esta é uma matéria publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos, no início do de setembro, por conta da realização do I Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação... o evento já passou, mas as questões não.
a entrevista foi realizada com o Edgardo Castro que é autor, entre outros, do Vocabulário de Foucault, editado no brasil, pela autênctica.
Filósofos, sociólogos, juristas, médicos e educadores vão realizar um debate em torno da problemática da biopolítica, em um Colóquio Internacional organizado pela Universidade Pedagógica de Buenos Aires. “Nosso desafio é pensar uma política que esteja à altura da humanidade da vida”, sustenta Edgardo Castro.
A reportagem é de Silvina Friera
e está publicada no jornal argentino Página/12, 31-08-2011. A tradução é do Cepat.
Um fantasma percorre a história do século XX: o fantasma da segurança. Antes do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, que espantou a burguesia europeia, Descartes e Hobbes, “dois paranóicos da segurança” – como Edgardo Castro os define – gestaram a matriz fantasmática em questão. O filósofo francês postulou que tudo e todos – inclusive Deus convertido em gênio maligno – queriam enganá-lo. Seu colega inglês, jogando mais lenha na fogueira, acreditava que seus vizinhos e parentes queriam matá-lo. “No coração do liberalismo não está a liberdade, mas a segurança”, recorda Castro.
A poucas horas da abertura do I Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, que começa hoje, dia 01 de setembro, os filósofos, sociólogos, juristas, médicos e educadores que vão debater ao longo de três intensos dias, prometem fazer sair faíscas deste evento cultural organizado pela Universidade Pedagógica de Buenos Aires (Unipe). O sociólogo britânico Nikolas Rose (London School of Economics), o professor de estética e literatura italiana Andrea Cavalletti (autor de Mitologia da Segurança. A Cidade Biopolítica, Adriana Hidalgo), o pesquisador australiano especialista em questões de segurança Pat O’Malley (Universidade de Sidney) e o brasileiro especializado em educação Alfredo Veiga-Neto compartilham uma nova perspectiva de leitura sobre a obra de Michel Foucault, um dos pais da biopolítica.
O outro pai que patenteou a biopolítica foi o sueco Rudolf Kjellén, no começo do século XX. O termo retornou, várias décadas depois, quando Foucault o adotou para definir uma das dimensões fundamentais da política moderna: o governo biológico da população, problemática central de suas reflexões desde 1974 até 1979. Entretanto, foi preciso esperar até a publicação dos cursos que o filósofo francês ditou no Collège de France. Apenas em 1979 a biopolítica retornou definitivamente à cena teórica e alargou o panorama de interpretações da obra foucaultiana. Os novos usos desta espécie de chave mestra potencializaram o horizonte do pensamento político das últimas décadas.
Castro, um dos organizadores do Colóquio, conta ao Página/12 que este primeiro encontro girará em torno de dois grandes eixos: a ideia de uma política que se encarrega da vida da população – perspectiva mais próxima de Foucault – e a ideia de uma vida da qual surgem formas de fazer política, próxima a Deleuze e Kjellén. “O interessante da biopolítica é que se trata da relação da política com a vida e da vida com a política em termos amplos, não apenas institucionais ou jurídicos; o que está em questão é a vida das populações, do conjunto”, explica o filósofo, pesquisador do Conicet e um dos principais tradutores da obra de Giorgio Agamben ao espanhol.
“As análises biopolíticas se centram sobretudo nas práticas – destaca Castro. Embora não as excluam, não partem necessariamente das ideologias nem se orientam a elas; procuram captar e expressar as múltiplas formas que pode tomar o modo como a vida sempre desafia suas formas políticas. E vice-versa: a política desafia as formas de vida”. O autor do Dicionário Foucault, livro reeditado pela Siglo XXI que será apresentado na sexta-feira no marco do Colóquio, faz uma série de perguntas. “A vida humana individual e social pode ser concebida apenas em termos empresariais, de custos e benefícios? A primazia da economia faz com que vamos ao encontro de uma sociedade de homens eminentemente governáveis? Em grande medida, estas são ainda as nossas perguntas. E há também, por parte de Foucault, um diagnóstico histórico desafiante: as formas modernas de governar foram cunhadas pelo liberalismo”, adverte.
