segunda-feira, 6 de junho de 2011

divulgação: A privação da liberdade como doença

Maquinaria criada para vigiar e corrigir, a prática asilar aplica ao louco a ortopedia moral, assinala o filósofo Cesar Candiotto. Cada época tem percepções diferentes da loucura, e a perda da liberdade, transformada em doença é fenômeno que remonta ao século XIX
Por: Márcia Junges
“Foucault questiona a loucura como doença mental quando mostra que esta não é a natureza da loucura, mas somente uma de suas objetivações históricas”. A observação é do filósofo Cesar Candiotto, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, “cada época percebe a loucura como um objeto diferente para o saber: os renascentistas a apreendem como possessão demoníaca mediante o quadro de uma experiência cósmica; os clássicos a entendem como desrazão a partir do quadro de uma experiência ontológica; os modernos a objetivam como doença mental a partir do quadro de uma experiência antropológica”. E complementa: “não é o sujeito racional e livre aquele capaz de definir e interpretar a loucura. Somente na experiência, formada por discursos e práticas de cada época, é que se pode mostrar a constituição do sujeito louco”. Foucault questiona o fato de a psiquiatria do começo do século XIX “ter transformado a privação da liberdade do louco, por ocasião da reforma social do internamento, em natureza da loucura, em doença, objeto de tratamento psiquiátrico”. Assim, tirar o louco de circulação, internando-o no asilo, significa tirá-lo do espaço da desordem para o da ordem, sujeito à ortopedia moral, à constante vigilância por um “olho anônimo, a uma maquinaria que vigia e corrige”.
Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR, Candiotto é graduado em Filosofia por essa instituição, e em Teologia pela PUC do Chile. Cursou mestrado em Educação pela PUCPR e doutorado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e na Universidade de Paris XII com a tese Foucault e a verdade. Organizou as obras Mente, cognição, linguagem (Champagnat: Curitiba, 2008) e Ética: abordagens e perspectivas (Champagnat: Curitiba, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a importância de História da loucura no conjunto da obra de Foucault?
Cesar Candiotto - Essa pergunta poderia ser respondida de diversas formas. Uma delas, talvez a mais fecunda, é a constatação de que História da loucura constitui o início de uma estratégia metodológica – nomeada mais tarde como arqueologia – que rompe com a concepção de verdade como sua adequação a um referente essencial ou natural. A loucura não é um referente já dado na natureza ou no pensamento suscetível de uma verdade universal. Entre as ciências do homem, região a ser privilegiada por Foucault em sua investigação, não existem verdades universalmente válidas. Os objetos dos quais tratam estas “ciências” são singulares e raros, apresentados como acontecimentos irrepetíveis na ordem do saber. Embora ciências como a psiquiatria, a psicologia, a sociologia, procurem naturalizar seus objetos para apreendê-los mediante uma racionalidade específica, trata-se sempre de uma ilusão tranquilizadora. A arqueologia procura estudar qual a “experiência fundamental” (História da loucura), “episteme” (As palavras e as coisas) ou “discurso” (A ordem do discurso) de uma época que permite legitimar práticas discursivas e não discursivas como verdadeiras e outras, como falsas. Busca examinar a condição histórica de possibilidade a partir da qual algo é constituído como um objeto apreensível ao saber e coerente num sistema de relações.
Ao afirmar que a emergência de um objeto somente é apreensível ao saber a partir do quadro formal ou da condição histórica de possibilidade na qual ele está situado, Foucault mostra que a história da loucura era irredutível à história de um conceito. Jamais se trataria de fazer a história das diferentes interpretações a respeito de um mesmo conceito. Cada época percebe a loucura como um objeto diferente para o saber: os renascentistas a apreendem como possessão demoníaca mediante o quadro de uma experiência cósmica; os clássicos a entendem como desrazão a partir do quadro de uma experiência ontológica; os modernos a objetivam como doença mental a partir do quadro de uma experiência antropológica. O fato de que cada experiência corresponda a um objeto novo, implica que também o quadro formal ou a condição histórica de possibilidade muda de uma época para outra.
