domingo, 12 de junho de 2011

divulgação: FILOSOFIA: O Plano de Imanência

para os colegas que estão empenhados na leitura de deleuze e guattari e que não tiveram acesso à cópia impressa do livro "O que é a filosofia?", sigo na postagem da sequência de textos, agora com o segundo texto do capítulo FILOSOFIA: O Plano de Imanência
Os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Eles nascem de lances de dados, não compõem um quebra-cabeças. E, todavia, eles ressoam, e a filosofia que os cria apresenta sempre um Todo poderoso, não fragmentado, mesmo se permanece aberto: Uno-Todo ilimitado, omnitudo que os compreende a todos num só e mesmo plano. É uma mesa, um platô, uma taça. É um plano de consistência ou, mais exatamente, o plano de imanência dos conceitos, o planômeno. Os conceitos e o plano são estritamente correlativos, mas nem por isso devem ser confundidos. O plano de imanência não é um conceito, nem o conceito de todos os conceitos. Se estes fossem confundíveis, nada impediria os conceitos de se unificarem, ou de tornarem-se universais e de perderem sua singularidade, mas também nada impediria o plano de perder sua abertura. A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos complementares, que diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano. Os conceitos são como as vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola. O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios componentes. De Epicuro a Espinosa (o prodigioso livro V...), de Espinosa a Michaux, o problema do pensamento é a velocidade infinita, mas esta precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente, o plano, o vazio, o horizonte. É necessário a elasticidade do conceito, mas também a fluidez do meio (1.Sobre a elasticidade do conceito, Hubert Damisch, Prefácio a Pros-pectus de Dubuffet, Gallimard, I, pp. 18-19. É necessário os dois para compor "os seres lentos" que nós somos.
Os conceitos são o arquipélago ou a ossatura, antes uma coluna vertebral que um crânio, enquanto o plano é a respiração que banha essas tribos isoladas. Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos, disformes e fragmentários, enquanto o plano é o absoluto ilimitado, informe, nem superfície nem volume, mas sempre fractal. Os conceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina, mas o plano é a máquina abstrata cujos agenciamentos são as peças. Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais: não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria(2. Jean-Pierre Luminet distingue os horizontes relativos, como o horizonte terrestre centrado sobre um observador e se deslocando com ele, e o horizonte absoluto, "horizonte dos acontecimentos", independente de todo observador e que separa os acontecimentos em duas categorias, vistos e não-vistos, comunicáveis e não-comunicáveis ("le trou noir et l'in-fini", in Les dimensions de 1'infini, Instituto Cultural Italiano de Paris). Nós nos reportaremos também ao texto zen do monge japonês Dôgen, que invoca o horizonte ou a "reserva" dos acontecimentos: Shô-bogen-zo, Ed. de Ia Différence, tradução e comentários de René de Ceccaty e Nakamura.). Os conceitos ladrilham, ocupam ou povoam o plano, pedaço por pedaço, enquanto o próprio plano é o meio indivisível em que os conceitos se distribuem sem romper-lhe a integridade, a continuidade: eles ocupam sem contar (a cifra do conceito não é um número), ou se distribuem sem dividir. O plano é como um deserto que os conceitos povoam sem partilhar. São os conceitos mesmos que são as únicas regiões do plano, mas é o plano que é o único suporte dos conceitos. O plano não tem outras regiões senão as tribos que o povoam e nele se deslocam. É o plano que assegura o ajuste dos conceitos, com conexões sempre crescentes, e são os conceitos que asseguram o povoamento do plano sobre uma curvatura renovada, sempre variável.
O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento... Não é um método, pois todo método concerne eventualmente aos conceitos e supõe uma tal imagem. Não é nem mesmo um estado de conhecimento sobre o cérebro e seu funcionamento, já que o pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como ao estado de coisas cientificamente determinável em que ele se limita a efetuar-se, quaisquer que sejam seu uso e sua orientação. Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento, de suas formas, de seus fins e seus meios a tal ou tal momento. A imagem do pensamento implica uma severa repartição do fato e do direito: o que concerne ao pensamento, como tal, deve ser separado dos acidentes que remetem ao cérebro, ou às opiniões históricas. "Quid júris}" Por exemplo, perder a memória, ou estar louco, isto pode pertencer ao pensamento como tal, ou são somente acidentes do cérebro que devem ser considerados como simples fatos? E contemplar, refletir, comunicar são outra coisa senão opiniões que se faz sobre o pensamento, a tal época e em tal civilização? A imagem do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito. O pensamento reivindica "somente" o movimento que pode ser levado ao infinito. O que o pensamento reivindica de direito, o que ele seleciona, é o movimento infinito ou o movimento do infinito. E ele que constitui a imagem do pensamento.
