segunda-feira, 6 de junho de 2011

divulgação: O monólogo da razão sobre a loucura

Recuperando ideias de Foucault, a psicóloga Andrea Scisleski argumenta que apenas a razão é “autorizada” a falar sobre a loucura e, quando esta quer se pronunciar, é calada. Os manicômios surgem para “defender” a sociedade dos loucos
Por: Márcia Junges
Criados para “defender” a sociedade. Essa é a tese de Michel Foucault no curso Em defesa da sociedade, referindo-se ao surgimento dos manicômios. De acordo com a psicóloga Andrea Scisleski, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, essas instituições pretendiam defender a sociedade, e não os “loucos”. A pesquisadora argumenta que “a construção da loucura como patologia é algo da ordem de uma produção da razão, mas de uma razão que, ao classificar e categorizar, exclui inicialmente pelas práticas de confinamento e internação, e depois pela estigmatização que produz enquanto efeito”. Scisleski fala, ainda, sobre o “monólogo” da razão sobre a loucura, ponderando que apenas a razão é autorizada a falar sobre a loucura. Quando há o movimento inverso, ocorre um silenciamento. De certa forma, considera, no Ocidente todas as pessoas passam por instituições para serem civilizadas, socializadas: é o caso da escola, do trabalho, da família. Quem distoa desse modelo, pode ser internado em instituições para os desviantes, como prisões, escolas especiais, manicômios/hospitais psiquiátricos, fazendas terapêuticas. Outro tema explorado por Scisleski é a relação entre o surgimento da antipsiquiatria e a obra de Michel Foucault, que guardam conexões.
Andrea Scisleski é graduada em Psicologia pelo Instituto de Psicologia, mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com a dissertação Entre se quiser, saia se puder: o percurso dos jovens pelas redes sociais e a internação psiquiátrica. É doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS com a tese Governando vidas matáveis: as relações entre a saúde e a justiça dirigidas a jovens em conflito com a lei. É uma das organizadoras da obra Psicologia, Formação, Políticas e Produção em Saúde (Porto Alegre: Edipucrs, 2010). Atualmente, leciona no Departamento de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI, no câmpus Santiago.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que descobriu através de sua dissertação sobre “entrar se quiser, sair se puder” a respeito dos jovens que percorrem instituições psiquiátricas?
Andrea Scisleski - Foi um processo de pesquisa muito interessante porque a grande questão para mim foi o atravessamento das práticas institucionais e o perfil da população estudada. Primeiramente, é necessário contextualizar que se tratou de uma investigação que se deu no Hospital Psiquiátrico São Pedro - HPSP, em Porto Alegre, numa unidade de internação para crianças e adolescentes. É importante destacar o comprometimento dos profissionais que atuam naquela unidade, todos muito implicados com os jovens que atendiam. No entanto, o outro fator de destaque, como tinha dito antes, referia-se ao perfil da população, no caso, a grande maioria dos adolescentes internava pela dependência química, especialmente pelo uso do crack, e menos pelas “psicoses”, como a esquizofrenia, por exemplo. Além disso, destaco que muitos desses jovens internavam de um modo muito peculiar: por ordem judicial; ou seja, pelo atravessamento do judiciário. Outro aspecto relevante que caracteriza essa população de um modo geral é que muitos desses jovens usuários do HPSP também tinham passagem pela Fundação de Atendimento Socioeducativo - Fase justamente em função do uso da droga, pois muitos deles, sem dinheiro para comprar a droga da qual dependiam, também atuavam no tráfico ou cometiam alguns delitos para poder sustentar o vício. Além disso, a prática corriqueira da internação por ordem judicial fazia gerar, frequentemente, problemas maiores dentro da instituição. Como exemplo, a superlotação e a própria ideia de atendimento também se tornava complicada, já que muitas vezes os jovens estavam ali apenas para o cumprimento da ordem judicial e para fazer a desintoxicação. Mas depois da alta, o que acontecia é que os jovens retornavam à realidade do seu contexto: voltam para suas comunidades, onde muitos já estão envolvidos com o tráfico de drogas.
Precariedade
A conclusão do estudo apontou para a precária rede de serviços substitutivos à internação psiquiátrica, especialmente em Porto Alegre, onde há defasagem do número de Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, por exemplo, em relação à população e, principalmente, há necessidade de um trabalho de articulação em rede. E no que se refere ao perfil dos jovens, cabe dizer que se trata de uma população previamente excluída de outras instâncias sociais, já que esses jovens não estudam ou possuem um nível de escolaridade bem abaixo do que condiz sua faixa etária, vivem em situação de abandono social, sendo que alguns deles têm passagem por abrigos e possuem vínculos frágeis com suas famílias, e vivem em uma situação econômica também bastante precária. Desse modo, o caminho do tráfico se torna uma opção, já que é não apenas uma fonte de renda, mas de “socialização”.
IHU On-Line - O que significou a institucionalização da loucura, ou seja, a criação de instituições totais para confinamento dos “desviantes”?