Sistemas de racionalidade
Essa estratégia metodológica posta em prática em História da loucura pode ser pensada como o início de uma “trajetória” que exercerá enorme influência em livros como Nascimento da clínica, As palavras e as coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade. Todos esses livros são “histórias”, muito distantes da mera história das ideias pensada nos limites do progresso ininterrupto da razão. Trata-se de demarcar o nascimento, desenvolvimento e desaparecimento de objetos relativamente a racionalidades diferentes. Com isso Foucault desautoriza pensar numa história progressiva da razão e, consequentemente, que estamos sempre a discorrer a respeito da mesma razão. Cada época tem seus sistemas de racionalidade que apreendem objetos singulares como coerentes ou incoerentes. Em consequência, não podemos avaliar o passado a partir do presente, julgar a prática clássica de aprisionamento do louco pelo seu internamento asilar moderno.
Em razão disso é que Foucault irá deduzir que a psiquiatria não é a única a discorrer sobre a verdade da loucura. Igualmente a psicologia positivista não pode conhecer a doença mental, prescindindo de sua história. Quanto à arqueologia, jamais tenta traçar o caminho dos erros do passado rumo às verdades do presente, da noite das trevas à claridade do saber médico; antes, ela procura escavar os diferentes subsolos para saber como cada época percebe e enuncia a loucura, de modo a permanecer o mais próximo possível daquilo que um acontecimento tem de raro, de estranho e de irredutível, sem jamais desqualificá-lo por um saber ulterior considerado “mais” verdadeiro e objetivo.
IHU On-Line - Como essa obra continua a impactar no pensamento filosófico, 50 anos após seu lançamento?
Cesar Candiotto – A história da loucura continua a impactar o pensamento filosófico porque este geralmente estuda objetos universais mediante sua demonstração teórica ou pelas suas diferentes interpretações. Como sugerimos na questão anterior, Foucault jamais parte de um objeto já dado, seja na ordem da natureza, seja no plano do pensamento. Antes, ele está preocupado com seu nascimento como algo apreensível por um saber ou por uma ciência. Os objetos investigados em sua arqueologia - e mais tarde, na arqueogenealogia - são aqueles pertencentes ao terreno frágil e movediço das chamadas ciências humanas, mas também aqueles que fazem interface com a filosofia.
Provavelmente o conceito mais problematizado na investigação de Foucault tenha sido o de sujeito. O sujeito da filosofia – o “eu” do Ego cogito - é aquele que permanece inalterado, transparente a si mesmo, constituinte de sentido, em que pese as transformações históricas nas quais ele está situado. Esse sujeito é o sujeito racional; aquele que para se autocompreender como Mesmo exclui o Outro, ou tenta reduzi-lo o máximo possível; ou ainda o sujeito de liberdade, que para se afirmar como legislador universal exclui aqueles que perderam a capacidade de deliberar e decidir. Ora, em História da loucura Foucault vai justamente mostrar que não é o sujeito racional ou o sujeito de liberdade que define e dá coerência à contingência da história. Quando nos referimos ao sujeito, estamos sempre diante de um conceito constituído na trama de discursos e práticas historicamente delimitados. Significa que não é o sujeito racional e livre aquele capaz de definir e interpretar a loucura. Somente na experiência, formada por discursos e práticas de cada época, é que se pode mostrar a constituição do sujeito louco.
Loucura como objeto de saber
A grande novidade da arqueologia da loucura é se afastar da ideia de que ela é um objeto trans-histórico do qual se trataria somente de interpretá-lo. O arqueólogo não parte da verdade dos objetos já pensados e feitos, mas do ponto em que algo se torna problemático e nasce como objeto para o pensamento. A loucura é problematizada num determinado momento a partir da partilha entre o verdadeiro e o falso, sendo transformada em objeto para o pensamento. Daí é que se entende a afirmação de Foucault de que a loucura somente existe em uma sociedade.
Mais tarde Foucault volta ao tema: “Fizeram-me dizer que a loucura não existia, enquanto que o problema era absolutamente inverso: tratava-se de saber como a loucura, sob as diferentes definições que pudemos lhe dar num momento dado, pôde ser integrada num campo institucional que a constituía como doença mental, adquirindo um determinado lugar ao lado de outras doenças” (FOUCAULT, M. “L’éthique du souci de soi comme pratique de la liberté”. In: Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, v. IV, p. 726).