O movimento do infinito não remete a coordenadas espaço-temporais, que definiriam as posições sucessivas de um móvel e os pontos fixos de referência, com relação aos quais estas variam. "Orientar-se no pensamento" não implica nem num ponto de referência objetivo, nem num móvel que se experimentasse como sujeito e que, por isso, desejaria o infinito ou teria necessidade dele. O movimento tomou tudo, e não há lugar nenhum para um sujeito e um objeto que não podem ser senão conceitos. O que está em movimento é o próprio horizonte: o horizonte relativo se distancia quando o sujeito avança, mas o horizonte absoluto, nós estamos nele sempre e já, no plano de imanência. O que define o movimento infinito é uma ida e volta, porque ele não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si, a agulha sendo também o pólo. Se "voltar-se para..." é o movimento do pensamento na direção do verdadeiro, como o verdadeiro não se voltaria também na direção do pensamento? E como não se afastaria o próprio verdadeiro do pensamento, quando o pensamento dele se afasta? Não é uma fusão, entretanto, é uma reversibilidade, uma troca imediata, perpétua, instantânea, um clarão. O movimento infinito é duplo, e não há senão uma dobra de um a outro. É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser. Quando salta o pensamento de Tales, é como água que o pensamento retorna. Quando o pensamento de Heráclito se faz polémos, é o fogo que retorna sobre ele. É uma mesma velocidade de um lado e do outro: "o átomo vai tão rápido quanto o pensamento"(3Epicuro, Carta a Heródoto, 61-62). O plano de imanência tem duas faces, como Pensamento e como Natureza, como Physis e como Noüs. É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos presos uns nos outros, dobrados uns nos outros, na medida em que o retorno de um relança um outro instantaneamente, de tal maneira que o plano de imanência não pára de se tecer, gigantesco tear. Vol-tar-se-para não implica somente se desviar, mas enfrentar, voltar-se, retornar, perder-se, apagar-se (4Sobre estes dinamismos, cf. Michel Courthial, Le visage, no prelo). Mesmo o negativo produz movimentos infinitos: cair no erro, bem como evitar o falso, deixar-se dominar pelas paixões, bem como superá-las. Diversos movimentos do infinito são de tal maneira misturados uns com os outros que, longe de romper o Uno-Todo do plano de imanência, constituem sua curvatura variável, as concavidades e as convexidades, a natureza fractal de alguma maneira. É esta natureza fractal que faz do planômeno um infinito sempre diferente de toda superfície ou volume determinável como conceito. Cada movimento percorre todo o plano, fazendo um retorno imediato sobre si mesmo, cada um se dobrando, mas também dobrando outros ou deixando-se dobrar, engendrando retroações, conexões, proliferações, na fractalização desta infinidade infinitamente redobrada (curvatura variável do plano). Mas, se é verdade que o plano de imanência é sempre único, sendo ele mesmo variação pura, tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanência variados, distintos, que se sucedem ou rivalizam na história, precisamente segundo os movimentos infinitos retidos, selecionados. O plano não é, certamente, o mesmo nos gregos, no século XVII, hoje (e ainda estes termos são vagos e gerais): não é nem a mesma imagem do pensamento, nem a mesma matéria do ser. O plano é pois o objeto de uma especificação infinita, que faz com que ele não pareça ser o Uno-Todo senão em cada caso especificado pela seleção do movimento. Esta dificuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode ser resolvida progressivamente.
É essencial não confundir o plano de imanência e os conceitos que o ocupam. E todavia os mesmos elementos podem aparecer duas vezes, sobre o plano e no conceito, mas -jamais sob os mesmos traços, mesmo quando se exprimem nos mesmos verbos e nas mesmas palavras: já o vimos quanto ao ser, ao pensamento, ao Uno; eles entram em componentes de conceito e são eles mesmos conceitos, mas de uma maneira tão diferente que não pertencem ao plano como imagem ou matéria. Inversamente, o verdadeiro sobre o plano não pode ser definido senão por um "voltar-se na direção de...", ou "aquilo em cuja direção o pensamento se volta"; mas não dispomos assim de nenhum conceito de verdade. Se o próprio erro é um elemento de direito que faz parte do plano, ele consiste somente em tomar o falso pelo verdadeiro (cair), mas só recebe um conceito se são determinados seus componentes (por exemplo, segundo Descartes, os dois componentes de um entendimento finito e de uma vontade infinita). Os movimentos ou elementos do plano não parecerão pois senão definições nominais, com relação aos conceitos, enquanto negligenciarmos a diferença de natureza.
Mas, na realidade, os elementos do plano são traços diagramáticos, enquanto os conceitos são traços intensivos. Os primeiros são movimentos do infinito, enquanto os segundos são as ordenadas intensivas desses movimentos, como cortes originais ou posições diferenciais: movimentos finitos, cujo infinito só é de velocidade, e que constituem cada vez uma superfície ou um volume, um contorno irregular marcando uma parada no grau de proliferação. Os primeiros são direções absolutas de natureza fractal, ao passo que os segundos são dimensões absolutas, superfícies ou volumes sempre fragmentários, definidos intensivamente. Os primeiros são intuições, os segundos, intensões. Que toda filosofia dependa de uma intuição, que seus conceitos não cessam de desenvolver até o limite das diferenças de intensidade, esta grandiosa perspectiva leibniziana ou bergsoniana está fundada se consideramos a intuição como o envolvimento dos movimentos infinitos do pensamento, que percorrem sem cessar um plano de imanência. Não se concluirá daí que os conceitos se deduzam do plano: para tanto é necessário uma construção especial, distinta daquela do plano, e é por isso que os conceitos devem ser criados, do mesmo modo que o plano deve ser erigido. Jamais os traços intensivos são a conseqüência dos traços diagramáticos, nem as ordenadas intensivas se deduzem dos movimentos ou direções. A correspondência entre os dois excede mesmo as simples ressonâncias e faz intervir instâncias adjuntas à criação dos conceitos, a saber, os personagens conceituais.
Se a filosofia começa com a criação de conceitos, o plano de imanência deve ser considerado como pré-filosófico. Ele está pressuposto, não da maneira pela qual um conceito pode remeter a outros, mas pela qual os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. Esta compreensão intuitiva varia ainda segundo a maneira pela qual o plano está traçado. Em Descartes, tratar-se-ia de uma compreensão subjetiva e implícita suposta pelo Eu penso como primeiro conceito; em Platão, era a imagem virtual de um já-pensado que redobraria todo conceito atual. Heidegger invoca uma "compreensão préontológica do Ser", uma compreensão "pré-conceitual" que parece bem implicar a captação de uma matéria do ser em relação com uma disposição do pensamento. De qualquer maneira, a filosofia coloca como préfilosófica, ou mesmo não-filosófica, a potência de um Uno-Todo como um deserto movente que os conceitos vêm a povoar. Pré-filosófica não significa nada que preexista, mas algo que não existe fora da filosofia, embora esta o suponha. São suas condições internas. O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceituai, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos nãofilósofos(5François Laruelle desenvolve uma das tentativas mais interessantes da filosofia contemporânea: invoca um Uno-Todo que qualifica de "não-filosófico" e, estranhamente, de "científico", sobre o qual se enraíza a "decisão filosófica". Este Uno-Todo parece próximo de Espinosa. Cf. Philosophie et non-philosopbie, Ed. Mardaga). Veremos que esta remissão constante à não-filosofia assume aspectos variados; de acordo com este primeiro aspecto, a filosofia, definida como criação de conceitos, implica uma pressuposição que dela se distingue, e que todavia dela é inseparável. A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceito e instauração do plano. O conceito é o começo da filosofia, mas o plano é sua instauração(6Etienne Souriau publicou em 1939 Uinstauration pbilosophique, Ed. Alcan: sensível à atividade criadora em filosofia, ele invoca uma espécie de plano de instauração como solo desta criação, ou "filosofema", animado de dinamismos (pp. 62-63)). O plano não consiste evidentemente num programa, num projeto, num fim ou num meio; é um plano de imanência que constitui o solo absoluto da filosofia, sua Terra ou sua desterritorialização, sua fundação, sobre os quais ela cria seus conceitos. Ambos são necessários, criar os conceitos e instaurar o plano, como duas asas ou duas nadadeiras.
