Filme de Akira Kurosawa parece mais atual que nunca, ao questionar padrões mercantis de conhecimento e relação com a natureza
Por Arlindenor Pedro*
Assistir Dersu Uzala é um exercício de reflexão sobre o instinto de sobrevivência natural do ser humano, na verdadeira acepção da palavra. Creio ser esta a obra mais eloqüente que o cineasta japonês Akira Kurosawa produziu a respeito do tema. De forma sutil, ele nos faz pensar em nossos limites, propondo situações em que a natureza nos põe à prova, testando nossa habilidade de sobrevivência em um mundo diferente do nosso, onde pouco importa o que aprendemos anteriormente. Em tais condições, seguir os ensinamentos de quem já tem a experiência da adaptação ao ambiente que nos é inóspito torna-se primordial. Ao superarem obstáculos em conjunto, os personagens constroem uma relação de mútuo respeito, em que conhecimento é transmitido de forma natural.
Muito bem elaborado, o roteiro baseia-se no diário de viagem do explorador e topógrafo do exército tzarista russo Vladimir Arsemiv. Kurosawa e seu roteirista, o soviético Yuri Nagibin, nos colocam frente à oposição de dois mundos. Um é o do capitão Vladmir Arseniev, homem culto e civilizador, detentor do conhecimento do mundo moderno, onde prevalece a razão – em última instância, o conhecimento explicito. Outro, o do mongol Dersu Uzala, um caçador das estepes siberianas, que detém o conhecimento da vida na natureza, empregando-o não para subjugá-la, mas para sobreviver junto a ela, numa harmonia própria do homem natural. A história desenrola-se numa situação em que a natureza se impõe, de forma que o mais simples prevalece perante o mais complexo – pois suas soluções, baseadas na criatividade (em última instância, o que chamamos de conhecimento tácito) são as mais viáveis para o momento.
Gosto muito de todos os filmes de Kurosawa, nas suas diferentes fases. Suas obras transcenderam a cultura do Japão, permitindo compreender aspectos relevantes da natureza humana. Sua vastíssima produção intelectual inclui filmes que atravessaram inúmeros momentos da história japonesa e revela o sedimento de pensadores e literatos universais, como Dostoievski e Shakespeare. Suas histórias têm um profundo sentido humanista. Por tudo isso, ele – e sua estética muito peculiar – criaram uma legião de seguidores, que o elegeram como um dos maiores cineastas de todos os tempos. Este trabalho foi aclamado em festivais de cinema tais como Moscou, Berlim, Cannes, Veneza, e deram ao autor, em 1989, o Oscar de melhor obra cinematográfica.
Akira Kurosawa popularizou os filmes de samurai na difícil conjuntura do pós-II Guerra. Derrotado e sob ocupação norte-americana, o Japão censurava filmes de orientação marxista, ou enredos baseados em histórias da tradição milenar japonesa, e artes marciais. Os filmes de produção nipônica estavam reduzidos a 25% do mercado.
Sua obra mais conhecida, sobre esse tema, foi Os 7 samurais, de 1954, hoje considerado como um dos melhores filmes japoneses de todos os tempos. Seu roteiro foi adaptado para diversos filmes feitos posteriormente – notadamente, de faroeste. A história nos remete aos conceitos de honra e sentimento de justiça, tema recorrente na obra do diretor. Talvez pelo fato de ter se dedicado à pintura na sua juventude, Kurosawa realizou filmes de beleza e estética inesquecíveis , como se fossem quadros vivos. Sonhos, de 1990, marca o ápice da sua genialidade na comunicação de elementos subjetivos para a tela de cinema.
Dersu Uzala é um filme do renascimento de Kurosawa, após uma tentativa de suicídio, em 1971. Frustrado com seus filmes anteriores, talvez influenciado pela morte do seu irmão, Heigo – que disparou contra o próprio peito após forte processo de depressão, aos 22 anos – o cineasta cortou-se diversas vezes na garganta e pulsos, passando por um difícil período de recuperação. Sobreviveu e aceitou convite do mais importante estúdio da União Soviética (o Mosfilm) para filmar a história do encontro entre o capitão Arseniev e Dersu Uzala. A obra foi realizada em situações dificílimas, em sets de filmagens no interior da Sibéria, onde foi decisiva a infra-estrutura colocada à sua disposição pelo governo soviético. Estava concluída em agosto de 1975.
