quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"el infarto del alma"

sempre digo que tenho um problema no coração... e não se trata de um problema qualquer... preferia (confesso) ter um sopro... acho tão poético ter um sopro no coração, porque o mal que me aflige, é de ter ventania no coração... tenho furacão no coração... tenho tornados no coração... ter um sopro, acredito, seria tão mais suave... acredito!
pensava nisso porque hoje ganhei um presente lindo... um presente muito lindo! compartilho a vida, dentre tantas pessoas, com uma amiga que me é muito cara (uma das mais caras)... é uma das poucas pessoas com quem cultivo o hábito de trocar presentes de aniversário... mas tecemos, ao longo dos tempos, a singularidade de adquirir o presente a qualquer tempo, desde que antes do próximo aniversário, ou seja, raramente se dá no dia exato do festejo... assimassim, ainda devo seu presente de 2011 e ela me veio com o de 2012!
antes de falar mais desse presente lindo, devo dizer que passei uns dias vendo a vida dura, a vida crua, a vida como ela é... dias comuns... dias que acontecem na existência de qualquer ser vivente que vive (a redundância é pra enfatizar!)... e, no meio desses dias, fui pescar... no domingo, pesquei nesse lugar que aparece no retrato aqui no blog... é um dos lugares em que mais gosto de pescar... no princípio foi uma terra cortada por um forte corredor de vento, depois se transformou numa pedreira (lugar de extração de pedras para a composição asfáltica de estradas - que levam a muitos caminhos) e, muito tempo depois se transformou nesse lago lindo, feito na cratera imensa deixada pelas pedras que saíram a pavimentar caminhos!
acho que não falei em outros escritos, que numa de minhas visitas a esse lugar, estavam lançados os alicerces para a construção de uma casa para um futuro morador que habitaria o mirante daquela paisagem... quando vi tijolos e marcos da habitação-futura, não sabia quem seria seu sortudo-morador... juro que quis largar tudo e me tornar uma eremita-dona-daquela-vista... dona, não, mas estertora-privilegiada-daquela-vista... e numa de minhas idas àquelas redondezas, afetada, não visitei o alçapão do sortudo!
agora, por esses dias, por necessidade pensadoira da pesca, fui ao meu retiro... encontrei-o totalmente diferente e com seu legítimo morador habitando o mirante de minhas jornadas... o pesqueiro, que outrora era atravessado por taquaras espinhentas, estava noutro lugar, feito somente para quem pode acessar suas bordas... desci o novo, estranho e íngreme acesso (uma escada improvisada num barranco retilíneo, que lhe ia até à metade... depois disso, só desce quem quer mesmo chegar!).
mas a questão não está na escada e sim no morador... eu que tenho medo dessas alturas todas, só consegui descer aquele barranco por conta da literatura que me tomou as ventas!
vejam que o morador que habita aquele mirante é o velho carteiro que ocupava a única vaga existente na agência dos correios do lugarejo em que passei minha infância e adolescência... foi ele que postou todas as cartas que remeti (e que não foram poucas!) e que recebeu todas as cartas que me foram enviadas (que também não foram poucas!)! é personagem emoldurado pelo romantismo de minha vã literatura!
hoje ele está aposentado... mora naquele mirante que fica na esquina entre a vida do carteiro e a do poeta... fuma seu palheiro solitário que espanta os mosquitos, enquanto cuida dos patos, dos porcos, dos cabritos, das galinhas, dos peixes, das vacas e de outros quetais que habitam aquele pequeno universo! mal sabe, ele, que seja uma figura poética e literária em meu imaginário! conversei com ele, tendo meu olhar cravado no horizonte, como uma doida que fala sozinha, enquanto imaginariza seus personagens presentificados em breves sombras dos aconteceres!
pesquei uma sacada de traíras (tem quem pesque taraíras, mas eu pesco traíras!)... pesquei pensando na poeticidade daquele momento... de estar pescando em meio à poesia, aos pés da casa do carteiro... talvez pudesse ser aos pés da casa do poeta... mas estava eu, no recanto da poesia (ouvindo, inclusive, seu eco) e aos pés da casa do carteiro... é inusitado, isso... a casa, na literatura, sempre é do poeta e nunca do carteiro... o carteiro nunca tem casa, pois a ele só é fadado carregar a poesia e as cartas... eu tive, nesse instante do acaso, a possibilidade de encontrar um carteiro habitando o mirante da poesia... ele não sabe, mas eu sei!
e subi aquele barranco vertical como quem anda numa suave estrada horizontal... assim, ontem comi as traíras com uma polenta de milho novo, mas segui poetando com esse acaso do carteiro ter entrado de solavanco no meio das histórias que me habitam o imaginário... hoje, voltando das andanças pelo mundo, cumpri minhas atividades de trabalho e depois corri a visitar essa amiga de que falei no início deste escrito... corri, porque passamos muitos dias sem conversar e amanhã cedito ela ruma para suas andanças pelo mundo... colocamos a conversa em dia e alinhavamos as próximas... quase vindo embora, ela saltou a buscar algo que trouxera de suas recentes andanças pelo mundo!
esteve na terra de neruda... esse poeta que me inspira nessa coisa d'o carteiro e d'o poeta... e passou pela casa que o dito habitou...e passou, também, numa casa de livros... quando deu de olhos no livro "el infarto del alma"*, pensou que isso seria a cara das coisas que mo atravessam... embalou para presente e trouxe-mo!
prometo: falarei mais desse livro (e essa não é uma daquelas vãs promessas feitas no afã do momento!)... mas deixo a impressão de javier edwards r., na eleição dos melhores livros de 1995, quando diz: "Relato breve, ensayo, poesía y fotografia se unem en un texto inquietante, que explora lenguajes imposibles para penetrar el mundo de la loucura.// Sin duda un libro que debe leerse y mirarse con necesidad de ver y entender, la misma que llevó a sus autoras a traspasar las fronteras para volver y demonstrar que al otro lado no hay más daño y diferencia que los que nos hemos inflingido desde el país de la cordura".
e, para dar ponto de nó neste escrito, deixo a dedicatória dessa amiga, nesse livro-presente-lindo: "Maria Luiza, quando vi o livro logo associei a ti. Lembrei que muitas vezes tens livrado as pessoas de um infarto de alma. Se é pela capacidade profissional ou/e humana de ouvir e olhar dentro da alma, pouco interessa. Importa a poeticidade da tua voz e o grande carinho que tens pelos que se colocam para ti e em ti. Tenho orgulho de fazer parte desses. Desde el Chile, 13.1.12".
gosto dessa coisa de ser poeta antes de ser gente... e de ser gente antes de ser profissional... acho que isso tem ajudado a livrar muitas pessoas de infartos da alma!
gosto, também, dessa coisa de ter poucos-mas-caros-amigos... gosto de ouvir e olhar dentro da alma daqueles que ouvem e olham dentro de minha alma, e que enxergam a poesia que me habita, mas que também me deixam ver a poesia que lhes transita!
é claro que muitos acreditam que oiço e olho assim, por uma característica de meus ouvidos e de minhas retinas... mal sabem que tateio e leio sinais, porque sou meio-surda e meio-cega! é a poesia que me habita que me faz ouvir e ver melhor!
* El infarto del alma, de Paz Errázuriz / Diamela Eltit, ocholibros, junio de 2010, chile.