Pensar suscita a indiferença geral. E todavia não é falso dizer que é um exercício perigoso. É somente quando os perigos se tornam evidentes que a indiferença cessa, mas eles permanecem freqüentemente escondidos, pouco perceptíveis, inerentes à empresa. Precisamente porque o plano de imanência é préfilosófico, e já não opera com conceitos, ele implica uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso. Corremos em direção ao horizonte, sobre o plano de imanência; retornamos dele com olhos vermelhos, mesmo se são os olhos do espírito. Mesmo Descartes tem seu sonho. Pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa. Por exemplo, o plano de imanência de Michaux, com seus movimentos e suas velocidades infinitas, furiosas. O mais das vezes, esses meios não aparecem no resultado, que deve ser tomado em si mesmo e calmamente. Mas então "perigo" toma um outro sentido: trata-se de conseqüências evidentes, quando a imanência pura suscita, na opinião, uma forte reprovação instintiva, e a natureza dos conceitos criados ainda vem redobrar a reprovação. É que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa, algo que não pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma partícula, que retornam sobre o pensamento e o relançam.
O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é um movimento de uma a outra mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte ou estacionado, não  uma mistura ao acaso. O caos caotiza, e desfaz no infinito toda consistência. O problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, deste ponto de  vista, tem uma existência tanto mental como física). Dar consistência sem nada perder do infinito é muito diferente do problema da ciência, que procura dar referências ao caos, sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos, e de operar, desde início, uma limitação de velocidade: o que é primeiro na ciência é a luz ou o horizonte relativo. A filosofia, ao contrário, procede supondo ou instaurando o plano de imanência: é ele, cujas curvaturas variáveis conservam os movimentos infinitos que retornam sobre si na troca incessante, mas também não cessam de liberar outras que se conservam. Então, resta aos conceitos traçar as ordenadas intensivas destes movimentos infinitos, como movimentos eles mesmos finitos que formam, em velocidade infinita, contornos variáveis inscritos sobre o plano. Operando um corte do caos, o plano de imanência faz apelo a uma criação de conceitos. À questão: a filosofia pode ou deve ser considerada como grega?, uma primeira resposta pareceu ser que a cidade grega, com efeito, se apresenta como a nova sociedade dos "amigos", com todas as ambigüidades desta palavra.
Jean-Pierre Vernant acrescenta uma segunda resposta: os gregos seriam os primeiros a ter concebido uma imanência estrita da Ordem a um meio cósmico que corta o caos à maneira de um plano. Se se chama de Logos um tal plano-crivo, grande é a distância entre o Logos e a simples "razão" (como quando se diz que o mundo é racional). A razão é apenas um conceito, e um conceito bem pobre para definir o plano e os movimentos infinitos que o percorrem. Numa palavra, os primeiros filósofos são aqueles que instauram um plano de imanência como um crivo estendido sobre o caos. Eles se opõem, neste sentido, aos Sábios, que são personagens da religião, sacerdotes, porque concebem a instauração de uma ordem sempre transcendente, imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos outros, inspirado por Eris, na seqüência de guerras que ultrapassam todo agôn e de ódios que recusam desde o início as provas da rivalidade(7Cf. Jean-Pierre Vernant, Les origines de Ia pensée grecque, P.U.F., pp. 105-125). Há religião cada vez que há transcendência, Ser vertical, Estado imperial no céu ou sobre a terra, e há Filosofia cada vez que houver imanência, mesmo se ela serve de arena ao agôn e à rivalidade (os tiranos gregos não seriam uma objeção, porque eles estão plenamente do lado da sociedade dos amigos tal como ela se apresenta através de suas rivalidades mais loucas, mais violentas). E estas duas determinações eventuais da filosofia como grega estão talvez profundamente ligadas. Só os amigos podem estender um plano de imanência como um solo que se esquiva dos ídolos. Em Empédocles, é Filia que o traça, mesmo se ela não retorna sobre mim sem dobrar o Ódio como o movimento tornado negativo que testemunha uma sub-transcendência do caos (o vulcão) e uma sobre-transcendência de um deus. Pode ser que os primeiros filósofos, e sobretudo Empédocles, tenham ainda o ar de sacerdotes ou mesmo de reis. Eles se apropriam da máscara do sábio, e, como diz Nietzsche, como a filosofia não se disfarçaria em seus primórdios? E mesmo, poderá ela jamais prescindir dos disfarces? Se a instauração da filosofia se confunde com a suposição de um plano pré-filosófico, como a filosofia não tiraria proveito disso para pôr uma máscara? Resta que os primeiros filósofos traçam um plano, que movimentos ilimitados não cessam de percorrer, sobre duas faces, das quais uma é determinável como Physis, na medida em que dá uma matéria ao Ser, e a outra como Noüs, enquanto dá uma imagem ao pensamento. É Anaximandro que leva ao maior rigor a distinção das duas faces, combinando o movimento das qualidades com a potência de um horizonte absoluto, o Apeiron ou o Ilimitado, mas sempre sobre o mesmo plano. O filósofo opera um vasto seqüestro da sabedoria, ele a põe a serviço da imanência pura. Ele substitui a genealogia por uma geologia.