Andrea Scisleski - Há um curso muito interessante que Michel Foucault proferiu no Collège de France em meados da década de 1970, chamado Em defesa da sociedade. Ali ele desenvolve a tese de que as instituições são criadas para defender uma determinada norma social. Ou seja, se criamos os manicômios, foi para defender a sociedade, e não os “loucos”. Então, a institucionalização da loucura se dá nessa via, muito mais para proteger os “cidadãos de bem” do que para cuidar dos doentes mentais. Você também utiliza o termo “instituições totais”. É importante dizer que Erving Goffman , inventor dessa expressão, fez uma análise de algumas instituições totais, entre elas o próprio manicômio, e identificou que muitas vezes os pacientes que vão parar em instituições como essas têm como motivadores da internação outros fatores que não necessariamente possuem relação com a doença mental propriamente dita. Um exemplo disso é que uma família pode estar convivendo com aquele paciente já há muito tempo mesmo que ele esteja doente. No entanto, a partir do momento que ele se torna um incômodo é que essa família vai procurar interná-lo. Ainda sobre esse tema, tempos atrás, no que se refere às internações psiquiátricas no HPSP, desenvolvi junto da professora Rosane Neves da Silva (PPG Psicologia Social/UFRGS) e outros pesquisadores uma investigação que analisou, no período de 1884 a 1930, prontuários do referido hospital, na qual pudemos observar a diversidade de motivadores e dos disparadores que levavam crianças à internação, muitas vezes sem uma relação direta com o que estava, naquela época, sendo “ensaiado” como diagnóstico de doenças mentais.
IHU On-Line - A partir do século XIX, a loucura é equiparada a doença mental e deveria ser tratada. Como a loucura é compreendida em nossos dias?
Andrea Scisleski - Aqui você abre para um campo bastante complexo, que extrapolaria a ideia de loucura como doença mental, pois ela também diz respeito a uma polissemia que extravasa o saber científico, já que é uma expressão usual também no cotidiano com diversos sentidos. Entretanto, vou tentar simplificar e colocá-la, aqui, de uma forma bastante reduzida, apenas no sentido restrito de doença mental. Se tomarmos a loucura como sinônimo de doença mental, veremos que hoje ela tenta ser ainda mais reduzida a um tipo de desvio que deve ser controlado e, quando possível, evitado.
IHU On-Line - História da loucura abrange o tema até o século XIX, e o movimento de antipsiquiatria surge nos anos 1960. Assim, há um vínculo específico entre o pensamento de Foucault e esse movimento?
Andrea Scisleski - A década de 1960 é um marco histórico-cultural enquanto crítica aos efeitos do saber da ciência – não é à toa que é nela que ocorre o movimento de Maio de ‘68. Também ressalto que o livro-tese de Foucault, História da loucura na idade clássica, foi publicado na década de 1960. Isto é, foi um período marcado pela crítica à razão e ao saber da ciência positivista, principalmente pelos seus efeitos. Cabe ressaltar também que a geração que viveu a infância no período na II Guerra Mundial tornava-se adulta nesse momento, passando então a expressar movimentos sociais que questionavam o saber de uma ciência mais tradicional, reflexo da própria experiência que viveram. Então, levando em conta esse contexto, sim, há um vínculo desse trabalho de Foucault com o movimento da Reforma Psiquiátrica, mas não apenas ele. O próprio Goffman também publicou a primeira edição de Manicômios, prisões e conventos (5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1996). na década de 1960. Entendo que esse foi um grande contexto para os questionamentos do saber científico, dentre os quais Foucault é um dos grandes pensadores críticos dessa época, juntamente com outros.
IHU On-Line - Em que sentido História da loucura questiona os conceitos de normalidade e doença? É possível falar num outro ponto de vista a partir do corpus teórico dessa obra?
Andrea Scisleski - Prefiro responder a esta questão através de alguns exemplos. Participo de uma pesquisa em uma Estratégia de Saúde da Família que ocorre no interior do nosso estado. Lá, a equipe trouxe uma situação de um menino que tem o diagnóstico de hiperatividade e que esse menino, quando tem que jogar futebol, pede para mãe não lhe dar o remédio, pois ele joga melhor quando não o toma. Trago esse exemplo porque acho que ele ilustra bem essa relação de “saúde/doença”, pois põe em questão esses conceitos, exatamente em uma perspectiva foucaultiana. Acredito que a problematização que Foucault traz no livro é muito mais sobre os critérios da razão do que a loucura propriamente dita. Primeiramente, a construção da loucura como patologia é algo da ordem de uma produção da razão, mas de uma razão que, ao classificar e categorizar, exclui inicialmente pelas práticas de confinamento e internação, e depois pela estigmatização que produz enquanto efeito. Outro exemplo que posso te trazer, também ocorrido no mesmo município – mas certamente não exclusivo deste –, diz respeito às pessoas não gostarem de ter em seus bairros o CAPS, dizendo que é uma instituição que desvaloriza o bairro, diferentemente de um shopping center. Essas colocações são interessantes porque revelam modos de subjetivação que apontam para uma outra forma de “internação”, que diz respeito ao deslocamento “subjetivo” e social, para territórios subjetivos que os usuários dos CAPS, por exemplo, habitam, mas também para o território discriminador que a grande maioria da população também vive. Isso produz uma forma de habitar não apenas geograficamente a cidade, mas também esse espaço subjetivo. Compramos casas pertos de referências comerciais, educacionais, etc., mas não perto de presídios, hospitais psiquiátricos, CAPS, etc. Por quê? O que esses lugares expressam é também a forma como a sociedade enxerga e trata, nesse isolamento, seus usuários, sem falar na noção de “perigo” que eles representam.
