domingo, 12 de junho de 2011

divulgação: Capital e Capitalismo

O neoliberalismo proclama a necessidade do retorno de uma ordem jurídica alicerçada em fundamentos meramente econômicos. Para tanto, é obrigado a atropelar, entre outras conquistas da dita civilização, as exigências de universalidade da norma jurídica. No mundo da nova concorrência e da utilização do Estado pelos poderes privados, a exceção é a regra. Tal estado de excepcionalidade corresponde à codificação da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade. O poder econômico vem se infiltrando no Estado, comprometendo a soberania. O Estado perdeu a vergonha de transformar a ordem jurídica numa arma de opressão e de controle das aspirações dos cidadãos, enquanto se submete à brutalidade do comando da finança desregrada.
por Luiz Gonzaga Belluzzo
INTRODUÇÃO
I have read many philosophers and classics of political thought and have encountered only a few thinkers who were interested (and politically engaged!) in the free development of the individuality of all women and men (not only of a privileged class). And I believe that this point is fundamental for the political parties and the social movements that still look at Marx as a source of inspiration. (Marcello Musto)
Marshall Berman descobriu o marxismo quando buscava entender o destino de seu pai, morto, como Willy Loman, o personagem de Arthur Miller na Morte do Caixeiro Viajante. Lomam pereceu numa cilada das forças anônimas, incontroláveis e insidiosas da concorrência. “Num dia quente de verão de 1955, meu pai, um vendedor de etiquetas, voltou para casa exaurido do distrito de roupas e disse ‘eles não me conhecem mais”.
O pai de Berman estava sendo derrotado por concorrentes japoneses que entraram no ramo de etiquetas com técnicas modernas, como por exemplo, o suborno dos clientes, os seus amigos, compradores das lojas. Berman perguntou: “Papai, Willy Loman?’ (Lomam é o personagem trágico da peça A Morte do Caixeiro Viajante, a obra-prima de Arthur Miller) Meu pai me abraçou e disse que uma coisa que lhe dava paz era saber que eu seria uma pessoa mais livre do que ele”.
O desejo de compreender o fracasso do pai, sua morte prematura, levou o jovem Berman a buscar uma resposta para a sua tragédia pessoal. Um professor de Columbia sugeriu a leitura dos Manuscritos Econômico - Filosóficos de Marx, então recém publicados. Berman ficou impressionado com a importância que Marx atribuía ao indivíduo, a forma como defendia o direito ao seu autodesenvolvimento, e, sobretudo, como imaginava a modernidade, para ele a época da realização do homem como ser livremente ativo.
Nos textos sobre a liberdade de imprensa ou sobre a questão judia, assim como nos Manuscritos e na Ideologia Alemã - até chegar à crítica da economia política nos Gundrisse e no Capital - Marx tentou mostrar que a história é a luta dos homens na constituição da subjetividade livre e criativa.
A práxis coletiva trouxe a humanidade até o ponto em que essa aspiração pode ser realizada. Mas ao realizar a crítica da economia política e examinar a natureza das relações de produção capitalistas, ele desvendou uma incompatibilidade entre o caráter despótico, centralizador e coletivista do capitalismo e as promessas de autodeterminação do indivíduo que acompanharam a ascensão da burguesia. Os valores fundamentais da liberdade, da igualdade e fraternidade estão incrustados no projeto marxista da autonomia do indivíduo.
Marx está falando de um regime econômico em que o objetivo é acumular riqueza abstrata, monetária. Isso exige não só a subordinação real dos produtores diretos à disciplina da fábrica onde se realiza o processo de criação de valor, mas impõe limites insuperáveis ao desenvolvimento livre do indivíduo - burgueses e proletários - ao transformá-los em meros executores das leis que comandam a valorização do capital. A questão central é a da abolição do comando e do despotismo do capital sobre as relações entre os homens e sua substituição pela escolha livre dos produtores associados.
Marx era um admirador do caráter progressista da burguesia e do capitalismo, ao mesmo tempo em que é um critico impiedoso de uma estrutura social que desenvolve formas de dominação econômicas cada vez mais abstratas e distantes do alcance do indivíduo despossuído, mutilado e cerceado em sua atividade criativa. “O capitalismo é terrível”, diz Berman, “porque fomenta a energia humana, o sentimento espontâneo, o desenvolvimento humano com o único objetivo de esmagá-lo”. Apóstolo da autonomia individual, Marx gostaria que as relações sociais permitissem ao indivíduo socializado controlar o seu destino.
