Uma Nobel de Medicina escreve: imensos avanços científicos podem ser frustrados, se forem interrompidos mecanismos de solidariedade internacional contra doença
Por Françoise Barré-Sinoussi, no Le Monde Diplomatique | Tradução: Antonio Martins
Apesar dos progressos da pesquisa, desde a primeira descrição da AIDS, em junho de 1981, pronunciar a palavra “cura” permanece temerário. Em maio de 1983, isolamos o agente responsável por esta degradação geral do sistema imunológico, nomeado em seguida vírus da imunodeficiência humana (HIV, em inglês). Trinta anos de pesquisas nos permitiram chegar a um conhecimento extremamento detalhado dos mecanismos de replicação do vírus e de sua disseminação em diversos compartimentos do corpo, onde ele se fixa de forma latente em reservatórios.
Os resultados mais notáveis deste progresso científico são as combinações de anti-retrovirais (ARV), que surgiram em 1996 e permitiram reduzir em mais de 85% a mortalidade dos pacientes Sua ação é, além de terapêutica, preventiva. Desde 1994, o experimento clínico ACTG076 mostrou a eficácia da azidotimina (o “AZT”) para prevenir a transmissão do HIV na gravidez. Estudos recentes acabam de confirmar a potência dos ARVs para limitar de maneira drástica a transmissão sexual do vírus.
São resultados muito importantes. Ao comprovarem que os ARVs permitem não apenas salvar muitas vidas, mas também impedir novas contaminações e frear a expansão da epidemia, requerem uma aceleração do acesso universal aos tratamentos. Em Botswana, onde a cobertura por anti-retrovirais é de 90%, “o número de novas infeções por HIV é de 30% a 50% inferior ao que se daria, na ausência de acesso universal ao tratamento”, indica o último relatório da Onusida (1).
Ora, muitos países não possuem os recursos que permitiriam enfrentar o custo elevado dos tratamentos. Dependem da solidariedade internacional. Infelizmente, a crise financeira mundial projeta pesadas incertezas sobre o futuro de tais financiamentos, pois os países doadores não respeitam mais seus compromissos. A falta de ARVs já se faz sentir em diversos países receptores de apoio. Eles tornam-se incapazes de tratar pacientes novos e arriscam-se até a interromper os tratamentos em curso. A situação é ainda mais inquietante porque a interrupção das terapias pode levar ao surgimento de cepas do HIV resistentes, e abrir caminho para o ressurgimento de uma epidemia mundial.
A luta contra uma pandemia como a do HIV não pode ser fragilizada pela volatilidade das políticas. É imperativo encontrar mecanismos de financiamento inovadores e perenes, como o tributo sobre as passagens de avião que alimenta o fundo da Unitaid. Há anos, diversos movimentos reivindicam que se tributem as transações financeiras, em benefício da saúde nos países em desenvolvimento. Devemos fazer todo o esforço necessário para que esta proposta seja considerada pelos países do G-20.
Em paralelo, devemos redobrar os esforços para desenvolver novas opções terapêuticas. Não se deve esquecer que, embora os anti-retrovirais permitam aos pacientes viver com o HIV – o que já é muito –, o tratamento desta infecção ainda é pesado. Os coquetéis de drogas, que têm efeitos colaterais, precisam ser usados durante toda a vida, sem falhas. Mas eles não eliminam totalmente o vírus, cuja persistência nos reservatórios do corpo está associada a uma inflação crônica e generalizada do sistema imunológico. Os pacientes não recuperam uma esperança de vida idêntica à da população geral. Eles sofrem, entre outros, riscos mais elevados de doenças cardiovasculares, neurológicas, câncer e envelhecimento precoce do organismo.
Erradicar a infecção pelo HIV será, por algum tempo ainda, um sonho. Enquanto isso, um conjunto de modelos permite pensar que poderíamos, em certo prazo, transformar este sonho em realidade, desenvolvendo estratégias terapêuticas curtas, que permitissem alcançar uma remissão de longo prazo, independente de qualquer tipo de tratamento.