IHU On-Line - De que forma podemos compreender a afirmação de Foucault que a psiquiatria é um monólogo da razão sobre a loucura?
Andrea Scisleski - Essa questão se conecta com o que estava colocando antes. A ideia desse “monólogo” é bastante clara, já que apenas a razão fala sobre a loucura e, quando esta tenta “falar” sobre a razão, é calada. No entanto, acho que, ao mesmo tempo, a loucura sempre escapa à razão, que forja cada vez mais manuais, CIDs-10 , DSMs , em busca de aprimorar seus critérios classificatórios, mas algo sempre não se enquadra exatamente ali. Isso que não se enquadra, foge, escapa, e a razão, no seu esforço, não captura totalmente.
IHU On-Line - De que modo o discurso de sanidade e loucura atual é exemplificador da sociedade fragmentária em que vivemos? Essa sociedade se transformou numa “instituição total aberta”?
Andrea Scisleski - Primeiramente é preciso dizer que o conceito de Instituição total é criado por Erving Goffman para se referir a um conjunto de instituições fechadas que apresentam características comuns como o isolamento e apartamento da vida social, divisão entre equipe dirigente e grupo de dirigidos, relação assimétrica de poder, etc. Contudo, Guilhon de Albuquerque desenvolveu uma crítica importante a esse conceito, alegando que vários tipos de instituições podem ser pensadas como totalitárias. Um exemplo que ele mesmo coloca em sua crítica seria o de um navio cruzeiro, ao problematizar que essa embarcação seria um tipo de “instituição total”, se utilizarmos os critérios de Goffman. Dentro dessa perspectiva de Albuquerque, o conceito de instituição total perde a sua força, pois é banalizado. Portanto, concordando com Albuquerque, eu diria que a sociedade não se transformou numa “instituição total aberta”, mas que a sociedade normatiza e normaliza pessoas pela inserção da população em instituições, ou melhor, em organizações. Com isso quero colocar que todos para se tornarem seres “civilizados”, ao menos na realidade ocidental, devem passar por uma socialização institucionalizada: devemos estudar (escola), trabalhar (empresas, fábricas, etc.), casar (família), etc. E para aqueles que não se adequam a esse tipo de socialização, há ainda outras para esses desviantes: prisões, escolas especiais, manicômios/hospitais psiquiátricos, fazendas terapêuticas, etc.
A fragmentação que você se refere, a meu ver, é fruto da própria organização baseada na lógica racional, não exclusiva apenas dos dias de hoje. Obviamente que, hoje, o cenário social que vivemos é um pouco diferente do que no passado. Talvez as práticas e os espaços sociais que temos agora sejam mais ainda fragmentários que antes. Mas eles são uma espécie de “continuidade/descontinuidade” desse momento anterior; são efeitos de uma lógica racional que fragmenta e exclui, colocando vidas em diferentes valores e escalas de classificação.
IHU On-Line - Philippe Pinel alterou significativamente a noção de loucura ao anexá-la à razão. Como compreender, nesse sentido, o louco que comete crimes?
Andrea Scisleski - Sem dúvida Pinel alterou algumas formas de lidar com os loucos, mas isso também se deu dentro de um contexto em que a razão passou, a partir desse momento, a esboçar o entendimento da loucura como doença mental e não apenas como disparates da paixão – para além da dimensão da irracionalidade, já que a doença precisa ser “tratada”. É daí que nasce a ideia de “tratamento moral”, o que também acarretou práticas bastante desumanas, como os banhos surpresas dados ao louco e a própria ideia de confinamento, uma vez que, nessa perspectiva, bastava o doente mental estar dentro de um hospital psiquiátrico para que ele estivesse sendo tratado automaticamente – o manicômio como um espaço terapêutico. Isso é uma coisa.
À margem da margem
Outra coisa é a questão do louco como delinquente, como criminoso, como perigoso. A prática do crime por um doente mental é uma questão interessantíssima e que perturba a razão e as nossas lógicas classificatórias. Não há como não comentar do livro de Foucault, chamado Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Neste livro, ele discute o caso, que trata exatamente disso, de um criminoso e que todos tentavam o diagnosticar também como doente mental, mas o olhar de Foucault está muito mais no enfoque dos pareceres dos psiquiatras e dos juízes na época, do que a do próprio Pierre. O livro consta com alguns desses pareceres e no final, diante dos pareceres, não há um consenso sobre se Pierre seria ou não também doente mental. Deixo essa recomendação de leitura. De qualquer forma, se pensarmos a sobreposição da loucura com o crime, estaremos falando de uma “categoria de vida” que é excluída duplamente, pelo crime e pela doença mental, e que tem em comum o fato de estar na marginalidade, e neste caso, estar à margem da margem.

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