A socialização dos indivíduos se dá através do mercado, mas no capitalismo o mercado não é uma relação simétrica entre vendedores e compradores. As relações econômicas fundamentais estão constituídas por uma assimetria de poder entre os que possuem os meios de produção e os que para sobreviver são obrigados a vender livremente a sua força de trabalho. A história do capitalismo é a narração da crescente subordinação do trabalho e do “empobrecimento” do indivíduo.
Não se trata de ter mais ou menos dinheiro no bolso. O empobrecimento decorre primeiro da deformação do desejo: o desenvolvimento capitalista se encarrega de “criar” necessidades e de ajustá-las ao impulso incontrolável de ampliar a abrangência do espaço regulado pela troca de mercadorias. Ademais, as condições de produção e de sobrevivência escapam cada vez mais ao controle dos produtores diretos e os submetem aos seus movimentos.
A automação crescente do processo de trabalho e a tendência à concentração e centralização das forças produtivas assumem diretamente, em sua forma material, o automatismo da acumulação e seu caráter autoreferencial, determinando o “empobrecimento” e a submissão da subjetividade dos indivíduos “livres” e de seu mundo da vida. Ao contrário do prometido, eles não conseguem escolher o seu destino, mas são tangidos por forças que lhe são estranhas, senão hostis.
Por isso ele é incansável no trabalho de negação, impiedoso na crítica da aceitação ingênua do que os senhores e sacerdotes da sociedade capitalista falam sobre ela e sobre si mesmos. É um desvendamento cruel, para mostrar que a liberdade só pode ser conquistada pela ação coletiva das classes subalternas. Marx acreditava que opressão das formas econômicas que se apresentam como “naturais” entra frequentemente em conflito com as aspirações do indivíduo moderno e isto abre a possibilidade da ação transformadora. Berman sustenta que “ninguém percebeu mais nitidamente do que Marx a forte pressão que as ‘comunidades ilusórias’ do interesse de classe podiam exercer sobre os homens, estereotipando o seu pensamento.
Transformam a ação humana em repetições rançosas de papéis pré-fabricados, reduzindo os homens a indivíduos médios, reproduções de tipos ideais que incorporam todos os traços e qualidades de que a comunidade ilusória precisa.”
Mas o resíduo de liberdade - reafirmado continuamente na dissolução das relações fundadas na autoridade da tradição e na ilusão necessária, representada pelo mercado como âmbito da livre escolha dos proprietários de riqueza – prepara o indivíduo para a atividade prática e crítica. Marx levou ao paroxismo os ideais do Iluminismo e do liberalismo político. Isto já está claro em suas obras de juventude e é surpreendente alguém imaginar o projeto do comunismo marxista como uma forma de comunitarismo primitivo.
Ele dizia que a transformação da sociedade não seria produzida pelas leis automáticas e “naturalizadas” - visão que o fetichismo da mercadoria, do dinheiro e do capital pretende impor aos homens - mas só podia ser feita a partir do que havia sido construído pela História até então. O que mais irritava o Marx era o socialismo utópico dos que pretendem reinventar o mundo ou fazê-lo regredir para formas de convivência primitivas.
O regime do capital engendrou um processo econômico e formas de sociabilidade, cujo desenvolvimento libertou a vida humana e suas necessidades das limitações impostas ao homem pela natureza. Essa capacidade transformadora e libertadora suscitou a admiração de Marx, o radical iluminista. Mas, ele cobrou as promessas anunciadas ao longo da ascensão burguesa: realização dos ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A formidável máquina de eliminação da escassez liberta o homem moderno dos caprichos da natureza. Mas também o aprisiona em relações de produção, estruturas técnico-econômicas e formas de convivência que agem sobre o destino dos protagonistas da vida social como forças naturais, fora do controle da ação humana.
Marx se valeu da Crítica da Economia Política para mostrar que o capitalismo deixado à mercê de sua lógica e dinâmica internas seria incapaz de realizar os valores que a sociedade burguesa prometia: entregar aos homens, em sua marcha para abater as cidadelas do Ancien Regime, da Ordem Revelada e do mundo da tradição, as condições de vida capazes de garantir a liberdade e a autonomia do indivíduo moderno. Essa obsessão com a liberdade pode ser constatada pela leitura do O Capital, dos Gundrisse, dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, da Ideologia Alemã.
O Capital pode ser lido como uma digressão sobre incompatibilidade entre o caráter despótico e coletivista regime do capital. Sob a aparência necessária da igualdade entre produtores independentes e autônomos, desenvolvem - se as formas de controle e submissão do indivíduo livre. Marx procurou mostrar na verdade, que a estrutura material da sociedade, as relações de produção que se estabelecem entre os proprietários dos meios de produção, controladores do dinheiro, e os assalariados não permitem a realização do projeto inscrito nos pórticos da modernidade. Sob o regime do capital não é possível a realização dos valores que a sociedade burguesa promete aos indivíduos produzidos historicamente por seu nascimento. O radicalismo político de Marx está exposto em obras como a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica ou o texto em que trata da liberdade de imprensa.