EXEMPLO III
Pode-se apresentar toda a história da filosofia do ponto de vista da instauração de um plano de imanência? Distinguir-se-iam então os fisicalistas, que insistem sobre a matéria do Ser, e os noologistas, sobre a imagem do pensamento. Mas um risco de confusão surge muito rápido: em vez de o plano de imanência, ele mesmo, constituir esta matéria do Ser ou esta imagem do pensamento, é a imanência que seria remetida a algo que seria como um "dativo", Matéria ou Espírito. É o que se torna evidente com Platão e seus sucessores. Em vez de um plano de imanência constituir o Uno-Todo, a imanência está "no" Uno, de tal modo que um outro Uno, desta vez transcendente, se superpõe àquele no qual a imanência se estende ou ao qual ela se atribui: sempre um Uno para além do Uno, será a fórmula dos neoplatônicos. Cada vez que se interpreta a imanência como "a" algo, produz-se uma confusão do plano com o conceito, de modo que o conceito se torna um universal transcendente, e o plano, um atributo no conceito. Assim mal entendido, o plano de imanência relança o transcendente: é um simples campo de fenômenos que só possui secundariamente o que se atribui de início à unidade transcendente. Com a filosofia cristã a situação piora. A posição de imanência continua sendo a instauração filosófica pura, mas ao mesmo tempo ela só é suportada em doses muito pequenas, ela é severamente controlada e enquadrada pelas exigências de uma transcendência ema-nativa e sobretudo criativa. Cada filósofo deve demonstrar, com o risco de sua obra e por vezes de sua vida, que a dose de imanência, que ele injeta no mundo e no espírito, não compromete a transcendência de um Deus ao qual a imanência não deve ser atribuída senão secundariamente (Nicolau de Cusa, Eckhart, Bruno). A autoridade religiosa quer que a imanência não seja sustentada senão localmente ou num nível intermediário, um pouco como numa fonte em cascata na qual a água pode brevemente manar sobre cada plataforma, mas sob a condição de vir de uma fonte mais alta e descer mais baixo (transascendência e transdescendência, como dizia Wahl). Da imanência, pode-se estimar que ela seja a pedra de toque incandescente de toda a filosofia, porque toma para si todos os perigos que esta deve enfrentar, todas as condenações, perseguições e denegações que ela sofre. Isso demonstra, ao menos, que o problema da imanência não é abstrato ou somente teórico. À primeira vista, não se vê por que a imanência é tão perigosa, mas é assim. Ela engole os sábios e os deuses. A parte da imanência, ou a parte do fogo, é por ela que se reconhece o filósofo. A manência só é imanente a si mesma, e então toma tudo, absorve o Todo-Uno, e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente. Em todo caso, cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo, pode-se estar certo que este Algo reintroduz o transcendente.
A partir de Descartes, e com Kant e Husserl, o cogito torna possível tratar o plano de imanência como um campo de consciência. É que a imanência é suposta ser imanente a uma consciência pura, a um sujeito pensante. Este sujeito, Kant o nomeará transcendental e não transcendente, precisamente porque é o sujeito do campo de imanência de toda experiência possível, ao qual nada escapa, o exterior bem como o interior. Kant recusa todo uso transcendente da síntese, mas remete a imanência ao sujeito da síntese, como nova unidade, unidade subjetiva. Ele pode até mesmo dar-se ao luxo de denunciar as Idéias transcendentes, para fazer delas o "horizonte" do campo imanente ao sujeito (8) Kant, Crítica da Razão pura: o espaço como forma da exterioridade não está menos "em nós" que o tempo como forma da interioridade ("Crítica do quarto paralogismo"). E sobre a Idéia como "horizonte", cf. "Apêndice à dialética transcendental".
Mas, fazendo isso, Kant encontra a maneira moderna de salvar a transcendência: não é mais a transcendência de um Algo, ou de um Uno superior a toda coisa (contemplação), mas a de um Sujeito ao qual o campo de imanência é atribuído por pertencer a um eu que se representa necessariamente um tal sujeito (reflexão). O mundo grego, que não pertencia a ninguém, se torna cada vez mais a propriedade de uma consciência cristã. Mais um passo ainda: quando a imanência se torna imanente "a" uma subjetividade transcendental, é no seio de seu próprio campo que deve aparecer a marca ou a cifra de uma transcendência, como ato que remete agora a um outro eu, a uma outra consciência (comunicação). É o que se passa com Husserl e com muitos de seus sucessores, que descobrem no Outro ou na Carne o trabalho de toupeira do transcendente na própria imanência. Husserl concebe a imanência como a de um fluxo do vivido na subjetividade, mas como todo este vivido, puro e mesmo selvagem, não pertence inteiramente ao eu que a representa para si, é nas regiões de não-pertença que se restabelece, no horizonte, algo de transcendente: uma vez sob a forma de uma "transcendência imanente ou primordial" de um mundo povoado de objetos intencionais, uma outra vez como transcendência privilegiada de um mundo intersubjetivo povoado de outros eus, uma terceira vez como transcendência objetiva de um mundo ideal povoado de formações culturais e pela comunidade dos homens.
