objeto social, que toda entidade intrapsíquica deveria ser substituída por uma noção mais englobante, mas muito mais redutora: a de agenciamento. Um fato social, um fato de comporta¬mento, um fato psíquico, antes de poder ser definido no plano material, subje¬tivo, semiótico, econômico, ... deve ser apreendido ao nível da territorialidade maquínica que lhe é própria (idem, p. 197).
Esses fatos não remetem, pois, a códigos universais fechados sobre eles próprios, mas são, antes, indissociáveis dos agenciamentos nos quais eles entram.
Podemos imaginar melhor agora a relação disso com a análise do programa escolar. As grades de análise do programa impedem a produção de programas diferentes, obrigam os programas a se moldar a uma forma particular e totalizante. Essas grades exercem o papel de uma totalidade, relativamente à qual os progra¬mas existentes estão em falta, exatamente da mesma forma que os enunciados de um psicanalizado estão em falta quando comparados à grade edipiana. Tudo se passa como se houvesse uma imagem de programa que exercesse o papel de norma e em virtude da qual todos os programas deveriam ser comparados, exa¬tamente da mesma forma que, ao nível do inconsciente, Édipo exerce o papel de filtro relativamente ao qual todos os enunciados de desejo são comparados. A esquizoanálise estabelece que não existe, inicialmente, isso de programa univer¬sal. Ela considera que sempre que uma tal pretensão se produz é porque um poder se infiltrou.
A dupla tarefa da esquizoanálise do currículo
Primeiramente, uma tarefa crítica, de destruição. Trata-se de desfazer os conjuntos unificadores. A criança É ISSO. A escola É AQUILO. Aprende-se DESSA FORMA. A sociedade É ISSO.
A tarefa da esquizoanálise consiste em desfazer incansavelmente os eus e seus pressupostos; em liberar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam; em fazer correr os fluxos que eles seriam capazes de emitir, receber ou de interceptar; em estabelecer, cada vez mais longe e mais refinadamente, e bem abaixo das condições de identidade, os esquizes e os cortes; em montar as máquinas desejantes que recortam cada um de nós e nos juntam com outros (Deleuze e Gualtari, 1975b, p. 434).
Em suma, colocar em causa, inicialmente, os marcadores de poder (Idem, p. 378).
Em segundo lugar, uma tarefa positiva, que consiste em descobrir, em seguir, os índices maquínicos de desterritorialização (Ibidem, p. 385).
Isto é: desfazer o bloqueio ou a coincidência sobre a qual repousa o recalque propriamente dito; transformar a oposição aparente da repulsão (corpo sem órgãos - máquinas objetos parciais) em condição de funcionamento real; asse¬gurar esse funcionamento nas formas da atração e da produção de intensidade e, portanto, tanto integrar as falhas no funcionamento atrativo quanto envolver o grau zero nas intensidades produzidas, fazendo, assim, com que as máqui¬nas desejantes voltem a funcionar (Ibidem, p. 406).
Em outros termos, a tarefa positiva consistirá em imaginar, frente ao que já parecia antecipadamente amarrado, índices de desterritorialização e linhas de fuga. Frente a um programa escolar que reterritorializa a criança ou a aprendiza¬gem, imaginar, pois, pistas de desterritorialização.
USO MENOR DA PEDAGOGIA
A educação sempre teve um estatuto de disciplina menor, em comparação com os outros campos do saber das ciências humanas (psicologia, sociologia) e, sobretudo, com as ciências da natureza. Com efeito, essas últimas, e particu¬larmente a física, graças à precisão de seu objeto e ao rigor de seu método, exercem, de alguma forma, o papel de padrão, de norma. Poderíamos qualificá-las, assim, de disciplinas maiores. Imaginamos facilmente a reação dos pedagogos frente ao olhar superior que lhe dirigem as outras disciplinas: eles copiam o modelo maior; também eles querem aceder ao estatuto de verdadeira ciência.
Assim colocados, menor e maior se opõem enquanto estados dos quais um é dominante e o outro dominado. Eles se inscrevem em uma dialética do poder em que o outro busca inverter o um a fim de impor, por sua vez, a sua lei.
Conseqüentemente, a minoridade se assemelha à maioridade, uma vez que ela é uma maioridade potencial que disputa o poder com a maioridade de fato. É provavelmente por isso que muitas revoluções pouco mudam as coisas na rea¬lidade, já que não fazem mais do que substituir um padrão por outro.
Feitas essas primeiras distinções, parece, pois que "por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco-adulto-macho, etc." (Deleuze e Guattari, 1980, p. 356). No fundo, como diria Lyotard, majoritário não quer dizer necessariamente grande número, mas grande medo. Mas não é dessa forma que nós queremos colocar o problema. Do que se trata, em vez disso, é de opor "maior e menor", pensados como estados, a "menor", pensado como devir.
averia como que duas operações opostas. De um lado, nós promovemos algo ao estado de "maior": de um pensamento fazemos uma doutrina, de uma maneira de viver fazemos uma cultura. de um acontecimento fazemos a Histó¬ria. Pretendemos, assim, reconhecer e admirar, mas, de fato, o que fazemos é normalizar (Deleuze e Bene, 1980, p. 97).
