“Há gays e pedófilos por aí, e vamos ficar de braços cruzados?”. Filme baseado em fatos reais questiona a influência da extrema-direita nas classes baixas.
Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.
A narração se inicia com um pesadelo, contado durante uma viagem. Um desconhecido encontra-se na varanda da casa do protagonista. Este lhe pergunta quem ele é, sem respostas. Ouve-se o latido de cachorros, mas não se identifica a origem do som. Aproxima-se do homem, sempre imóvel, cabeça baixa e queixo enterrado no peito. Quando levanta-se sua cabeça, o protagonista vê um enorme corte em sua garganta, jorrando sangue. Dentro da ferida, um cachorro perfeitamente instalado, latindo ao seu interlocutor.
Esta pequena imagem sugerida pelo som sintetiza bem o absurdo e a crueldade encontrada em Snowtown (veja trailer em inglês), filme duro e perverso, coroado pela referência aos fatos reais que ainda hoje marcam a Austrália. Pelo abuso de animais, pela ideia da viagem e do “desconhecido que chega em sua casa”, tem-se uma metáfora perfeita dos fatos que se seguem. Espertamente, a história do tal desconhecido não é contada pelo seu ponto de vista, mas através dos olhos de Jamie, adolescente passivo e influenciável. Mesmo na foto acima, ele aparece atrás de John, observando-o, escondido por ele.
A câmera se delicia com o espaço da casa. O diretor é destes que acredita que a boa família de classe média-baixa é aquela que se reúne em torno da televisão, sobre o sofá, e não em torno da mesa de jantar como seria o símbolo da família patriarcal burguesa. Aqui, sobrevive-se de quase nada, a família sendo composta essencialmente de uma mãe instável e três filhos, muito mais infantis do que suas idades poderiam indicar, que perambulam entre corredores, quartos, salas, enquanto a imagem é recortada por estes ângulos e cômodos. Snowtown é essencialmente uma narrativa passada “entre quatro paredes” (vide a cena final), tanto no sentido literal quanto no metafórico, com seus fatos escondidos.
Entre quartos e salas, John começa a reunir os amigos, representar a figura paterna ausente e divulgar algumas ideias comunitárias. Os políticos nunca fazem nada, certo? Há diversos pedófilos e gays por aí, e vamos ficar de braços cruzados? É interessantíssimo ver como o poder de persuasão deste líder inato contamina os vizinhos, a mãe, o filho, e espalha-se uma noção de superego de grupo invencível, ativo, capaz de eliminar a escória do mundo. No contexto atual, em que a extrema-direita triunfa nas eleições de diversos países europeus, principalmente os considerados mais libertários (França, Suíça, Dinamarca, Suécia etc.), percebe-se que o grande público seduzido por esta ideologia não é mais o público instruído, mas a classe baixa, operária, em busca de uma figura providencial. Na França, inclusive, 50% dos sindicatos de operários acabam de declarar a intenção de voto à extrema-direita, contra menos de 10% para a extrema-esquerda, tradicionalmente ligada à luta dos trabalhadores.
Snowtown fornece uma espécie de reflexão de choque, ao mesmo tempo dura e complexa, gradativa, sobre o desenvolvimento desta estratégia de sedução. Precisa-se designar um inimigo (mesmo os deficientes entram na história), precisa-se dar a ideia de ação coletiva, de solução fácil. O problema, são os outros; o medo da alteridade e a paranoia exercem uma influência importante na conversão destas famílias exemplares, religiosas e morais, num pequeno grupo de extermínio aos possíveis pedófilos – cujos crimes nunca são realmente averiguados, diga-se de passagem.
Para uma narrativa repleta de assassinatos, pedofilia, sequestro, estupro, uso de drogas pesadas, tortura de animais e outros, o diretor escolhe uma medida de abordagem intermediária entre a estética do choque (aquela que mostra tudo, que dá um zoom na imagem da violência, como o fetichista Irreversível) e a estética da sugestão, deixando o espectador imaginar através de indícios (como o trabalho de Michael Haneke em Benny’s Video e A Fita Branca, por exemplo). A imagem ora sugere pelo som e pelo rosto do protagonista a imagem que se passa no cômodo ao lado, ora foca sem piedade na morte de um cachorro e nas unhas de uma vítima arrancadas meticulosamente com um alicate. O espectador não tem como se preparar, a próxima cena pode ou não ser mostrada, pode ou não ser acompanhada de um som assustador.
Aliás, é notável como o trabalho de som é importante neste filme por sua banalidade, oposta à violência cruel das imagens. Enquanto mata-se alguém no banheiro, aumenta-se o som da televisão, na qual passa uma telenovela qualquer. Enquanto as vítimas sangram e imploram para que a tortura pare, John os força a gravarem um discurso relativamente controlado aos parentes, anunciando que vão embora por uns tempos, que não adianta procurá-los. Esta mistura entre o terror visual e o drama auditivo provoca um impacto inusitado, que adiciona ainda mais à banalidade da violência. A inserção do jovem protagonista nesta mecânica é também de uma simplicidade agridoce: ele aprende a matar pessoas e procurar vítimas, ao mesmo tempo em que encontra no carrasco a figura doce e protetora de um pai.
Snowtown (2011) - Filme australiano dirigido por Justin Kurzel.
Com Lucas Pittaway,
Daniel Henshall,
Louise Harris,
Frank Cwertniak,
Matthew Howard,
Marcus Howard,
Anthony Groves,
Richard Green,
Aaron Viergever.
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