8 comentários:

  1. mui belo, poeta de almas.

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  2. Tu já me livrou de muitos infartos da alma e sempre me mostra como dá prá viver com o coração leve. E o melhor é que tu mostra isso no SUS ou em qualquer outro lugar.

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  3. Bom dia Maria!

    Liiiindo texto, como todos que leio no seu blog! Obrigada por escrever dessa forma tão bonita...

    Grande abraço!

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  4. Lindas as palavras que você escreveu.Mais belas que uma poesia,minha amiga querida.
    Abraços.

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  5. Olá Maria Luiza, estava inspirada...muito lindo o texto, mas vou aproveitar para rasgar uma seda, fiquei feliz hj qdo um dos nossos (não gosto do termo usuários e nem pacientes) mas sim um cidadão o qual vc disponibiliza o seu tempo, te elogiou muito, falou da melhora de seu quadro a partir dos atendimentos, heheheh fez isso em público. O que aconteceu foi que tivemos um problema técnico hj e as sessões começaram mais tarde, então enquanto aguardavam o inicio aconteceu um longo bate papo na sala de espera,e a troca de experiencias foi bem legal, de vez em quando eu ia lá e dava um piteco. Mas a troca de experiências foi bem legal. Bueno, mas foi mesmo para dizer que fiquei feliz, e que admiro muito o teu trabalho.

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  6. olá, fátima! é bacana vivenciar essas coisas no SUS... é bonito ver pessoas que, em muitos casos, já haviam perdido a vitalidade pq não conseguiram mais dar conta das coisas da vida e, buscando auxílio, conseguem transformar a desvitalização em outros caminhos possíveis para suas existências!
    sabemos, todos, que não é em todas as situações e com todos os sujeitos que seja possível fazer um trabalho bacana e fértil (pq isso depende de muitos fatores, principalmente de ordem subjetiva), mas quando é possível, produz esses movimentos bonitos na vida das gentes!
    e vc que tb faz um trabalho muito bacana, sabe o quão potente é o fato de fazermos as coisas dinamizados por vitalismos e quereres!
    quando produzimos acontecimentos e movimentos, fazemos a vida pulsar!
    abraço grande pra vc!

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  7. Grande pescadora, um dia destes vamos ver se pega mesmo, pois tu tens a loucura dos poétas sempre exagerada e apaixonada e a mania de ver beleza em tudo tipica dos pescadores (eu to voltando de uma todo arranhado mas tava lindo). Veja o meu caso peguei um jundia, ENORME! O povo não acreditou! Tive de convencê los, coisa que não deu trabalho pois sou pescador. O problema é que tive de convencer muitos da façanha, e agora quando me perguntam o tamanho do peixe tenho que recorrer a estratégias como; o fulano sabe, éra grande né?

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  8. nada! vc poderia ter ido participar da pescaria! e nessa história não exagero em nada... nesse dia da pesca das traíras, não peguei um lambari, mas as ditas, peguei como quem pesca lambari! vamos ver se na próxima, vc desce o barranco que eu tive que descer e se depois dá conta das danadas fazendo fila no pesqueiro! quero ver! quero ver, tb, se vc pega aquelas que deixei escapar (aquelas sim eram das grandes... tinha que ver... o carteiro, cada vez que ouvia um pealo duma caindo de volta n'água, levantava da cadeira dele só pra ver a água se acomodando nas margens de novo)!
    ah! e depois quero ver se dá conta da fritada que a dona ilone faz!

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