Foucault nega a naturalidade da loucura como objeto do saber, não sua constituição histórica e cultural na condição de algo a ser pensado e problematizado. Tal precisão difere da perspectiva fenomenológica a respeito da loucura. “Provavelmente, podemos dizer que a loucura ‘não existe’, mas isso não quer dizer que ela seja nada. Tratava-se, em suma, de fazer o inverso daquilo que a fenomenologia nos havia ensinado a dizer e a pensar; a fenomenologia que, grosso modo, dizia: a loucura existe, o que não significa que seja algo” (FOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard, p. 122, 2004).
IHU On-Line - Em que sentido a História da loucura questiona o conceito de doença? É possível falar num outro ponto de vista para essa concepção a partir do corpus teórico dessa obra?
Cesar Candiotto - Foucault questiona a loucura como doença mental quando mostra que esta não é a natureza da loucura, mas somente uma de suas objetivações históricas. Objetivação essa possível no espaço da modernidade, quando a experiência antropológica é a condição histórica de possibilidade a partir da qual a loucura passa a ser apreendida.
Essa nova objetivação tem início quando Pinel identifica loucura e alienação. Chamou-se alienação a queda do louco num estado no qual ele deixa de ser completamente homem, ao possuir menos razão em relação aos padrões de normalidade vigentes. A loucura passa a ser associada a um fato humano encarnado em tipos antropológicos específicos estigmatizados por um “certo desvio em relação à norma social” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie. Paris: Gallimard, 1972, p. 117). A ideia de que a loucura corresponde à alienação de uma verdade de ordem antropológica marca a transição de sua percepção ontológica clássica como desrazão para sua percepção moderna como doença mental.
Foucault nota que a causa da alienação está relacionada a uma percepção do mundo civilizatório ao qual é atribuído um caráter doentio, em consequência de sua perda de contato com a natureza. O mundo é a realidade móvel, particular e negativa dominada por forças penetrantes, das quais procede a alienação. No caso da loucura, são três as forças penetrantes que lhe dão origem: a sociedade, a religião e a civilização. A não repressão dos desejos pela sociedade, a não regulação do espaço e da imaginação pela religião e a não imposição de limites à sensibilidade e ao pensamento pela civilização são consideradas as principais causas da loucura. Ao contrário de Rousseau , que pensava ser a alienação somente de caráter social, Pinel ampliará esse horizonte, ao afirmar que a sociedade produz também alienação intelectual, psíquica e moral.
Loucura e liberdade
No final do século XVIII “a loucura é a natureza perdida, é o sensível desnorteado, o extravio do desejo, o tempo despojado de suas medidas; é a imediatez perdida no infinito das mediações. Diante disso, a natureza, pelo contrário, é a loucura abolida, o feliz retorno da existência à sua mais próxima verdade” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 393) O homem perde sua verdade pela alteração de suas faculdades quando deixa de seguir sua natureza e torna-se influenciável por aquelas mediações que continuamente o alienam de si mesmo, em direção de seu exterior. Por essa razão é que ele deverá ser isolado de tais mediações para enfrentar a si próprio num espaço de reclusão total a fim de que aí reencontre sua natureza perdida. Retirar o louco do mundo e aprisioná-lo no asilo equivale a deslocá-lo do espaço da desordem para o espaço da ordem.
Na época moderna, caracterizada pela experiência antropológica da loucura (fim do século XVIII e século XIX), ela deixa de ter como padrão normativo fundamental a razão e a ordem. O novo padrão normativo em relação ao qual ela é desqualificada e sequestrada é a liberdade, entendida como atributo antropológico fundamental do cidadão soberano no contexto do novo estado burguês. A loucura será entendida doravante pela perda parcial ou total da liberdade psicológica, faculdade humana que capacita ao indivíduo pensar, deliberar, decidir e agir com responsabilidade moral e imputabilidade jurídica.