Mas podemos conceber a operação inversa:
( ... ) de que forma "minorar" (termo empregado pelos matemáticos), de que forma impor um tratamento menor ou de minoração para liberar os devires contra a história, as vidas contra a cultura, os pensamentos contra a doutrina, as graças ou as desgraças contra o dogma? (Idem).
Carmelo Bene fez esse trabalho de minorização no teatro, em sua peça Ricardo III, ao retirar tudo que era elemento de poder na peça original de Shakespeare. Ao elevar, pois, todo o sistema principesco, Bene libera, assim, outros personagens que só existiam de forma virtual. Nesse segundo sentido, menor não mais designa, pois, um estado, mas um devir no qual nos envolve¬mos. Menor também não tem nada a ver com alguma forma de regionalismo, qualquer que ele seja, uma vez que a região pode também ser pensada a partir das categorias de estado. Poderíamos pensar no desenvolvimento regional a partir de um tratamento menor, o que provavelmente resultaria em algo que fosse diferente das eternas disputas centro-periferia, já que, em vez de querer mais poder para as periferias e reproduzir assim o modelo da capital na região, tomando assim a região maior, buscaríamos, antes, liberar as potências do devir.
Para darmos uma idéia ainda mais precisa do conceito de "menor", vamos examinar o estudo que Deleuze e Guattari fizeram de Kafka. Eles destacam três aspectos de uma literatura menor, aspectos que poderiam também ser aplicados a uma pedagogia menor.
Primeiro aspecto: uma língua é sempre afetada de um forte coeficiente de desterritorialização. Pensemos, no caso de Kafka, no alemão falado em Praga, ou ainda no Black English dos negros americanos e, para nós, que somos do Quebec, a utilização particular, norte-americana, que fazemos do francês. A lín¬gua falada no Quebec é uma língua desterritorializada, na medida em que ela não se avalia apenas em relação ao francês-padrão, mas também em relação ao inglês americano, ao qual ela toma de empréstimo elementos fonéticos e sintáticos que faz variar (Deleuze e Guattari, 1980, p. 129).
Segundo aspecto: tudo aí é político. Com efeito, uma literatura menor não pode fazer outra coisa que questionar, às vezes até mesmo à sua revelia, a literatura maior. Ela força esta a reagir, ela faz vir ao nível da superfície os jogos subterrâneos do poder.
Terceiro aspecto: tudo assume um valor coletivo. As categorias tradicio¬nais, o autor, o personagem, o herói, que são, todas, maneiras de retomar a uma problemática do sujeito, são substituídas pelos agenciamentos coletivos de enunciação. Mesmo quando o autor está sozinho, ele está povoado pelo social, ele é agenciado. Em Kafka, "a letra K não designa mais um narrador nem um personagem, mas um agenciamento tanto mais maquínico, um agente tanto mais coletivo, quanto mais o indivíduo se encontra ligado à sua solidão" (Deleuze e Guattari, 1975a, p. 33).
Esses três aspectos do "menor" - a desterritorialização, a política, o agen¬ciamento coletivo de enunciação - nos permitem esboçar o movimento que assumiria uma pedagogia da qual quiséssemos fazer um uso menor.
Mas o que isso pode querer dizer: "fazer um uso menor da pedagogia"? De acordo com o primeiro aspecto, um uso menor da pedagogia nos levaria a nos tomar como que estrangeiros no interior do ofício de pedagogo que exerce¬mos. Isso não significa necessariamente fazer coisas extraordinárias, sair da escola, ir para a rua, para a comunidade, etc., uma vez que essas tentativas, apesar de constituírem um esforço real de desterritorialização, podem também constituir novas maneiras de copiar o modelo do bom professor e, conseqüen¬temente, novas maneiras de reterritorializar segundo o uso maior da pedagogia. Ao contrário, a desterritorialização de que falamos faz proliferar os devires para chegar, quem sabe, a um devir imperceptível, num espaço em que as aventuras, mesmo que na banalidade da esquina da rua, se dão em intensidade.
É inútil, pois, perguntar-se como ensina alguém que faça um uso menor da pedagogia, uma vez que ele pode muitíssimo bem proceder "como todo mundo", mas com a sutil diferença, entretanto, e é isso que o torna estrangeiro em seu próprio ofício, de que ele o faz para além das formas e dos marcadores de poder, em um meio não formado, onde tudo é velocidade. Da mesma forma que "saber envelhecer não é permanecer jovem, mas saber extrair de sua idade as partículas, as velocidades e as lentidões, os fluxos que constituem a juventude dessa idade" (Deleuze e Guattari, 1980, p. 340), assim, também, saber ensinar poderia significar não buscar ser um "bom" professor, mas saber extrair desse ofício as velocidades e os fluxos que constituem a sua "essência" fluente.