Neste momento moderno, não nos contentamos mais em pensar a imanência a um transcendente, quer-se pensar a transcendência no interior do imanente, e é da imanência que se espera uma ruptura. Assim, em Jaspers, o plano de imanência receberá a mais profunda determinação como "Englobante", mas este englobante não será mais que uma bacia para as erupções de transcendência. A palavra judaico-cristã substitui o logos grego: não nos contentamos em atribuir a imanência, fazemos com que ela em toda parte faça transbordar o transcendente. Não basta mais conduzir a imanência ao transcendente, quer-se que ela remeta a ele e o reproduza, que ela mesma o fabrique. Para falar a verdade, isto não é difícil, basta parar o movimento(9) Raymond Bellour, Uentre-images, Ed. de Ia Différence, p. 132: sobre a ligação da transcendência com a interrupção de movimento ou a "imagem congelada"). Desde que se pare o movimento do infinito, a transcendência desce, ela disso se aproveita para ressurgir, erguer-se novamente, reassumir todo o seu relevo. As três espécies de Universais, contemplação, reflexão, comunicação, são como três idades da filosofia, a Eidética, a Crítica e a Fenomenologia, que não se separam da história de uma longa ilusão. Era necessário ir até aí na inversão dos valores: fazer-nos acreditar que a imanência é uma prisão (solipsismo...) de que o Transcendente pode salvar-nos.
A suposição de Sartre, de um campo transcendental impessoal, devolve à imanência seus direitos(10Sartre, La transcendence de l'Ego, Ed. Vrin (invocação de Espinosa, p. 23). É quando a imanência não mais é imanente a outra coisa senão a si que se pode falar de um plano de imanência. Um tal plano é talvez um empirismo radical: ele não apresenta um fluxo do vivido imanente a um sujeito, e que se individualiza no que pertence a um eu. Ele não apresenta senão acontecimentos, isto é, mundos possíveis enquanto conceitos, e outrem, como expressões de mundos possíveis ou personagens conceituais. O acontecimento não remete o vivido a um sujeito transcendente = Eu, mas remete, ao contrário, ao sobrevôo imanente de um campo sem sujeito; Outrem não devolve a transcendência a um outro eu, mas traz todo outro eu à imanência do campo sobrevoado. O empirismo não conhece senão acontecimentos e outrem, pois ele é grande criador de conceitos. Sua força começa a partir do momento em que define o sujeito: um habitus, um hábito, apenas um hábito num campo de imanência, o hábito de dizer Eu...
Quem sabia plenamente que a imanência não pertencia senão a si mesma, e assim que ela era um plano percorrido pelos movimentos do infinito, preenchido pelas ordenadas intensivas, era Espinosa. Assim, ele é o príncipe dos filósofos. Talvez o único a não ter aceitado nenhum compromisso com a transcendência, a tê-la expulsado de todos os lugares. Ele fez o movimento do infinito, e deu ao pensamento velocidades infinitas no terceiro gênero do conhecimento, no último livro da Ética. Ele aí atinge velocidades inauditas, atalhos tão fulgurantes, que não se pode mais falar senão de música, de tornado, de vento e de cordas. Ele encontrou a liberdade tão-somente na imanência. Ele finalizou a filosofia, porque preencheu sua suposição pré-filosófica. Não é a imanência que se remete à substância e aos modos es-pinosistas, é o contrário, são os conceitos espinosistas de substância e de modos que se remetem ao plano de imanência como a seu pressuposto. Este plano nos mostra suas duas faces, a extensão e o pensamento, ou, mais exatamente, suas duas potências, potência de ser e potência de pensar. Espinosa é a vertigem da imanência da qual tantos filósofos tentam em vão escapar. Chegaremos a estar maduros para uma inspiração espinosista? Aconteceu com Bergson, uma vez: o princípio de Matière et mé-moire traça um plano que corta o caos, ao mesmo tempo movimento infinito de uma matéria que não pára de se propagar e a imagem de um pensamento que não pára de fazer proliferar por toda parte uma pura consciência de direito (não é a imanência que é imanência "à" consciência, mas o inverso). Ilusões envolvem o plano. Não são contra-sensos abstratos, nem somente pressões de fora, mas miragens do pensamento. Explicam-se pelo peso de nosso cérebro, pela circulação estereotipada das opiniões dominantes, e porque não podemos suportar estes movimentos infinitos, nem dominar estas velocidades infinitas que nos destruiriam (então devemos parar o movimento, fazermo-nos novamente prisioneiros de um horizonte relativo)? E, todavia, somos nós que corremos sobre o plano de imanência, que
estamos no horizonte absoluto. É necessário, em parte ao menos, que as ilusões se ergam do próprio plano, como os vapores de um pântano, como as exalações pré-socráticas que se desprendem da transformação dos elementos sempre em obra sobre o plano. Artaud dizia: "o plano de consciência" ou o plano de  imanência ilimitado — o que os indianos chamam de Ciguri — engendra também alucinações, percepções errôneas, sentimentos maus...(11Artaud, Les Tarabumaras, (Obras completas, Gallimard, IX).) Seria necessário fazer a lista dessas ilusões, tomar-lhes a medida, como Nietzsche, depois de Espinosa, fazia a lista dos "quatro grandes erros". Mas a lista é infinita. Há, de início, a ilusão de transcendência, que talvez preceda todas as outras (sob um duplo aspecto, tornar a imanência imanente a algo, e reencontrar uma transcendência, na própria imanência). Depois a ilusão dos universais, quando se confundem os conceitos com o plano; mas esta confusão se faz quando se coloca uma imanência em algo, já que este algo é necessariamente conceito: crê-se que o universal explique, enquanto é ele que deve ser explicado, e cai-se numa tripla ilusão, a da contemplação, ou da reflexão, ou da comunicação. Depois, ainda, a ilusão do eterno, quando esquecemos que os conceitos devem ser criados. Depois a ilusão da discursividade, quando confundimos as proposições com os conceitos... Precisamente, não convém acreditar que todas estas ilusões se encadeiem logicamente como proposições; elas ressoam ou reverberam, e formam uma névoa espessa em torno do plano.