Em seu livro sobre o bonapartismo e o declínio do sufrágio universal, o filósofo italiano Domenico Losurdo faz um inventario do pensamento liberal sobre o Direito e o Mercado. Mandeville, por exemplo, tinha horror a qualquer intervenção legislativa do Estado destinada a proteger “aquela parte mais mesquinha e pobre da sociedade”, condenada a desenvolver um “trabalho sujo e digno de escravos”. Em compensação recomendava enfaticamente que fossem obrigatórias para pobres e iletrados a doutrinação religiosa e a frequência à Igreja aos domingos. Essa gente deveria, além disso, ser impedida de participar de qualquer outro divertimento no dia do Senhor.
Locke exigia uma vigorosa ação do Estado para disciplinar a chusma de vagabundos e desempregados. Esta rafaméia deveria ser internada, para recuperação, em workhouses, verdadeiros antecessores dos campos de concentração. Alexis de Toqueville indignava-se com as tentativas demagógicas dos trabalhadores de reduzir a jornada de trabalho, uma interferência indevida na liberdade de contratação – a coluna vertebral do direito que regula o mercado - entre patrões e empregados. Mas, não trepidava em exigir severas limitações ao afluxo da população do campo para as cidades.
Os liberais modernos e também os contemporâneos como Hayek estão, portanto, preocupados em criar condições para que a troca de mercadorias, a venda e compra da força de trabalho, bem como e o comércio do dinheiro transcorram sem peias, regidos exclusivamente pelas normas da livre contratação. Se os indivíduos concretos se estrepam nesta história, porque são fracos, pobres, deficientes, é preferível deixa-los à sua sorte desgraçada do que colocar em risco a arquitetura da ordem econômica liberal fundada na liberdade de contrato que sustenta a operação insubstituível dos mercados.
Não raro acusado de estatólatra e inspirador de correntes políticas totalitárias, Hegel investia contra os teóricos do laissez-faire que segundo ele admitiam a desgraça de muitos indivíduos para que fosse preservada a totalidade do mercado e da economia”. Não se trata, assim, de proteger a vida e a liberdade de tal ou qual indivíduo, em suas condições concretas de existência, mas de dar curso à liberdade abstrata dos produtores independentes, implícita na convergência de vontades postulada pela visão contratualista. Marx proclamou que a circulação de mercadorias envolve em seus nexos a aparente liberdade dos produtores independentes e nela está inscrita a dominação do dinheiro ansioso para realizar seu conceito de capital.
A justiça adequada às funções dos proprietários independentes é meramente comutativa – do ut des. Na impossibilidade da troca de equivalentes ou da presença do equivalente geral, o dinheiro, esta forma peculiar de justiça não reconhece nenhum outro fundamento, nenhuma legitimidade nas outras formas de reciprocidade entre os homens. Ela, a justiça dos mercados, não pretende reconhecer, na verdade, nenhum direito, senão o que nasce do intercâmbio de mercadorias. Qualquer conteúdo, qualquer relação substancial deve ser sumariamente eliminada. Valer significa apenas ser aceito em troca de uma determinada quantidade de dinheiro.
A democracia de massas moderna – a dos direitos sociais e econômicos - nasce e se desenvolve ao abrigo do Estado de Direito contra os processos impessoais, e antinaturais da acumulação e concentração da riqueza na economia capitalista. O século XX foi o cenário de lutas sociais e políticas marcadas pelo desejo dos mais fracos de restringir os efeitos sobre as vidas dos cidadãos da acumulação sem limites. Terminou melancolicamente sob a ameaça de desestruturação do Estado do Bem-Estar, do achincalhamento dos direitos civis e da regressão à barbárie nas relações interestatais.
A democracia e seus direitos são conquistas muito recentes. O sufrágio universal foi conseguido com muita briga entre final do século XIX e o começo do século XX. Os direitos econômicos e sociais são produtos da luta social que transcorre entre o final dos anos 30 e o final da 2ª Guerra Mundial.