Quanto ao segundo aspecto, a política, fazer um uso menor da pedagogia significaria retirar do discurso pedagógico todos os marcadores de poder que representam unicamente o trabalho de nivelamento das diferenças efetuado pelo bom senso e pelo senso comum, possibilitando, assim, a emergência do devir. Esse trabalho é mais que necessário, pois, como vimos, a pedagogia, mesmo que ela tenha um estatuto de disciplina menor, funciona, ainda assim, de acordo com o modo maior, sobretudo se consideramos as opções oferecidas, as correntes pedagógicas que se fundam em invariantes: o eu profundo para as pedagogias do sujeito, a alienação para a pedagogia progressista, o desejo como falta para a pedagogia libertária, a objetividade das técnicas empíricas para a pedagogia behaviorista. A minoridade da pedagogia é, pois, uma falsa minoridade, uma vez que ela captou, nesta ou naquela corrente, o homogêneo, o padronizado, o universal. Não se trata, pois, de fazer com que a pedagogia se tome majoritária, mas, antes, de extrair de um discurso pedagógico dominante os marcadores de poder. É assim que o pedagogo será, como se diz daqueles que são estrangeiros em sua própria língua, estrangeiro no modelo pedagógico que ele deve veicular em sua escola.
Um uso menor da pedagogia não quer dizer, entretanto, que o pedagogo fará qualquer coisa que quiser. Por exemplo, não significa dizer que a pedagogia deveria se basear no fortuito, na intuição do momento. Não se trata, evidente¬mente, disso. Deleuze, em seu comentário a propósito das línguas menores, nos apresenta uma outra questão, mais interessante:
Já não temos mais escolha: devemos definir as línguas menores como "línguas de variabilidade contínua" - qualquer que seja a dimensão considerada: fonológica, sintática. semântica ou mesmo estilística. Uma língua menor não comporta senão um mínimo de constante e homogeneidade estruturais. Não se trata, entretanto, de mingau, de uma mistura de dialetos, uma vez que ela encontra suas "regras" na construção de um contínuo. Com efeito, a variação contíua se aplicará a todos os componentes sonoros e lingüísticos, em uma espécie de cromatismo generalizado (Deleuze e Bene, 1980, p. 100).
Não se trata, tampouco, de considerar cada corrente pedagógica como me¬nor e considerá-las, todas, como equivalentes. Isso também não, uma vez que cada corrente pode conter universais maiores. Fazer um uso menor da pedago¬gia significa, antes, adotar o devir como regra: tudo vale, exceto aquilo que impede o desejo de circular. E o que impede o desejo de circular é o poder padronizado que anula as diferenças e impede as variações.
Mas já escutamos alguém dizer: "Mas essa forma de pedagogia não é elitista?". Aí é preciso retomar às distinções feitas no início, pois, mesmo que muitos se vangloriem de falar em nome do povo, permanece, entretanto, o fato de que o majoritário do qual eles falam não é necessariamente o maior número mas o padrão no poder. As mulheres, as crianças, por exemplo, constituem uma minoria muito mais numerosa que a maioria, e elas não param de passar entre as malhas da rede padronizante da maioria. Mas podemos também responder afir¬mativamente a essa observação no sentido seguinte: o uso menor da pedagogia está reservado ao Super-Homem nietzschiano. Apenas nesse sentido ela é elitis¬ta, mas a elite de que se trata é uma elite bem curiosa, uma vez que todos podem fazer parte dela, pois todos podem devir, todos podem traçar uma linha de fuga contra o poder.
O terceiro aspecto nos faz ver o "mestre" não como um sujeito, mas como uma singularidade pré-individual e impessoal no sentido em que, antes de ser uma forma e uma essência, ele é, inicialmente, multiplicidade de linhas, solidão povoada pelo mundo inteiro. Além disso, mesmo quando é o único a falar, o mestre é vários, agenciado, em sua enunciação, em todos os pontos. A mesma coisa para a criança: antes de ser uma entidade formada, ela é, inicialmente, fluxos e conexões múltiplas. Pensada assim, a classe escolar não tem nada a ver com a metáfora do jardineiro e suas plantas, mas muito mais com as metamorfo¬ses das singularidades em devir.
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Nota
Este texto constitui uma montagem de três dos capítulos do livro de Clermont Gauthier, Fragll1enls el résidus 2. Deleuze educateur. Ottawa: Greme, 1989. Publicado aqui com a autorização do autor.
Tradução de Tomaz Tadeu, do original em francês (com agradecimentos a proL" Sandra Mara Corazza, pela ajuda na revisão).
Clermont Gauthier é professor do Département d'études sur I'enseignement et l'apprentissage, Universidade de Laval, Canadá.
Endereço para correspondência: E-mail: Clermont.Gauthier@fse.ulaval.ca 
cooperação.sem.mando

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