domingo, 12 de junho de 2011

divulgação: A economia da criatividade

Vivemos duas mudanças essenciais nas relações humanas: o que produzimos já não é finito — portanto, deve ser acessível a todos; e o prazer de colaborar tornou-se tão importante quanto a remuneração. Nas próximas décadas, estes fatores podem ajudar a promover imensas transformações sociais
Por Ladislau Dowbor, no Le Monde Diplomatique
Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado.
O fator-chave de produção no século passado era a máquina. Hoje, é o conhecimento. Podemos chamar este, enquanto fator de produção, de capital cognitivo. O embate que hoje se trava no Brasil em torno da propriedade intelectual, ainda que se apresente sob a roupa simpática da necessidade de assegurar a remuneração do jovem que publica um livro ou do pobre músico privado do seu ganha-pão pela pirataria, envolve na realidade o controle do capital cognitivo. Nas palavras de Ignacy Sachs, no século passado a luta era por quem controlava as máquinas, os chamados meios de produção. Hoje, é por quem controla o acesso ao conhecimento. Estamos entrando a passos largos na sociedade do conhecimento, na economia criativa.
Como sempre, quando se trata de poderosos interesses, há uma profusão de enunciados empolados sobre ética, mas muito pouca compreensão, ou vontade de compreender, o que está em jogo. Este artigo busca trazer um pouco de explicitação dos mecanismos.
Podemos partir da construção teórica muito transparente que nos apresenta Clay Shirky, no seu Cognitive surplus(Excedente cognitivo). Primeiro, vem o próprio conceito de excedente cognitivo. Cada um de nós tem grande quantidade de conhecimentos acumulados, que nos vem tanto de estudos como de experiência prática. Compartilhamos apenas uma pequena parte desse conhecimento acumulado, e utilizamos menos ainda o nosso potencial. Somando o capital cognitivo acumulado em bilhões de pessoas no mundo, temos aí uma fonte impressionante de riqueza parada ou subutilizada.
Uma dimensão do uso desse capital cognitivo é a que utilizamos para a nossa sobrevivência, no emprego, nas pequenas negociações do cotidiano. Mas, de longe, a maior parte fica simplesmente armazenada na nossa cabeça, às vezes partilhada com filhos e amigos, na esperança que não repitam as nossas bobagens. E quando nos vem uma grande ideia, nem sempre a aproveitamos, pois não temos o meio de disponibilizá-la. Fica na nossa cabeça, com fortes possibilidades de mofo, a não ser que pertençamos ao ambiente de criação especializado que corresponde, ou surja um espaço colaborativo aberto em que possamos dar-lhe vazão. Em termos técnicos, é em grande parte um capital parado, ou travado por conceitos estreitos de interesses comerciais fixados na lógica da era dos bens materiais, destes que se trancam em casa ou na garagem.
O conhecimento é diferente. Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. O computador que utilizamos poderá ter 5% de valor pela dimensão física do produto, e 95% pelo conhecimento incorporado. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado. A ideia que tenho não obedece às mesmas regras.
Conhecimento muda as relações comerciais
As regras são diferentes porque o conhecimento, como principal fator de produção de bens e serviços na economia moderna, muda as relações comerciais. Se peço um quilo de arroz emprestado a meu vizinho, devolverei o mesmo pacote de arroz, ou o valor equivalente — do contrário, ele terá prejuízo. Mas se ele me dá uma ideia sobre como preparar um bom prato com esse arroz, eu ganhei uma boa ideia e ele não perdeu nenhuma. Ele fica feliz por ensinar, eu por aprender. Por isso, aliás, é que todos nós oferecemos receitas, não o produto. O conhecimento é um fator de produção que, contrariamente ao arroz, aço, petróleo ou madeira, não reduz quando se consome. Pelo contrário, como cada ideia tende a gerar outras ideias por via de associações inovadoras, o estoque de ideias se multiplica. E como a ideia está se tornando o principal fator de geração de riqueza, todos enriquecem. A não ser, naturalmente, que alguém diga “esta ideia é minha”, e a tranque em barreiras virtuais.