O plano de imanência toma do caos determinações, com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traços diagramáticos. Pode-se, deve-se então supor uma multiplicidade de planos, já que nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair, e que todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos. Se a história da filosofia apresenta tantos planos muito distintos, não é somente por causa das ilusões, da variedade das ilusões, não é somente porque cada um tem sua maneira sempre recomeçada de relançar a transcendência; é também, mais profundamente, em sua maneira de fazer a imanência. Cada plano opera uma seleção do que cabe de direito ao pensamento, mas é esta seleção que varia de um para outro. Cada plano de imanência é Uno-Todo: não é parcial como um conjunto científico, nem fragmentário como os conceitos, mas distributivo, é um "cada um". O plano de imanência é folhado. É, sem dúvida, difícil estimar, em cada caso comparado, se há um só e mesmo plano, ou vários diferentes; os pré-socráticos têm uma imagem comum do pensamento, malgrado as diferenças entre Heráclito e Parmênides? Pode-se falar de um plano de imanência ou de uma imagem do pensamento dita clássica, que se manteria de Platão a Descartes?
O que varia não são somente os planos, mas a maneira de distribuí-los. Há somente pontos de vista mais ou menos longínquos ou aproximados, que permitem agrupar as folhas diferentes sobre um período bastante longo, ou, ao contrário, separar folhas sobre um plano que pareceria comum — e de onde viriam estes pontos de vista, malgrado o horizonte absoluto? Podemos contentar-nos aqui com um historicismo, um relativismo generalizado? Com relação a tudo isto, a questão do uno ou do múltiplo torna-se novamente a mais importante ao introduzir-se no plano.
No limite, não é todo grande filósofo que traça um novo plano de imanência, que traz uma nova matéria do ser e erige uma nova imagem do pensamento, de modo que não haveria dois grandes filósofos sobre o mesmo plano? É verdade que nós não imaginamos um grande filósofo do qual não se pudesse dizer: ele mudou o que significa pensar, "pensou de outra maneira" (segundo a fórmula de Foucault). E quando se distinguem várias filosofias num mesmo autor, não é porque ele próprio tinha mudado de plano, encontrado mais uma nova imagem? Não se pode ser insensível à queixa de Biran, próximo da morte, "eu me sinto um pouco velho para recomeçar a construção"(12Biran, Sa vie et ses pensées, Ed. Naville (ano 1823), p. 357). Em contrapartida, não são filósofos aqueles funcionários  que não renovam a imagem do pensamento, e não têm sequer consciência do problema, na beatitude de um pensamento inteiramente pronto, que ignoram até o labor daqueles que pretendem tomar por modelos. Mas, então, como se entender em filosofia, se há todas estas folhas que ora se juntam e ora se separam? Não estamos condenados a tentar traçar nosso próprio plano, sem saber quais ele vai superpor? Não é reconstituir uma espécie de caos? E esta é a razão pela qual cada plano não é somente folhado, mas esburacado, deixando passar essas né-voas que o envolvem e nas quais o filósofo que o traçou arrisca-se freqüentemente a ser o primeiro a se perder. Que haja tantas névoas que sobem, nós o explicamos pois de duas maneiras. Antes de mais nada porque o pensamento não pode impedir-se de interpretar a imanência como imanente a algo, grande Objeto da contemplação, Sujeito da reflexão, Outro sujeito da comunicação: é fatal então que a transcendência seja introduzida. E se não se pode escapar a isso, é porque cada plano de imanência, ao que parece, não pode pretender ser único, ser O plano, senão reconstituindo o caos que devia conjurar: você tem a escolha entre a transcendência e o caos...
EXEMPLO IV
Quando o plano seleciona o que cabe de direito ao pensamento para fazer dele seus traços, intuições, direções ou movimentos diagramáticos, ele remete outras determinações ao estado de simples fatos, caracteres de estados de coisas, conteúdos vividos. E certamente a filosofia poderá tirar conceitos destes estados de coisas, desde que ela deles extraia o acontecimento. Mas não é essa a questão. O que pertence de direito ao pensamento, o que está retido como traço diagramático em si, rejeita outras determinações rivais (mesmo se estas são destinadas a receber um conceito). Assim Descartes faz do erro o traço ou a direção que exprime, de direito, o negativo do pensamento. Não é o primeiro a fazê-lo, e podemos considerar o "erro" como um dos traços principais da imagem clássica do pensamento. Não se ignora, numa tal imagem, que há muitas outras coisas que ameaçam o pensar: a burrice, a amnésia, a afasia, o delírio, a loucura...; mas todas estas determinações serão consideradas como fatos, que não possuem senão um único efeito imanente de direito no pensamento, o erro, sempre o erro. O erro é o movimento infinito que recolhe todo o negativo. Pode-se fazer remontar este traço até Sócrates, para quem o mau (de fato) é, de direito, alguém que "se engana"? Mas, se é verdade que o Teeteto é uma fundação do erro, não resguarda Platão os direitos de outras determinações rivais, como o delírio do Fedro, a tal ponto que a imagem do pensamento em Platão nos parece também traçar outras tantas vias? Ocorre uma grande mudança, não somente nos conceitos, mas na imagem do pensamento, quando a ignorância e a superstição vão substituir o erro e o preconceito para exprimir, de direito, o negativo do pensamento: Fontenelle desempenha aqui um grande papel, e o que muda é ao mesmo tempo os movimentos infinitos nos quais o pensamento se perde e se conquista. Mais ainda, quando Kant marcar que o pensamento está ameaçado, não tanto pelo erro, mas por ilusões inevitáveis que vêm de dentro da razão, como de uma zona ártica interior, onde a agulha de qualquer bússola enlouquece, é uma reorientação de todo o pensamento que se torna necessária, ao mesmo tempo que nele se insinua um certo delírio de direito. Ele não está mais ameaçado no plano de imanência por buracos ou sulcos de um caminho que segue, mas pelas névoas nórdicas que recobrem tudo. A própria questão, "orientar-se no pensamento", muda de sentido.