Como esse diagnóstico “desafiante” interpreta a América Latina?
O grande desafio da modernidade política foi elaborar técnicas para ajustar o processo de acumulação de corpos – a urbanização da vida no Ocidente – com o processo de acumulação do capital. O diagnóstico de Foucault é que as formas modernas de governar foram cunhadas pelo liberalismo. Este conjunto de técnicas constitue o que ele chamou de dispositivos de segurança, mecanismos que buscam administrar o aleatório em termos não apenas de eficácia, mas também e sobretudo de eficiência. Por isso, a noção de mercado e a crença em sua naturalidade foram tão importantes no liberalismo do século XVIII. O mercado era, para dizê-lo de alguma forma, um mecanismo que indicava até onde era razoável intervir. De acordo com uma expressão de Foucault, o liberalismo clássico colocou o Estado sob a tutela do mercado. No coração do liberalismo não está a liberdade, mas a segurança. Poderíamos ler Descartes e Hobbes neste sentido; digo isso um pouco exageradamente, mas pode-se qualificá-los como “dois paranóicos da segurança”. Um acredita que tudo e todos, inclusive um deus convertido em gênio maligno, querem enganá-lo. O outro acredita que todos, seus vizinhos e parentes mais próximos, querem matá-lo. As noções modernas de certeza – na ordem do conhecimento – e de soberania – na ordem da política – surgiram destas duas paranóias metódicas. O que nos mostra particularmente a história do século XX é que esta busca paranóica de segurança pode produzir exatamente o seu contrário: a insegurança. Há algo que na concepção político-antropológica do liberalismo dificilmente é aceitável. Georges Bataille falava a respeito do gasto inútil; em termos mais rasos, o que torna humana a vida dos homens não é, em última instância, a eficácia e muito menos a eficiência. Creio que aqui está o nosso desafio: pensar uma política que esteja à altura da humanidade da vida.
Castro prevê que os especialistas chilenos acenderão a mecha de vários dos tópicos em dança por estes dias. “Não tenho dúvidas de que, a partir da vida de nossas sociedades, teremos muito a contribuir com este debate aberto por Foucault, quando o tema do neoliberalismo não estava na moda, positivamente como na década de 1990, nem pejorativamente, como na década seguinte”, destaca o autor de Leituras Foucaulteanas. Uma História Conceitual da Biopolítica (Unipe).
Qual é a sua opinião sobre a luta encabeçada pelos estudantes chilenos que exigem educação gratuita e de qualidade?
Seria reducionista acreditar que se trata apenas do não pagamento da escola ou da universidade. Se todos, absolutamente todos, tivessem dinheiro suficiente, certamente não colocariam esta situação. O que está em jogo em termos políticos e filosóficos é muito mais que uma questão de tarifas. Os protestos dos estudantes e professores são acompanhados agora por amplos setores da população; são protestos sociais, não apenas educativos. Está em questão todo um sistema, ao mesmo tempo social e jurídico. Basta pensar que, segundo uma lei reservada, 10% dos lucros em moeda estrangeira obtidos pela comercialização do cobre devem ser destinados à compra de material bélico, cerca de 7,5 bilhões de dólares desde 2000. Bachelet tentou derrogá-la, mas não conseguiu. Encontramo-nos com um Estado que subsidia por lei a defesa, mas converte em devedores os seus cidadãos quando querem estudar; alguns estudantes publicaram na internet um contador de seu endividamento educativo. Mas, insisto, não se trata apenas de uma questão de tarifas. Uma educação gratuita pode estar submetida através de outros mecanismos aos critérios de eficácia e eficiência que, aplicados redutoramente, são nocivos. Por exemplo, há uma finalidade social da educação que não pode ser medida, quanto aos seus resultados, simplesmente pelo fato de que alguém obtenha um título universitário. E uma instituição educativa não pode ser ponderada apenas pelo lugar que ocupar num determinado ranking; tampouco o sistema educativo pelo aporte ao sistema produtivo. Está em jogo esse gasto inútil, de que falava Bataille. Também isso vem à tona nas lutas dos estudantes e professores chilenos. E nos interpela.
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