A mudança é profunda. Tudo que estudamos em Economia está centrado na sua missão principal, que é a alocação racional de recursos escassos: alocação de bens que, se forem utilizados num produto, não estarão disponíveis para outros. No caso da ideia, do conhecimento, deixam de ser escassos por duas razões: primeiro, porque pela própria natureza não são bens rivais, quem comunica uma ideia não deixa de tê-la. Segundo, porque a ideia, sendo imaterial, software da economia por assim dizer, pode ser transmitida em volumes virtualmente infinitos nas redes de internet que hoje conectam o planeta: 2 bilhões de pessoas hoje, e durante esta década provavelmente todos os habitantes, todas as escolas, todas as empresas, repartições públicas, hospitais ou postos de saúde. É a era da conectividade. Como o conhecimento deixa de ser escasso, em vez de buscar novas regras, empresas tentam torná-lo escasso, para que possam cobrar pelo acesso. Em vez de multiplicar riqueza, o sistema passa a restringi-la.
A mudança atinge também outro ponto básico da teoria econômica: o das motivações. Durante longo tempo, o nosso raciocínio econômico se viu paralisado pela magistral simplificação de que as motivações no comportamento econômico se reduzem à maximização racional de vantagens. Realmente, se é para apertar 3 mil parafusos por dia, a possível motivação não está no que fazemos, mas no quanto isso nos rende. A economia criativa desperta uma grande motivação subestimada: o prazer de realizar uma coisa útil, o gosto de contribuir, a excitação de uma coisa nova. Junte-se o prazer de construir algo de forma colaborativa com outras pessoas, a satisfação do trabalho competente, e temos a mistura necessária para uma profunda transformação nas regras do jogo. Nas palavras de Shirky: “Assumir que as pessoas são egoístas pode se tornar uma profecia que se autoconfirma, criando sistemas que asseguram muita liberdade individual para agir, mas não muito valor público ou gestão de recursos coletivos para o bem público”.(1)
Podemos ir além: hoje, colaborar não é apenas uma oportunidade, é uma necessidade. Para a sobrevivência de todos, o acesso às tecnologias que reduzem o impacto climático, por exemplo, não só não deve ser travado por patentes, como fomentado. Generalizar o conhecimento, ampliar a base planetária de pessoas conscientes, torna-se cada vez mais vital. Afinal, estamos gastando rios de recursos em educação para depois travar o acesso ao conhecimento?
De onde vem o sucesso da Wikipédia, a maior e mais eficiente enciclopédia que a humanidade já produziu? Vem simplesmente do prazer das pessoas contribuírem para o conhecimento geral. O imenso estoque planetário de conhecimentos acumulados na cabeça das pessoas, com a sua impressionante diversidade, pode simplesmente ser transformado em instrumentos úteis para todos. E na era da economia do conhecimento, quando este se torna o principal fator de produção de riquezas, colocar em rede tal capital cognitivo melhora a condição humana. Viver melhor não constitui uma remuneração, ainda que não monetária? Quase esquecemos o quanto o WWW e a conectividade planetária resultante estão dinamizando a produtividade de todos nós e melhorando a nossa qualidade de vida. Quem administra a internet é uma instituição sem fins lucrativos. As ondas eletromagnéticas são um bem público.Qual é a governança do sistema que resulta? Juntando-se os aportes de livros como Cognitive surplusde Clay Shirky; Wikinomicsde Don Tapscott e Anthony Williams; Grátis: O futuro dos preços, ou ainda A cauda longa de Chris Anderson;Apropriação indébita de Gar Alperovitz e Lew Daly;O futuro das ideias ou Remix de Lawrence Lessig;A era do acesso de Jeremy Rifkin, e outros, constatamos que estão se desenhando os mecanismos e a teoria desse novo universo, a economia do conhecimento
Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de Reprodução social e Democracia economômica – um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).

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