Recentemente, o caso de Timothy Ray Brown, chamado de “paciente de Berlim”, demonstrou a viabilidade de tal estratégia. Este homem de seus quarenta anos, que vivia com HIV, desenvolveu uma leucemia. Obrigado a realizar um transplante de medula óssea para curá-lo, seu médico selecionou um doador compatível, mas que tinha, além disso, uma particularidade genética: uma mutação do co-receptor CCR5 – uma molécula na superfície das células T CD4, com a qual o vírus interage, para penetrá-las. Sabemos há alguns anos que alguns indivíduos raros – de origem caucasiana – possuem esta mutação, chamada Delta 32, que os torna resistentes à infecção pelo HIV.
Em fevereiro de 2007, no momento do transplante de medula, o tratamento anti-retroviral foi interrompido. Desde então – há cerca de cinco anos – não se detecta nenhum traço do vírus no paciente, mesmo quando empregados os métodos mais sensíveis e quando se vasculha todos os compartimentos em que o HIV estabelece reservatórios (intestinos e sistema nervoso central). No entanto, seu organismo continua a produzir anticorpos contra o vírus, indicando que a infecção pode não ter desaparecido totalmente. Do ponto de vista científico, é difícil de afirmar se, na origem desta “cura”, está apenas a mutação Delta 32. Os tratamentos imunodepresssivos que acompanham uma intervenção cirúrgica tão complexa podem ter jogado um papel. Ainda que seja impossível imaginar o desenvolvimento em larga escala de um método extremamente arriscado e custoso, o caso único do “paciente de Berlim” oferece uma razão científica para abordagens de terapia genética que tenham como alvo, entre outros, o receptor CCR5.
Os pacientes “de controle” do HIV representam o modelo ideal de cura a longo prazo. Trata-se de indivíduos raros (menos de 0,3% das pessoas infectadas pelo HIV) que, soropositivos há mais de dez anos, mantêm sem nenhum tratamento uma carga viral indetectável, e não apresentam nenhum sinal de progressão da AIDS. Observa-se nestes pacientes, de forma notável, um nível de reservatório do HIV mais frágil que nos demais. Sabemos hoje que a manutenção deste controle natural – e extremamente poderoso – da infecção é assegurado por dois mecanismos diferentes. O primeiro diz respeito às células imunitárias chamadas citotóxicas (que eliminam as células infectadas). O segundo está ligado a uma resistência intrínseca de células imunitárias. A compreensão destes mecanismos pode nos ajudar a elaborar novas estratégias terapêuticas, para que um dia todas as pessoas que vivem com o HIV passam controlar sua infecção mesmo interrompendo o tratamento hoje majoritário.
Além disso, há na França um estudo único, chamado “Visconti”, que reúne dezoito pacientes. Diagnosticados e tratados entre dois e três meses após a infecção, eles interromperam, segundo seus médicos, o tratamento após alguns anos. Desde então, controlam a infecção. Estas observações confirmam o enorme benefício de um tratamento ultra-precoce. A análise das características imunológicas que permitem a estes pacientes dispensar terapias poderá aportar informações extremamente preciosas.
Um último modelo importante é o dos macacos da África, hospedeiros naturais dos vírus da imunodeficiência simiesca (SIV), que originaram o HIV. Ao contrário dos humanos contagiados pelo HIV, os macacos não desenvolvem AIDS. Se seu sistema imunológico reage à infecção, esta resposta é rapidamente reprimida. Resultado: entre eles, o vírus multiplica-se livremente, sem que se observe a reação inflamatória crônica terrível que atinge o ser humano.
Que mecanismos é preciso induzir, para desencadear uma proteção contra o HIV-AIDS? Isso ainda é um mistério. Muito provavelmente, uma combinação de abordagens terapêuticas e vacinais será, necessária. É por isso que, sob a égide da Sociedade Internacional da AIDS (International AIDS Society, IAS), um grupo de trabalho composto de cientistas do mundo inteiro se debruça sobre uma estratégia global, capaz de definir as prioridades que é preciso perseguir, na esperança de vivermos, um dia, num mundo sem HIV-AIDS. As pesquisas não serão úteis apenas ao combate contra a AIDS.
O HIV pode ser, também, uma ferramenta que ajude a compreender melhor os mecanismos precisos que comandam nossa resposta imunológica. Temos muito a aprender com nossos colegas que trabalham com o câncer e outras doenças crônicas também ligadas a anomalias inflamatórias.
Neste período de crise, há duas opções possíveis: a solidariedade e a colaboração, estabelecidas no início da epidemia. Ou o cada-um-por-si, uma escolha que só produziria perdedores
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