Se a liberdade está inscrita na natureza humana e essa última é racional, o louco não perde sua liberdade ao permanecer recluso no asilo, senão que já a perdeu antes de nele ingressar. Se antigamente o confinamento e, portanto, a privação da liberdade, era somente da ordem das consequências jurídicas, doravante será da ordem de uma psicologia da loucura. Interna-se não para privar o indivíduo da liberdade, mas para sancionar sua abolição já detectável em nível psicológico. A perda da liberdade deixa de ser vista como consequência de uma prática política de exclusão e higiene social, para se tornar a essência da loucura. Depreende-se que o mundo fechado do asilo, local da privação de liberdade, é o lugar mais adequado para aquele que já a perdeu.
Determinismo da loucura
O que Foucault questiona é a psiquiatria positivista do início do século XIX ter transformado a privação da liberdade do louco, por ocasião da reforma social do internamento, em natureza da loucura, em doença, objeto de tratamento psiquiátrico. A coerção do louco paradoxalmente passou a se constituir em um determinismo da loucura: “aquilo que era reforma social do internamento torna-se fidelidade às verdades profundas da loucura; e a maneira pela qual se aliena o louco deixa-se esquecer para reaparecer como natureza da alienação” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 458). Se a loucura pôde ser concebida como alienação, é porque ela já estava internada na e pela estrutura do internamento.
Foucault vê na alienação da psiquiatria positiva um novo mito: o internamento clássico criou um estado de alienação, que existia somente a partir de fora, para aqueles que internavam e viam no louco um animal, um estranho. Quanto a Pinel e Tuke, interiorizaram esta alienação, instalaram-na no internamento, delimitaram-na como distância do louco em relação a si próprio. Os lendários pais da psiquiatria naturalizaram o que era somente um conceito, entenderam por liberação de uma verdade o que não passava de reconstituição de uma moral, transformaram em cura espontânea da loucura aquilo que somente era constitutivo de uma realidade artificialmente elaborada (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 501). A psiquiatria reconheceu como sua origem uma evidência que, paradoxalmente, não passava de um mito.
Camisas de força químicas
Pinel, no seu Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou mania, foi quem, pela primeira vez, definiu as categorias da doença mental que perdurariam por um século. A principal delas, a que melhor expressava a essência da loucura, era a mania, uma espécie de fúria e delírio agudo. Após a adoção da lei de 1838, a discussão em torno da natureza da loucura mudou. Essa lei facultava a criação de hospitais psiquiátricos em todo o território francês e definia a condição do homem louco a partir da proteção do ideal da família e do comércio, segundo a sociedade burguesa. A natureza da loucura agora estava centrada na noção de monomania, criada em 1810, por Étienne Esquirol , discípulo de Pinel e um dos fundadores do asilo. Monomania era a ideia fixa e obsessiva que se apossava da mente saudável. Na verdade constituía a tradução, em termos patológicos, de um anseio compreensível de uma sociedade pós-revolucionária saída do regicídio na sequência da qual cada um passou a se considerar rei, imperador - imperador do crime, rei da fortuna etc. (ROUDINESCO, E. Filósofos da tormenta. Rio de Janeiro, Zahar, 2007, p. 137). Seria preciso ainda citar Jean-Martin Charcot , que integrou a histeria como uma espécie de semiloucura, uma doença de fim de século, que iria tomar o corpo das mulheres e confundir a identidade dos homens. Essas categorias da doença mental iriam perdurar até os anos 1960, quando os remédios tranquilizantes substituiriam as antigas camisas de força pelas novas camisas de força químicas.
A rigor, Foucault não negou a definição da loucura como doença mental, somente mostrou que essa definição é unicamente moderna, indissociável de um novo sequestro da loucura por parte da razão (psiquiátrica). Foucault não quis fazer a história sobre a loucura, mas a história do poder da razão que progressivamente a silenciou, seja como “erro”, como “desrazão” ou como “doença”. Com isso, o que ele questiona é a gênese “pura” e a maneira “objetiva” de tratar a loucura, reivindicadas pela psiquiatria.
IHU On-Line - A expressão “ortopedia moral” pode nos ajudar a compreender a institucionalização da loucura? Por quê?
