sexta-feira, 24 de junho de 2011

zonas autônomas temporárias¹

dia desses um colega catou, na biblioteca aqui de casa, o TAZ - zona autônoma temporária, do hakim bey, e leu sem parar, estupefato com o que via e por nunca ter visto tal autor antes. hoje aproveito um texto publicado na verve-dobras n. 19, para desdobrar isso.
por colin ward*
Tenho uma longa lista de livros que eu gostaria de ler ou de escrever, mas por razões prosaicas, como uma renda baixa, acabo ficando em casa até ser atraído para fora quando alguém paga a conta. Isso explica porque anarquistas de diferentes países, como França, Alemanha, Holanda e Itália questionaram minha opinião² sobre as perspectivas de Hakim Bey³.
É sempre constrangedor, pois por muito tempo eu não fiz ideia de quem era essa pessoa e de quais eram ou são suas opiniões. Muitos de nós, incluindo eu mesmo, são hesitantes em revelar o vasto escopo da própria ignorância. Duas fontes me explicaram sobre o quê os questionadores estavam falando. Uma, certamente, é o inestimável artigo da Freedom “Food for thought… and Action!”, e a outra o recente livro de Murray Bookchin4 Anarquismo Social ou Anarquismo Estilo de Vida: Um Abismo Intransponível5.
Bookchin e eu temos maneiras opostas de confrontar pessoas cujas ideias têm algum tipo de conexão com as nossas, mas das quais nós discordamos. A dele é pulverizá-las com críticas para que não emerjam novamente. A minha é seguir a política de Paul Goodman5, que tem sido objeto do desdém de Bookchin. Goodman gostava de contar uma fábula: “Tom diz a Jerry: ‘Quer brigar? Cruze a linha!’ e então Jerry a cruza, ‘Agora’, lamenta Tom, ‘Você está do meu lado!’. Desenhamos a linha nas condições deles; mas prosseguimos em nossas próprias condições”.
Enquanto propagandista, geralmente acho mais útil reivindicar como camaradas pessoas cujas ideias são, de alguma maneira, parecidas com as minhas, e salientar nossos pontos em comum, ao invés de fazê-las desaparecer sob um dilúvio de desdém.
O que aprendi com o livro de Bookchin é que o livro de Hakim Bey se chama TAZ: A Zona Autônoma Temporária, Anarquismo Ontológico, Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares6, que o nome verdadeiro do autor é Peter Lamborn Wilson, e que seu livro tem uma série de noções que não exercem apelo em pessoas da geração Bookchin/Ward. E após seu trabalho de demolição, Murray pergunta: “O que, afinal, é uma ‘zona autônoma temporária’?” E ele explica com uma citação de Hakim Bey, descrevendo-a como: “uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la”.
E continua citando do ensaio de Hakim Bey como, numa TAZ, nós podemos “compreender muitos dos nossos verdadeiros desejos, mesmo que seja apenas por uma temporada, uma breve Utopia Pirata, uma pervertida zona-livre dentro do velho contínuo do espaço-tempo” e como “TAZs em potencial” incluem “a ‘reunião tribal’ dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, as festas gays” isso sem falar, como cita Murray, de “casas noturnas, banquetes” e “os piqueniques dos antigos libertários” — nada menos.
Murray Bookchin, naturalmente, comenta que “tendo sido um membro da Liga Libertária nos anos 60, adoraria ver a cara de Bey e seus discípulos num ‘piquenique dos antigos libertários’!” E faz alguns comentários pé-no-chão ao elogio de Hakim Bey ao “analfabetismo voluntário” e ao ser sem-teto “no sentido de uma virtude, e uma aventura.”
Corretamente, ao meu ver, Murray observa que: “Oh, ser sem-teto pode até ser uma ‘aventura’ quando se possui um confortável lar para retornar, enquanto o nomadismo é a luxúria característica daqueles que podem permitir-se uma vida sem ter de ganhar seu sustento. A maioria dos ‘vagabundos’8 nômades da era da Grande Depressão, dos quais me recordo vividamente, sofriam de uma vida desesperada de fome, doença e indignidade e em geral, morriam cedo — como ainda hoje acontece nas ruas da América”.
Ele nos vence com seu árido realismo, mas o conceito de Zona Autônoma Temporária é tão familiar a mim, e muito provavelmente também a ele, que vale a pena considerá-lo fora do contexto de Hakim Bey. Muitos de nós, com certeza, já vivemos situações nas quais pensamos como certas experiências nos parecem estar exatamente de acodo com o modo como elas seriam se estivéssemos em uma sociedade anarquista.