No pós guerra ocorreram as importantes transformações no papel do Estado. A função de garantir o cumprimento dos contratos, de assegurar as liberdades na esfera política e econômica, apanágios do Estado Liberal, são enriquecidas pelo surgimento de novos encargos e obrigações: tratava-se de proteger o cidadão não proprietário dos mecanismos cegos do livre - mercado, sobretudo dos azares do ciclo econômico. O Estado do Bem-Estar fundamentalmente é a construção de um arcabouço jurídico e institucional destinado a domesticar as leis espontâneas do mercado capitalista.
Sendo assim, temos que entender as políticas neoliberais, como uma tentativa de reestruturação regressiva. Esse é o momento em que, tanto do ponto de vista prático, quanto ideológico e teórico, as classes dominantes e dirigentes, à escala mundial, apostam (e ganham) no retrocesso, no recuo das conquistas sociais e econômicas das classes subalternas.
Não é de espantar que se observe a corrosão das instituições republicanas, que seja constante e reiterada a violação dos direitos sociais acumulados ao longo dos últimos trinta anos. Torna-se, portanto agudo o conflito entre a aspiração a uma vida decente, segura, economicamente amparada e as condições reais de existência que, segundo o cânone liberal, devem definidas pelas regras impostas pelos processos de “regeneração capitalista”. Difunde-se a ideia que a liberação das forças auto-referenciais que impulsionam a acumulação de capital é um movimento ao mesmo tempo “natural” e ”irreversível” em direção ao progresso. Quem não recebe as bênçãos do mercado não tem o direito de existir.
É bom ficar claro que o século XX foi palco de uma resistência ciclópica das classes subalternas. Entre muitos mortos e feridos, deixou o saldo positivo da conquista dos direitos sociais. Essa conquista significou que o reconhecimento do indivíduo e do cidadão não mais dependia exclusivamente de sua posição no processo de intercâmbio de valores de troca, ou se quisermos, na produção de riqueza abstrata.
O Estado Social, construído a ferro e fogo pelos “de baixo”, impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o seu nascimento até a sua morte. Ele será investido nestes direitos desde o primeiro suspiro, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão impõe à sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Essa dívida impõe à sociedade e ao estado a obrigação de prover a subsistência do cidadão, preservar sua dignidade, garantir sua educação, proteger sua velhice.
As perspectivas que se desenhavam nos albores da economia industrial moderna despertaram nos pensadores utópicos do século XIX a esperança do aumento do tempo livre desfrutado de forma enriquecedora por indivíduos autônomos.
Essa utopia foi desmentida pela evolução real das sociedades pós-industriais (como querem alguns). A mudança nas condições de concorrência observadas nas últimas três décadas suscitaram alterações profundas na organização interna das empresas. Entre as décadas dos 40 e dos 70 do século passado, o padrão de concorrência estava fundado na estabilidade das estruturas de mercado oligopolizadas. Eram oligopólios concentrados, dominantes na produção de bens homogêneos ou oligopólios diferenciados prevalecentes nos setores de intensa inovação tecnológica.
A esse modelo de concorrência correspondia uma organização empresarial burocrática, rigidamente hierárquica, fruto da separação entre propriedade e controle, iniciada nas três últimas décadas do século XIX. O administrador profissional era o principal protagonista do processo de gestão ancorado na burocracia. A administração por objetivos surge como a forma de conferir aos administradores as condições adequadas para a tomada de decisões.
Nas camadas inferiores da pirâmide burocrática, a definição da carreira – incluída a escala salarial – era guiada por critérios meritocráticos. A ascensão aos cargos superiores desempenhava papel de mecanismo de controle, disciplina e, ao mesmo tempo, de incentivo aos funcionários dos escritórios e aos trabalhadores do chão de fábrica.
As transformações financeiras e organizacionais recentes foram acompanhadas de mudanças na governança corporativa. A dominância da “criação de valor” na esfera financeira expressa o poder do acionista, agora reforçado pela nova modalidade de remuneração dos administradores, efetivada mediante o exercício de opções de compra das ações da empresa. Esta lógica financeira suscitou surtos intensos de re-engenharia administrativa, flexibilização das relações de trabalho, enfim, a obsessão com a de redução de custos e com os julgamentos dos mercados funanceiros.
Luc Boltanski, em seu livro The New Spirit of Capitalism, demonstra que nas modernas relações de trabalho não se trata mais de seguir as ordens de chefes hierárquicos, marca registrada do período anterior. Na nova modalidade de concorrência, o que importa é a motivação do funcionário. São estas virtudes que garantem aos trabalhadores o compromisso com os resultados, sem o recurso aos critérios hierárquicos.
O envolvimento no projeto – seja um programa de qualidade, de redução de custos, aumento de vendas ou a busca de um novo produto – supõe que o trabalhador esteja disposto a assumir riscos. Risk taking é uma inclinação motivacional valorizada na formação de jovens candidatos a um emprego nas empresas submetidas à compulsão da concorrência na economia de mercado contemporânea.