Cesar Candiotto - A expressão “ortopedia moral” foi empregada por Foucault alguns anos mais tarde em Vigiar e punir para caracterizar os mecanismos da normalização disciplinar na sociedade ocidental, no decorrer dos séculos XVII e XVIII. Neste livro, ele mostrou que os imperativos morais da sociedade burguesa eram indissociáveis de tecnologias de poder cuja finalidade mais significativa era a constituição do indivíduo normal mediante o controle sutil da distribuição dos seus corpos segundo as variáveis do espaço e tempo. Tratava-se de criar um campo de visibilidades suscetível de objetivar seus gestos e ações corporais para torná-los cada vez mais úteis e, indiretamente, ele mesmo se subjetivasse como vontade dócil e obediente.
Mas esse processo de ortopedia moral, também incluía a higienização social segundo a qual os indivíduos irredutíveis à norma disciplinar, porque desviantes, perigosos ou inaptos, deveriam ser segregados e submetidos a mecanismos que misturavam correção e vigilância. Em História da loucura Foucault não utiliza a expressão “ortopedia moral”, mas ela poderia ser retrospectivamente identificada nesse livro a partir de dois níveis indissociáveis: o primeiro concerne à distribuição do espaço asilar, o segundo diz respeito à relação nele estabelecida entre médico e paciente.
Ortopedia moral e espaço asilar
A miríade (real ou virtual) de visibilidades à qual o louco está submetido na nova estrutura arquitetural do asilo caracteriza uma forma de ortopedia moral. Importante é que o louco se sinta vigiado, que o espaço no qual ele transita seja similar a um olho anônimo, a uma maquinaria que vigia e corrige. Uma das teses de Foucault sobre a psiquiatria nascente é sua relação embrionária com esse espaço asilar. Psiquiatria e prática asilar não alcançam a loucura porque se limitam a dobrar o louco à ortopedia moral, como também ocorreu nos hospícios brasileiros a partir de meados do século XIX: “Tanto sua estrutura [hospício e psiquiatria] quanto seu funcionamento realizam o projeto psiquiátrico nascente: isola o louco da sociedade; organiza o espaço interno e a distribuição dos indivíduos preservando uma convivência regular e ordenada; vigia o alienado em todos os momentos e em todos os lugares, através de uma ‘pirâmide de olhares’ composta de médicos, enfermeiros, funcionários e serventes; distribui o tempo dos internos submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica” (MACHADO, Roberto. A constituição da psiquiatria no Brasil. Conceito, n.1, Lisboa: novembro 2005, p. 60-61). Portanto, a terapêutica aqui é sinônimo de ortopedia moral, de correção dos desvios, algo muito similar ao que ocorria em outras práticas sociais de instituições semiabertas ou fechadas dos séculos XVIII e XIX.
Ortopedia moral e relação médico/paciente
Na perspectiva de Foucault, o novo gesto da reclusão do louco no asilo não se deu em função de uma humanização da loucura e sim de um novo sequestro da loucura, por meio da relação entre médico e paciente. Inicialmente, a terapia está fundamentada na autoridade do médico, e não no conhecimento real da doença; ela procede da interiorização da ordem e da razão do médico pelo louco diante de sua vontade irracional e sua paixão desenfreada. Antes de tudo, o médico tem uma função moral: impelir com suas exigências racionais a que o doente reprima suas paixões e seus desejos. Ele não conhece a loucura, apenas a domina; aquilo que para a psiquiatria é objetividade para Foucault nada mais é do que outra forma de ortopedia moral, objetivo da nova separação social. “A personagem do psiquiatra [...] devia agir não a partir de uma definição objetiva da doença ou de um certo diagnóstico classificador, mas apoiando-se nesses prestígios onde se ocultam os segredos da Família, da Autoridade, da Punição e do Amor. É jogando com esses prestígios e assumindo a máscara do Pai e do Justiceiro que o médico, prescindindo da sua competência médica, transforma-se no operador quase mágico da cura e assume a figura de um taumaturgo. Basta que ele olhe e fale para que as faltas secretas apareçam, para que as presunções insensatas se esfumem e a loucura finalmente se ordene pela razão. Sua presença e sua fala são dotadas desse poder de desalienação que de repente descobre a falta e restaura a ordem da moral” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 526). Nesse segundo caso, não se trata de um médico que cura uma doença, mas de um taumaturgo que pretende alcançar uma ortopedia moral do comportamento.
IHU On-Line - Em que medida a psiquiatria reflete os mecanismos coercitivos sociais através da forma como trata a loucura?