Numa das cenas marcante do filme, o mongol e o russo perdem-se em um lago congelado, e, de súbito, uma nevasca os atinge. Com a noite chegando, no frio siberiano (que pode atingir até 60ºC negativos), o russo deixa-se abater e se entrega à morte – para ele, certa. Dersu, obstinado, coloca em prática o seu espírito criativo. Convence Arseniev a recolher arbustos na estepe que circunda o lago. O capitão aquiesce. Cambaleante, e mesmo sem entender direito o significado do ato, faz o que Dersu lhe pede, até o esgotamento. Imagina que o companheiro terá uma solução para aquela situação desesperadora. Dersu, então, continua recolhendo a vegetação rala, que mais tarde se transformará numa pequena cabana, cavada na terra. Uma situação em que prevalece a criatividade e o espírito improvisador de um homem acostumado a viver na natureza selvagem.
Durante o desenrolar da história vamos nos apaixonando pelo pequeno mongol, que aos poucos mostra como é realmente. Aparece um homem simples, que vive livre na natureza, com pleno conhecimento do ambiente que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, um ser temeroso das forças naturais, que não as compreende plenamente. Trata-se, na forma descritiva do diretor, do eterno embate entre o mito e a ciência, ou da razão esclarecida, já tão bem estudada pelos filósofos.
Dersu movimenta-se de acordo com suas tradições e o conhecimento adquirido em sua vivência diária. Arseniev orienta-se por seus livros e pelo que lhe foi transmitido nos bancos escolares e no exército. Dersu respeita o conhecimento do seu amigo, e o capitão se surpreende ao ver naquele homem atributos de alto valor de dignidade, honradez, solidariedade, coragem e determinação, aliados a sua extrema simplicidade. São qualidades cada vez mais esquecidas no mundo civilizado.
Opera-se então um equilíbrio entre os dois mundos e se abre, numa perspectiva russeauniana, a tensão entre o “homem natural” e a “civilização”. Desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau, em especial no seu Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade Entre Homens, mas presente também nas investigações de filósofos pós-modernos, o tema é de enorme atualidade. Contribui com a reflexão dos que procuram libertar o homem contemporâneo das cadeias impostas pelo reino da mercadoria — onde prevalece o desequilíbrio imposto por uma forma de ser se choca com nossa condição de ser integrado na natureza.
No filme, após algum tempo juntos, os dois companheiros separam-se. Dersu empreende uma viagem sozinho através das estepes. O russo retorna à civilização com o fruto de suas pesquisas topográficas. Eles irão se encontrar novamente, mas em uma nova situação.
Nela, o mongol curvara-se ao tempo e à idade. Já não possui a destreza e a visão para o tiro – atributos imprescindíveis para um caçador. Seu amigo oferece-lhe, então, a própria casa, e propõe levá-lo à cidade. O mongol aceita com relutância. Acontece o que era de esperar.
Dersu não se adapta à vida na cidade. Como um espírito livre como o dele pode viver tolhido pelos limites da lei e dos costumes? Não pode portar armas, nem atirar; não pode dormir em barraca; sua forma de ser e aparência agridem as pessoas. Vive triste, pois não encontra um lugar nessa sociedade: seus conhecimentos são inúteis na civilização. Toma então a decisão de retornar a Sibéria. Cumprir o seu ciclo: morrer em seu habitat!
O amigo compreende sua decisão. Na despedida, presenteia-o com um moderno rifle, de alta precisão, que não exige visão apurada. Com ele, Dersu poderá caçar novamente. Mas, por força da ironia, será esse o instrumento de sua morte, mais tarde.
O filme inicia e termina com a procura que o capitão empreende, para descobrir onde Dersu Uzala foi enterrado. Seu túmulo estava escondido, pois a floresta onde jazia seu corpo fora destruída para dar lugar a uma recente construção de casas. O mongol fora assassinado por um ladrão que cobiçava seu moderno rifle, presente do amigo.
Bela história, em filme incomum. Mas, também um tema para reflexão, em momentos de procura do novo homem que todos buscamos.
Serra da Mantiqueira, janeiro de 2012.
*Arlindenor Pedro é professor de História e especialista em Projetos Educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, atualmente é produtor de flores tropicais na região das Agulhas Negras.
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