Acho que foi por volta de 1970 que um leitor da Anarchy, Grahan Whiteman, escreveu sobre o equivalente das zonas autônomas temporárias que ele percebia nos grandes festivais de rock ou pop que começaram a acontecer em 1967, especialmente o evento de Woodstock no Estado de Nova York, em agosto de 1969. Houve ainda muitos outros mais próximos de casa nos 25 anos subsequentes.
Mas, uma vez que a expressão Zona Autônoma Temporária se instala na nossa mente, começa-se a vê-la em todos os lugares: efêmeros esconderijos de anarquia que ocorrem na vida cotidiana. Neste sentido, ela descreve um conceito mais útil do que o de uma sociedade anarquista, uma vez que as sociedades mais libertárias que conhecemos tiveram seus elementos autoritários, e vice-versa. Li recentemente a biografia do pintor Augustus John6 escrita por Michael Holroyd, um auto-intitulado anarquista que era também um monstro em criar em torno de si a versão particular de anarquia que o agradava. Holroyd descreve o retorno de John, em seu septuagésimo terceiro aniversário em 1950, à St-Rémy, na França, lugar que este havia deixado às pressas em 1939: “A cozinha francesa já não era mais como antigamente e o vinho parecia ter-se ido. Mas ao fim da tarde, no Café des Varietés, ele ainda podia obter aquele peculiar equilíbrio de espírito e corpo que descrevia como um ‘distanciamento-na-intimidade’. A conversação rodopiava ao seu redor, o acordeão tocava e, de vez em quando, era recompensado ‘pela aparição de um rosto ou de uma parte de um rosto, de um gesto ou de uma conjunção de formas, que eu reconhecia como pertencendo a um mundo mais real e harmonioso do que aquele com o qual estamos habituados’”.
Esta última frase do velho pintor descreve de maneira ainda mais bela a sensação que um outro colaborador da Freedom, Brian Richardson, chamava de “momentos dourados”.
Seu raro vislumbre de um mundo mais real e harmonioso é o significado que estou inclinado a atribuir às palavras sobre as Zonas Autônomas Temporárias.
Tradução de José Paulo M. Souza
* Colin Ward (1924-2010). Anarquista nascido no Reino Unido, foi arquiteto, urbanista e pedagogo. Depois da Segunda Guerra, passou a contribuir com o periódico Freedom, fundado por Piotr Kropotkin no século XIX. Editou o periódico Anarchy entre 1961 e 1970. Entre suas obras mais importantes estão Anarquia e ação (1973) e A Criança na Cidade (1978).
Notas
1 Texto extraído de The Anarchist Library. Diposnível em: http://theanarchistlibrary.org/HTML/Colin_Ward__Temporary_Autonomous_Zones.html. (acesso em: 24/04/2011). (N.E.)
2 Apareceu originalmente na publicação Freedom, na primavera de 1997.
3 Hakim Bey (1945- ) é autor de diversos textos que circulam na web e que causaram grande impacto no movimento libertário nas décadas recentes, alguns de seus livros foram publicados no Brasil pelas editoras Conrad e Deriva. (N.T.)
4 Murray Bookchin (1921-2006) — importante teórico e militante anarquista estadunidense, formulador do chamado anarquismo social e crítico às ideias de Hakim Bey. (N.T.)
5 Edinburgh, AK Press f5.95, frete grátis da Freedom Press.
6 Paul Goodman (1911-1972) — sociólogo, intelectual anarquista estadunidense, co-fundador da Gestalt Terapia, colaborou com o movimento pacifista e estudantil na década de 1960. É autor do livro Growing Up Absurd, ainda não publicado no Brasil. (N.T.)
7 Augustus John (1878-1961) — pintor galês celebrado pelo seu estilo pós-impressionista. (N.T.)
8 Hoboes designa a condição de sem-teto e a desocupação dos desempregados durante a Grande Depressão nos EUA. (N.T.)
Resumo
No artigo, Colin Ward apresenta sua leitura das proposições de Hakim Bey, especialmente o conceito de Zona Autônoma Temporária (TAZ). Apesar de suas diferenças em alguns aspectos, o autor estabelece um diálogo com o conceito de TAZ a fim de reforçar seu valor como meio para pensar e experimentar uma vida libertária na sociedade atual. Palavras-chave: TAZ, anarquia, Hakim Bey

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