O avanço da produtividade social do trabalho não se traduziu no esperado enriquecimento humano e cultural dos cidadãos. Muito ao contrário – descontada a liberdade do desemprego aberto - o avanço do subemprego e da precarização determinaram a criação de condições de trabalho mais duras, ainda que menos visíveis às vítimas. As relações de subordinação e dependência contemporâneas permitem a flexibilidade de horário, temperada com as delícias do trabalho “em casa”, onde trabalhador está permanentemente disponível para responder às exigências do empregador ou contratante.
O admirável mundo das novas atividades e das relações de trabalho fundadas na concorrência entre os subordinados e não mais na carreira hierarquizada impôs, ademais, aos dependentes o jugo das novas tecnologias de informação. Estes instrumentos, decisivos para os movimentos libertários e de contestação das ditaduras transformam-se, no mundo do trabalho, em meios de dominação e controle. Servem para agrilhoar as vítimas da economia contemporânea e mantê-las sob a vigilância permanente da empresa ou dos contratantes, prolongando a jornada de trabalho muito além do que seria admissível para um fanático manchesteriano do século XIX.
Essa “onda de inovações” na esfera das relações de trabalho foi acompanhada de uma a agressiva campanha conservadora contra os direitos econômicos e sociais constituídos sob a égide do Estado do Bem Estar. A crise deflagrada na segunda metade de 2007 foi, sem dúvida, obra dos gênios da finança desmiolada e de governantes cúmplices, fautores da crescente desigualdade social que acompanhou os desatinos da bolha imobiliária.
Na contramão das lições extraídas na posteridade da II Guerra Mundial, os governos cúmplices deixam os responsáveis à solta e apertam as tenazes nas jugulares das vítimas. Na Europa e na América, governantes de todos os matizes cuidam de imolar a saúde, a educação, a aposentadoria de seus súditos mais frágeis no cadafalso dos mercados restabelecidos em seu orgulho e poder.
O neoliberalismo proclama a necessidade do retorno de uma ordem jurídica alicerçada em fundamentos meramente econômicos. Mas para tanto, é obrigado a atropelar e estropiar, entre outras conquistas da dita civilização, as exigências de universalidade da norma jurídica. No mundo da nova concorrência e da utilização do Estado pelos poderes privados, a exceção é a regra. Tal estado de excepcionalidade corresponde à codificação da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade. O poder econômico vem se infiltrando no Estado de forma a comprometer a soberania. O Estado perdeu a vergonha de transformar a ordem jurídica interna numa arma de opressão e de controle das aspirações dos cidadãos, enquanto se submete à brutalidade do comando da finança desregrada.
O jurista Herbert Hart, no livro The Concept of Law diz com razão que o juiz não pode decidir como supremo censor e guardião da moralidade pública. A primeira e ilustre vítima do particularismo moralista será o princípio da legalidade que deve estabelecer com a maior clareza possível o que é lícito e o que não é. Exemplo de atropelo ao principio da legalidade é a lei promulgada pelo regime nazista em 1935. Ela prescrevia que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’ popular”.
No ensaio O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo, Herbert Marcuse argumentava que, na era moderna, o domínio da lei, o monopólio do poder coercitivo e a soberania nacional são as três características do Estado que mais claramente expressam a divisão racional de funções entre Estado e Sociedade. “A lei trata as pessoas, se não como iguais, pelo menos sem considerar as contingências sociais mais óbvias; é, por assim dizer, a corte de apelação que mitiga os infortúnios e as injustiças que as pessoas sofrem em suas relações sociais. O caráter universal da lei oferece proteção universal a todos os cidadãos, não apenas em relação ao desastroso jogo dos auto-interesses conflitantes, mas também no que diz respeito aos caprichos governamentais. O regime nacional-socialista aboliu estas propriedades da lei que a tinham elevado acima dos riscos da luta social.”
Nos anos 20 do século passado, os comunistas alemães denunciaram os direitos inscritos na Constituição de Weimar como uma forma de encobrir a exploração capitalista.Ignoraram o caráter de compromisso da Constituição, diante da correlação de forças que presidia o nascimento da República, ou seja, a fragilidade das forças democráticas e a força dos adversários.
Para Marcuse, contemporâneo da tragédia de Weimar, a sociedade moderna está permanentemente diante do o risco de derrocada do Estado de Direito: os grupos privados, em competição desenfreada e na busca de meios para conter a pressão dos subalternos, tentam se apoderar diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

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