quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Uma esquerda à medida do ser humano. Artigo de Alain Touraine

A globalização destruiu todas as instituições sociais. O fundamento dos juízos e da ação se torna apenas moral. Por isso, afirma o sociólogo francês Alain Touraine, "é preciso se ocupar da vida concreta dos indivíduos"

O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 21-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O teorema há muito tempo aceito segundo o qual o centro da vida social é o sistema econômico, ou seja, a estreita correspondência das categorias da vida econômica com as da vida social, não é mais aceitável. A economia se separou da vida social: esse é o significado mais profundo da globalização. O mundo das instituições sociais, políticas e jurídicas está ruindo. A construção de juízos sociais não pode mais ter outros fundamentais senão morais.

Qual é o lugar do trabalho na vida individual e coletiva: esse é o tema que melhor define o espírito de uma concepção "moral" da vida social; a união de uma política desse tipo com a repressão das condições econômicas ilegais transformaria de modo fundamental a vida social de todos. Seria preciso atribuir muito mais importância do que atribuímos hoje a todos os problemas que se referem às minorias de todos os tipos, quer se trate dos muito jovens, quer dos idosos, quer dos deficientes ou das minorias culturais, linguísticas, sexuais, religiosas ou outras ainda.

O problema é que estamos acostumados a ouvir a direita falar a linguagem da moral, e a esquerda, a das relações de poder e da luta do lucro contra os assalariados. Mas ainda é possível ouvir esse discurso quando a especulação reina em toda parte e quando vemos a impossibilidade de reconstruir a economia? E quando, no vazio ou na fraqueza dos discursos feitos por partidos e governos de esquerda, as vozes que ouvimos e que representam mais ativamente a esquerda são, ao contrário, cheias de indignação, de apelos à justiça, de reivindicação do acesso real – e não apenas legal – à satisfação das necessidades mais fortemente sentidas – não é claro que os temas "morais" mobilizam mais do que os estritamente econômicos?

Não existe mais esquerda senão aquela que toma a palavra ou dela se apodera, como já haviam feito os movimentos pioneiros dos anos 1960, sobretudo nos Estados Unidos e na França.

Esquerda ou direita são, acima de tudo, concepções da sociedade, definições do Bem a ser defendido e do Mal a ser combatido. A esquerda ou a direita também podem ser definidas em nível social do ponto de vista das categorias sociais às quais pertencem os eleitores ou os simpatizantes, mas o que está em jogo e a natureza do conflito não podem mais ser definidos em termos sociais. Não são mais os agricultores pobres ou os operários da grande indústria que constituem a esquerda. Vemos isso todos os dias, mais ou menos claramente, dependendo do país que observamos e das categorias que analisamos.

Mas precisamos identificar as novas categorias que compartilham a visão recém-evocada. Precisamos localizar nos principais âmbitos da vida social – produção, distribuição, finanças, educação, saúde, ocupação do território, política cultural etc. – as escolhas que permitem colocar a direita e a esquerda e contrapor uma a outra, tarefa imensa, mas que ao menos é indispensável começar a realizar.

O elemento de definição que vem primeiro à mente é que a direita pensa em termos de objetos e de relações entre objetos, e que define os atores por meio das suas situações objetivas. Chama ainda mais a atenção, portanto, que essa tentativa tenha sido, em um passado já distante identificado com a esquerda. O que impõe que se rompa com as ideologias que sobrevivem às realidades históricas que elas tentaram interpretar. O que define, ao contrário, a esquerda, é que ela pensa e age em termos de direitos.

O populismo de direita, que lamenta as deploráveis condições da infância, dos pobres, das mulheres e dos presos, sempre existiu. Mas o pensamento e a ação só se tornam de esquerda quando o pensamento se interroga sobre as razões da desigualdade, ou da dependência e da violência, buscando nas vítimas os possíveis protagonistas de vontade e desejo de ação.

O setor em que é mais fácil definir a esquerda é o juízo expresso sobre os direitos e sobre a situação das mulheres; talvez porque os progressos rumo à paridade entre homens e mulheres são tão lentos, quando não totalmente ausentes. As nossas sociedades ainda são, nesse contexto, de direita, em imensa maioria. Se o que melhor define a esquerda é o juízo sobre a condição da mulher, a direita se define melhor pela importância atribuída à identidade, que se traduz no medo das minorias, sobretudo as de recente formação. As políticas da identidade são políticas de direita. O que não significa que algumas orientações de esquerda não possam se identificar com um ideal nacional ou religioso, o que é obviamente inegável.

Este é o caminho que é preciso seguir para dar um conteúdo real às ideias de direita e de esquerda. Só quando um grande número de indivíduos, de grupos e de organizações se compromete com decisão em tais tarefas podemos nos preocupar com os problemas de organização política. Com isso, certamente não se quer defender que devamos recomeçar do zero, mas sim que a construção de uma tendência política deve acertar as contas com uma herança de partido que é um obstáculo, mais do que uma ajuda, ao desenvolvimento de novas ideias, de novas práticas, de novas mobilizações.

A partir nossa reflexão contemporânea, essas são as interrogações que deveremos continuar nos pondo: em quais os pontos decisivos a esquerda e a direita se opõem? E quais diferenças devem existir entre as formas de ação política e das pessoas de direita e das pessoas de esquerda?
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