Um traço não é isolável. Com efeito, o movimento afetado por um signo negativo vê-se ele mesmo dobrado em outros movimentos, em signos positivos ou ambíguos. Na imagem clássica, o erro não exprime de direito o que pode acontecer de pior ao pensamento, sem que o pensamento se apresente ele mesmo como "desejando" o verdadeiro, orientado na direção do verdadeiro, voltado para o verdadeiro: o que está suposto é que todo o mundo sabe o que quer dizer pensar, portanto é capaz, de direito, de pensar. É esta confiança, que não exclui o humor, que anima a imagem clássica: uma remissão à verdade que constitui o movimento infinito do conhecimento como traço diagramático. O que manifesta, ao contrário, a mutação da luz no século XVIII, da "luz natural" em "Luzes", é a substituição do conhecimento pela crença, isto é, um novo movimento infinito que implica uma outra imagem do pensamento: não se trata mais de se voltar em direção de, mas de seguir a pista, de inferir, mais do que captar ou ser captado. Sob quais condições uma inferência é legítima? Sob quais condições uma crença tornada profana pode ser legítima? Esta questão só encontrará suas respostas com a criação dos grandes conceitos empiristas (associação, relação, hábito, probabilidade, convenção...), mas inversamente estes conceitos, entre eles aquele de que a própria crença recebe, pressupõem os traços diagramáticos que fazem da crença um movimento infinito independente da religião, percorrendo o novo plano de imanência (e é a crença religiosa, ao contrário, que se tornará um caso conceitualizável, do qual se poderá medir, segundo a ordem do infinito, a legitimidade ou a ilegitimidade). Certamente, encontraremos em Kant muitos desses traços herdados de Hume, mas ao preço de uma profunda mutação num novo plano ou segundo uma outra imagem. São sempre grandes audácias. O que muda de um plano de imanência a um outro, quando muda a repartição do que cabe de direito ao pensamento, não são somente os traços positivos ou negativos, mas os traços ambíguos, que se tornam eventualmente cada vez mais numerosos, e que não se contentam mais em dobrar segundo uma oposição vetorial de movimentos.
e tentamos, também sumariamente, traçar as linhas de uma imagem moderna do pensamento, não é de uma maneira triunfante, mesmo que seja no horror. Nenhuma imagem do pensamento pode contentar-se em selecionar determinações calmas, e todas encontram algo de abominável de direito, seja o erro no qual o pensamento não cessa de cair, seja a ilusão na qual não cessa de girar, seja a burrice na qual não cessa de se afundar, seja o delírio no qual não cessa de se desviar de si mesmo ou de um deus. Já a imagem grega do pensamento invocava a loucura do desvio duplo, que jogava o pensamento na errância infinita, mais do que no erro. Jamais a relação do pensamento com o verdadeiro foi um negócio simples, ainda menos constante, nas ambigüidades do movimento infinito. É por isso que é vão invocar uma tal relação para definir a filosofia.
O primeiro caráter da imagem moderna do pensamento é talvez o de renunciar completamente a esta relação, para considerar que a verdade é somente o que o pensamento cria, tendo-se em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto, e todos os traços deste plano, negativos tanto quanto positivos, tornados indiscerníveis: pensamento é criação, não vontade de verdade, como Nietzsche soube mostrar. Mas se não há vontade de verdade, contrariamente ao que aparecia na imagem clássica, é que o pensamento constitui uma simples "possibilidade" de pensar, sem definir ainda um pensador que seria "capaz" disso e poderia dizer Eu: que violência se deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar, violência de um movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu? Textos célebres de Heidegger e de Blanchot expõem este segundo caráter. Mas, como terceiro caráter, se há assim um "Impoder" do pensamento (que reside em seu coração, quando adquire a capacidade determinável como criação), eis que um conjunto de signos ambíguos se ergue, que se tornam traços diagramáticos ou movimentos infinitos, que assumem um valor de direito, enquanto não passavam de simples fatos derrisórios rejeitados sem seleção em outras imagens do pensamento: como o sugere Kleist ou Artaud, é o pensamento enquanto tal que se põe a ter ríctus, rangidos, gague-jos, glossolalias, gritos que o levam a criar, ou a ensaiar(13Cf. Kleist, "De 1'élaboration progressive des idées dans le discours" (Anedoctes et petits écrits, Ed. Payot, p. 77). E Artaud, "Correspondance avec Rivière" (Obras completas, I).  E se o pensamento procura, é menos à maneira de um homem que disporia de um método, que à maneira de um cão que pula desordenadamente...
Não há por que envaidecer-se por uma tal imagem do pensamento, que comporta muitos sofrimentos sem glória e que indica quanto o pensar tornou-se cada vez mais difícil: a imanência. A história da filosofia é comparável à arte do retrato. Não se trata de "fazer parecido", isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou. São retratos mentais noéticos, maquínicos. E, embora sejam feitos ordinariamente com meios filosóficos, pode-se também produzi-los esteticamente. É assim que Tinguely apresentou recentemente monumentais retratos maquínicos de filósofos, operando poderosos movimentos infinitos, conjuntos ou alternativos, redobráveis e desdobráveis, com sons, clarões, matérias de ser e imagens de pensamento, segundo planos curvos complexos(14 Tinguely, catálogo Beaubourg, 1989). E, todavia, se é permitido apresentar uma crítica a um artista tão grandioso, parece que a tentativa não está ainda no ponto. Nada dança no Nietzsche, enquanto que Tinguely soube tão bem, em outro lugar, fazer dançar as máquinas. O Schopenhauer nada nos revela de decisivo, quando as quatro Raízes, o véu de Maya parecem inteiramente prontos para ocupar o plano bifacial do Mundo como vontade e como representação. O Hei-degger não retém nenhum velamento-desvelamento sobre o plano de um pensamento que não pensa ainda.
Talvez tivesse sido necessário prestar mais atenção ao plano de imanência traçado como máquina abstrata, e aos conceitos criados como peças da máquina. Poder-se-ia imaginar, neste sentido, um retrato maquínico de Kant, ilusões compreendidas (ver esquema acima). 
