Foi assim que o cuidado de si mesmo, da forma física à alimentação saudável, foi exagerada, tornando-se, nos seus excessos, uma patologia. Quando o bem-estar se torna uma ideologia, não aceitamos mais as nossas imperfeições.
A análise é do psicanalista e ensaísta italiano Massimo Recalcati. Seu último livro é Che cosa resta del padre?, publicado pela Ed. Raffaello Cortina. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 27-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O idoso protagonista de um dos últimos filmes de Woody Allen, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, interpretado por um raro Anthony Hopkins, exulta ao descobrir que o seu DNA vai lhe garantir uma vida inesperadamente prolongada. A recusa do avançar dos anos o mobiliza em busca de uma eterna juventude que não envolve só o projeto tragicômico de se casar com uma acompanhante de profissão, mas também a absoluta dedicação ao reforço atlético e à purificação saudável do seu corpo, assim como sufragar supersticiosamente a previsão exaltante que lhe é ofertada pelo discurso médico. Esse personagem não é um alienígena, mas sim uma máscara típica do nosso tempo. O corpo se torna um tirano exigente que jamais deixa descansar.
Em um dos seus últimos livros intitulado Il governo del corpo [O governo do corpo] (Ed. Garzanti, 1995), Piero Camporesi havia esboçado a ideia de que uma nova "religião do corpo" estava se impondo na nossa civilização. Uma pena que ele não tenha tido tempo para elaborar com a justa amplitude essa intuição que hoje se impõe aos nossos olhos como uma evidência. Camporesi tinha razão: o nosso tempo abraçou o ideal do corpo em forma, do corpo do fitness, do corpo saudável, como uma espécie de mandamento social inédito. Trata-se de uma religião sem Deus que eleva o corpo humano e a sua imagem ao status de um ídolo. Assim, o corpo sempre em forma, obrigatoriamente saudável, assume as características de um dever-ser tirânico, de uma obstinação psicofísica, de uma prescrição moralista: ama o teu corpo mais do que a ti mesmo!
A nova religião do corpo se subdivide em seitas aguerridas. Mas o seu denominador comum continua sendo a exasperação do cuidado de si mesmo que se torna a única forma possível do cuidado como tal. Essa dimensão – a dimensão do cuidado – que para Heidegger definia de modo amplo o estar no mundo do homem e a sua responsabilidade perante o fenômeno da existência, parece hoje se restringir ao culto narcísico da própria imagem. A nova religião do corpo exige, de fato, uma dedicação absoluta por si mesmo. Querer o próprio bem, querer-se bem, torna-se o único axioma que pode orientar efetivamente a vida.
Todo sacrifício de si mesmo, todo recuo com relação a esse ideal autocentrado, toda operação de superar os limites do próprio Ego, todo movimento de dispêndio ético de si mesmo é visto com suspeita pelos fiéis dessa nova religião. A mesma pergunta salta como um mantra da sala do psicoterapeuta até aos estúdios dos talk-shows da TV: por que você não se quer bem, por que você não quer o seu bem?
As expressões psicopatológicas dessa cultura se multiplicam. A classificação psiquiátrica dos distúrbios mentais (DSM) é enriquecida a cada edição com novas síndromes que muitas vezes são o efeito direto dessa invasão desconsiderada do cuidado excessivo de si mesmo. Pense-se, para dar só um exemplo, na chamada ortorexia que etimologicamente deriva do grego orhtos (correto) e orexis (apetite). Trata-se de uma nova categoria psicopatológica que define, ao lado da anorexia, da bulimia ou da obesidade, uma aberração particular do comportamento alimentar caracterizada pela preocupação excessiva com a "alimentação saudável".
Mas como é possível que uma devida atenção ao que se come seja classificada como uma patologia? A ortorexia exibe uma característica essencial do nosso tempo: a busca do bem-estar, do ideal do corpo saudável, do corpo como máquina eficiente, pode se tornar um verdadeiro pesadelo, uma obsessão, pode se transformar de remédio a doença. O corpo que deve estar permanente em forma é, na realidade, um corpo perenemente sob estresse.
A vida medicalizada corre o risco de se tornar uma vida que se defende da vida. O corpo se reduz a uma máquina da qual deve ser assegurado o funcionamento mais eficiente. O médico não é mais, como indicava Georges Canguilhem, o "exegeta" da história do sujeito, mas sim o "reparador" da máquina do corpo ou do pensamento. A doença não é uma ocasião de transformação, mas sim um simples distúrbio a ser eliminado o mais rapidamente possível, apagando todos os seus vestígios. A ortorexia reflete essa curvatura paradoxal da ideologia do bem-estar mostrando como as atenções escrupulosas à proteção do próprio corpo podem transpassar em seu contrário. Roberto Esposito há muito tempo deu valor, em seus estudos de filosofia da política sobre o paradigma imunológico, a essa contradição interna ao higienismo hipermoderno: o reforços dos processos de proteção da vida correm o risco de se inverter em seu contrário fazendo a vida adoecer.
O pano de fundo antropológico da nova religião do corpo é o do narcisismo hipermoderno que constitui o resultado mais óbvio do declínio de todo Ideal coletivo. Se a dimensão do Ideal se revelou fictícia, se o nosso tempo é o tempo que não acredita mais no poder salvífico e redentor dos Ideais, aquilo pelo qual vale a pena viver sem então se reduzir apenas ao culto de si mesmo. A nova religião do corpo é um efeito (certamente não o único) do declínio niilista dos valores, da perda de valor dos valores.
O corpo eleito a princípio absoluto desafia, em seu furor hiperedonista, todo Ideal para mostrar todas a sua inconsistência diante da única coisa que conta: o próprio corpo em forma como uma realização fetichista do Ideal de si mesmo. O higienismo contemporâneo opera assim uma inversão paradoxal do platonismo. O corpo saudável não é, de fato, o corpo liberto, mas é um órgão que, de carcereiro, se tornou prisioneiro. Se para Platão o corpo era a prisão da alma, se era a sua loucura imprópria, o corpo saudável parece ser, ao contrário, como um corpo que se tornou refém, prisioneiro de si mesmo, cárcere vazio, puro fetiche, ídolo sem alma.
O mandamento do bem-estar, como acontece com todos os imperativos que se impõem como obrigações sociais, tais como medidas-padrão a partir das quais se deve uniformizar as nossas vidas para que sejam consideradas "normais", corre o risco de deslizar para o integralismo fanático do "salutismo" ortoréxico. Sobretudo se considerarmos que esse mandamento visa a rejeitar o estatuto acabado e lesionado do homem, a sua insuficiência fundamental. A ideologia do bem-estar é, de fato, uma ideologia que tenta exorcizar o fantasma da morte e da caducidade. Nisso, ele revela o seu fundamento perverso se a perversão na psicanálise é o modo de rejeitar a castração da existência, isto é, o seu caráter finito.
A ideologia do bem-estar que alimenta a nova religião do corpo bate a cabeça contra o muro da morte. É esse obstáculo insuperável que o nosso tempo gostaria de expelir, remover, suprimir e que, ao contrário, revela todo o caráter de comédia que circunda o culto hipermoderno do corpo. Devemos lembrar que o cuidado de si mesmo não esgota a dimensão da vida. O cuidado é sobretudo cuidar do Outro. Nietzsche havia indicado a virtude mais nobre do humano na capacidade de saber desaparecer no momento certo. Rara virtude nos nossos tempos, a ser celebrado como uma oração.
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