quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Com gente é diferente


"Proponho que a reflexão seja feita de forma inversa, de trás para a frente. Tendo sido internadas, mesmo sem desejá-lo, o que se pretende fazer com essas criaturas? Qual é a natureza dessa intervenção? Qual o propósito desse procedimento?", escreve Antonio Mourão Cavalcante, doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain e em Antropologia pela Universidade de Lyon, professor titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, autor do livro 'Drogas, Esse Barato Sai Caro' (Ed. Record), em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 23-01-2012.
Segundo ele, "não temos estruturas minimamente suficientes para enfrentar o desafio. E, nesse caso, a improvisação beira o desatino como política pública. Ávidos por verbas fáceis, alguns municípios apresentarão projetos mirabolantes. Lembro que drogado não é lixo que se recolhe e joga num aterro sanitário, para que lá apodreça. Hoje, no Brasil, são raras as clínicas que merecem esse nome..."
Para o psiquiatra, "a cracolândia não é um problema unicamente para passar a borracha, mas existe para nos questionar. Está na hora de pensarmos que com gente a coisa é diferente".
Eis o artigo.

A sociedade continua muito preocupada com o problema das drogas. A mídia estampa a clamorosa situação. O problema manifesta-se pelo abuso do consumo e por suas consequências físicas e psíquicas. E também pelas atrocidades que o tráfico suscita: as guerras de traficantes pela ocupação de territórios de venda e os acintosos ajustes de contas com consumidores em débito - condenados à morte. Forma-se, então, esse caldo de violência, com um cortejo de medo, dor e desilusão das famílias atingidas. O que fazer?

A discussão acalorada sobre a internação compulsória de usuários de crack, como desejam alguns administradores públicos, revela total desconhecimento dessa temática. E uma maneira desabusada, arrogante e autoritária de encarar o assunto. Prende. Enquadra. Interna. Faz "isso" desaparecer da nossa frente. Pega mal para uma administração aceitar que exista um espaço público ocupado por "essa gente". Há até designação específica: cracolândia.

Proponho que a reflexão seja feita de forma inversa, de trás para a frente. Tendo sido internadas, mesmo sem desejá-lo, o que se pretende fazer com essas criaturas? Qual é a natureza dessa intervenção? Qual o propósito desse procedimento?

Ora, todos os estudos existentes sobre o assunto convergem para alguns pontos preocupantes: se o objetivo da internação é a cura - parar de usar a droga -, os resultados têm sido pífios, quase nulos. Durante a permanência é possível que haja redução e mesmo suspensão do uso. Porém, quando do regresso ao mesmo meio social, com as mesmas convergências históricas e pessoais - família desagregada, sem vínculos, sem escolaridade, sem profissionalização, sem motivação para esse mundo de competição em que vivemos -, logo serão presas fáceis e o retorno é inevitável.

Digamos que, por toque mágico e/ou milagroso, se dê uma ocorrência mais intensa que vire o desejo do jovem. Algo como: agora ele quer se tratar, quer "virar gente", reconstruir a vida. Onde encontrar pessoal qualificado, profissionais treinados para acompanhar esses milhares de clientes? Qual a instituição, no País, que hoje prepara esses profissionais? Psiquiatras, por exemplo, estão agora mais voltados para a prescrição de psicofármacos do que "perder tempo em conversa com pacientes". Quem conduzirá essa "viagem" de volta? Não temos estruturas minimamente suficientes para enfrentar o desafio. E, nesse caso, a improvisação beira o desatino como política pública. Ávidos por verbas fáceis, alguns municípios apresentarão projetos mirabolantes. Lembro que drogado não é lixo que se recolhe e joga num aterro sanitário, para que lá apodreça. Hoje, no Brasil, são raras as clínicas que merecem esse nome...

Mesmo no momento da abordagem inicial, qual/quem é a equipe que avalia? Se cada caso é um caso, será extremamente oneroso e complexo fazer uma triagem de forma sensata e tecnicamente correta.

É importante mencionar, ainda, que nem todo usuário de drogas precisa ser hospitalizado. Existem gradações e abordagens diferenciadas, conforme o nível da adicção. Fala-se apenas em internação. Erro grave! Os centros de atendimento ambulatorial, as casas protegidas, enfim, uma série de outras medidas são muito mais eficazes. O importante é a noção de rede assistencial.

Ademais, um usuário de crack não é apenas um usuário de crack. É um ser humano integral. Dotado de todas as vicissitudes como qualquer um de nós. O que pode até aliviar nossa preocupação: um usuário de crack não se resume a usar/não usar drogas. Sua problemática não consiste unicamente em deixar de consumir. Ele traz uma história, uma família, amores, frustrações e crimes como qualquer cidadão que mora ali ou em qualquer zona nobre do País.

Devo assinalar, contrariamente ao que pensam nossos doutos administradores, que até hoje as políticas mais bem-sucedidas - em todo o mundo - foram as que focaram o problema em termos de prevenção. Os trabalhos mais proveitosos foram voltados para dois pontos essenciais: fortalecimento da família e melhoria da educação. Os pais precisam ser mais valorizados, somente com a família se é capaz de conseguir algum resultado. O Estado não pode, jamais, substituir o papel de um pai e de uma mãe. E a escola é uma caricatura se não se faz em tempo integral. Lugar de menino é em casa ou na escola.

Agora, essas questões precisam ser tocadas como prioridade. Nada é tão importante quanto investir maciçamente em educação. Há que convocar todos - esforço nacional - para que as famílias sejam ajudadas e as escolas funcionem como escolas. Nada é mais prioritário do que formar a nossa juventude dentro de princípios e valores democráticos, de solidariedade, honestidade e justiça. Ela precisa de sonhos e de ser confrontada com desafios. Algo que o poeta Belchior cantava nos anos 1970: A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais. Qual é mesmo o futuro que desejamos para nossos filhos?

Não nego a necessidade da repressão nem o apoio por meio de uma rede de tratamento. São ações complementares, enxugando o prejuízo. E o tratamento raramente deve consistir em internação. Aliás, qualquer que seja a abordagem, os resultados são decepcionantes.

Trata-se, portanto, de uma tarefa que não pode ser entregue a amadores nem a apressados administradores ávidos por mostrar serviço. Não podem sair às ruas como se convoca uma operação de garis ao fim de uma festa coletiva, com sacos e camburões para recolher o lixo deixado.

Em termos concretos, a cracolândia não é um problema unicamente para passar a borracha, mas existe para nos questionar. Está na hora de pensarmos que com gente a coisa é diferente.

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