1. - O "Eu penso" com cabeça de boi, sonorizado, que não cessa de repetir Eu = Eu. / 2. - As categorias como conceitos universais (quatro grandes títulos): fios extensíveis e retrácteis seguindo o movimento circular de 3. / 3. - A roda móvel dos esquemas. / 4. - O pouco profundo riacho, o tempo como forma da interiorida-de na qual mergulha e emerge a roda dos esquemas. / 5. - O Espaço como forma da exterioridade: margens e fundo. / 6. - O eu passivo no fundo do riacho e como junção das duas formas. / 7. Os princípios dos juízos sintéticos que percorrem o espaço-tempo. / 8. - O campo transcendental da experiência possível, imanente ao Eu (plano de imanência). / 9. - As três idéias, ou ilusões de transcendência (círculos girando no horizonte absoluto: Alma, Mundo e Deus).
Muitos são os problemas que concernem tanto à filosofia quanto à história da filosofia. As folhas do plano de imanência ora se separam até se oporem umas às outras, e convirem cada uma a tal ou tal filósofo, ora, ao contrário, se reúnem para cobrir ao menos períodos bastante longos. Além disso, entre a instauração de um plano pré-filosófico e a criação de conceitos filosóficos, as relações são elas próprias complexas. Num longo período, filósofos podem criar conceitos novos, permanecendo no mesmo plano e supondo a mesma imagem que um filósofo precedente, que eles reivindicarão como mestre: Platão e os neo-platônicos, Kant e os neo-kantianos (ou mesmo a maneira como Kant ele mesmo reativa certos segmentos do platonismo). Em todo caso, não será, todavia, sem prolongar o plano primitivo, afetando-o com novas curvaturas, a ponto de que uma dúvida subsiste: não é um outro plano que foi tecido nas malhas do primeiro? A questão de saber em quais casos os filósofos são "discípulos" de um outro e até que ponto, em quais casos, ao contrário, fazem enrica a ele mudando de plano, traçando uma outra imagem, implica pois avaliações tanto mais complexas e relativas quanto jamais os conceitos que ocupam um plano podem ser simplesmente deduzidos. Os conceitos que vêm povoar um mesmo plano, mesmo em datas muito diferentes e sob acomodações especiais, serão chamados conceitos do mesmo grupo; não serão assim chamados aqueles que remetem a planos diferentes. A correspondência de conceitos criados e de plano instaurado é rigorosa, mas faz-se sob relações indiretas que restam por determinar.
Pode-se dizer que um plano é "melhor" que um outro ou, ao menos, que ele responde ou não às exigências da época? Que quer dizer responder às exigências, e que relação há entre os movimentos ou traços diagramáticos de uma imagem do pensamento e os movimentos ou traços sócio-históricos de uma época? Estas questões só podem avançar se renunciamos ao ponto de vista estreitamente histórico do antes e do depois, para considerar o tempo da filosofia em detrimento da história da filosofia. E um tempo estratigráfico, onde o antes e o depois não indicam mais que uma ordem de superposições. Certos caminhos (movimentos) não tomam sentido e direção, senão como os atalhos ou os desvios de caminhos apagados; uma curvatura variável não pode aparecer senão como a transformação de uma ou várias outras; uma camada ou uma folha do plano de imanência estará necessariamente em cima ou por baixo em relação a uma outra, e as imagens do pensamento não podem surgir em qualquer ordem, já que implicam mudanças de orientação que só podem ser situadas diretamente sobre a imagem anterior (e mesmo para o conceito, o ponto de condensação que o determina supõe ora a explosão de um ponto, ora a aglomeração de pontos precedentes). As paisagens mentais não mudam de qualquer maneira através das eras; foi necessário que uma montanha se erguesse aqui ou que um rio passasse por ali, ainda recentemente, para que o solo, agora seco e plano, tivesse tal aspecto, tal textura. É verdade que camadas muito antigas podem ressurgir, abrir um caminho através das formações que as tinham recoberto e aflorar diretamente sobre a camada atual, à qual elas comunicam uma nova curvatura. Mais ainda, segundo as regiões consideradas, as superposições não são forçosamente as mesmas e não têm a mesma ordem. O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica. É um devir infinito da filosofia, que atravessa sua história mas não se confunde com ela. A vida dos filósofos, e o mais exterior de sua obra, obedece a leis de sucessão ordinária; mas seus nomes próprios coexistem e brilham, seja como pontos luminosos que nos fazem repassar pelos componentes de um conceito, seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha que não deixam de visitar-nos, como estrelas mortas cuja luz é mais viva que nunca. A filosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistemas. É por isso que os planos podem ora se separar, ora se reunir — na verdade, tanto para o melhor, quanto para o pior. Eles têm em comum restaurar a transcendência e a ilusão (não podem evitá-lo), mas também combatê-la com vigor, e cada um também tem sua maneira particular de fazer uma e outra coisa. Há um plano "melhor", que não entrega a imanência a Algo = x, e que não simula mais nada de transcendente?
Dir-se-ia que O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo no pensamento, e todavia o fora absoluto. Um fora mais longínquo que todo mundo exterior, porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior: é a imanência, "a intimidade como Fora, o exterior tornado intrusão que sufoca e a inversão de um e de outro"(15Blanchot, Uentretien infini, Gallimard, p. 65. Sobre o impensado no pensamento, Foucault, Les mots et les choses, pp. 333-339. E o "longínquo interior" de Michaux). A ida-e-volta incessante do plano, o movimento infinito. Talvez seja o gesto supremo da filosofia: não tanto pensar O plano de imanência, mas mostrar que ele está lá, não pensado em cada plano. O pensar desta maneira, como o fora e o dentro do pensamento, o fora não exterior ou o dentro não interior. O que não pode ser pensado, e todavia deve ser pensado, isto foi pensado uma vez, como o Cristo encarnou-se uma vez, para mostrar desta vez a possibilidade do impossível. Assim Espinosa é o Cristo dos filósofos, e os maiores filósofos não mais são do que apóstolos, que se afastam ou se aproximam deste mistério. Espinosa, o tornar-se-filósofo infinito. Ele mostrou, erigiu, pensou o "melhor" plano de imanência, isto é, o mais puro, aquele que não se dá ao transcendente, nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos ilusões, maus sentimentos e percepções errôneas...
fonte: cooperação.sem.mando

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