Cesar Candiotto - A partir da Revolução Francesa, por um lado a loucura se libera de sua associação à miséria e às contravenções morais; por outro, ela sofre uma nova reclusão pela moral social. Se o pobre saudável é liberto do aprisionamento e passa a ser absorvido na indústria incipiente, se o contraventor moral, político ou religioso é solto como resultado da crítica revolucionária ao poder tirânico, o insensato, porém, permanece preso. Agora, porém, não mais no hospital geral, mas na geografia do asilo.
A transferência do hospital geral para o asilo, do aprisionamento para o internamento, inscreveu o louco em um domínio médico que o livrou das cadeias que pesavam sobre seu corpo, mas não da cadeia moral que o encerrava junto aos demais habitantes do antigo hospital geral. Na perspectiva de Foucault, o novo gesto da reclusão do louco no asilo não se deu em função de uma humanização da loucura e sim de seu novo sequestro pela razão social, a partir do argumento da defesa da sociedade.
Historicamente, antes de tratar do louco como doente, o médico foi solicitado ao hospital para proteger a própria sociedade dele. Mesmo depois de tratá-lo como doente mental, essa rede de proteção social continuou a existir na forma de aprisionamento moral, já que o louco era tido como um indivíduo virtualmente perigoso.
Muitos traços do mundo correcionário do hospital geral estarão presentes na nova estrutura do asilo. Neste permanece uma confusão entre castigo e remédio, entre o gesto que pune e o gesto que cura (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p.100). Os primeiros asilos do século XIX têm entre suas atividades a aplicação de remédios morais (p. 101), penitência, julgamento perpétuo (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 519), uso regrado da humilhação e ducha fria.
Perda psicológica da liberdade
Foucault irá salientar que foi a partir dessa relação moral que a psiquiatria constituiu-se como ciência humana. No fundo, o distanciamento científico do objeto loucura foi precedido da distância física da sociedade em relação aos loucos, dela proscritos ao modo como o foram os leprosos na Idade Média.
Importante é ser ressaltado que a psiquiatria não representa o término dos mecanismos de controle social, mas é secretamente permeada pelos mesmos. Esses mecanismos de controle eram exercidos pelas famílias ou pela comunidade. No Antigo Regime, essa instância social-familiar, representante do “bom senso”, demandava que a lei declarasse o louco como incapaz da gestão de seus bens, do cuidado dos seus filhos, irresponsáveis pelos seus atos. (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 466-467). Desse controle social é que surge a penalidade, não como resposta a uma infração, mas como meio de correção dos indivíduos ao nível de seu comportamento, de suas atitudes, do perigo que eles representam ao nível de suas virtualidades (FOUCAULT, M. “La vérité et les formes juridiques”. Dits et écrits. Paris: Gallimard, v.II, p. 603). Já no Estado burguês, é o cidadão livre o primeiro juiz da loucura. Isso porque a liberdade é “a verdade imediata de toda natureza humana” e “a medida de toda legislação” (HF, 465). Se, como já dissemos, a natureza da loucura é a perda psicológica da liberdade, a coerção que o cidadão soberano exerce sobre o louco é tão justificável quanto aquela que o psiquiatra exercerá sobre o doente mental. No entanto, independentemente da posição de Foucault, seria muito redutível pensar o estágio atual da psiquiatria como mera reprodutora das coerções sociais pelo modo como trata a loucura.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar alguns aspectos não questionados?
Cesar Candiotto - Somente gostaria de comentar que este ano, por ocasião dos 50 anos de História da loucura, diversos eventos e dossiês procuram refletir sobre o livro. Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre 24 e 27 de outubro, ocorre o VII Colóquio Internacional Michel Foucault, organizado por Salma Tannus Muchail e Márcio Alves da Fonseca, sobre o tema: O Mesmo e o Outro. 50 anos de História da Loucura (1961-2011). Mais informações podem ser obtidas no sítio: http://ipfone.com.br/wp/?p=1. Já a prestigiada revista de filosofia italiana, Aut Aut, publicará no segundo semestre de 2011 um dossiê, intitulado Folie et Déraison, organizada por Mauro Bertani. São algumas iniciativas importantes de reflexão sobre a primeira grande obra de Foucault, meio século depois de sua publicação.

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