O comentário é de Carla Rodrigues, professora, doutora em filosofia (PUC-Rio) e pesquisadora do CNPq, em artigo publicado no jornal Valor, 13-01-2012.
As 238 páginas da tradução brasileira cujo original é de 2010 começam anunciando que se trata de um livro sobre fluxo de capital. O preâmbulo data de 2009, antes, portanto, da tragédia grega, do aprofundamento da crise europeia de 2011, e sobretudo antes, muito antes, de Ocupem Wall Street ter se tornando o símbolo de um movimento de resistência à força do tal fluxo de capital sobre o qual o autor se debruça.
O primeiro capítulo é uma apresentação didática sobre a crise americana, no qual os empréstimos conhecidos como subprime e a acalentada desregulamentação do mercado financeiro levaram os Estados Unidos a perder US$ 11 trilhões em ativos - números do Federal Reserve, o banco central americano, compilados por Harvey para sustentar seu argumento de que essa foi "a mãe de todas as crises", maior e mais profunda do que as registradas nos anos 1930, no pós-guerra, ou nos anos 1970 e 1980.
Depois de reunir números alarmantes e de explicar, como geógrafo, o que chamou de "geografia da crise", numa leitura sobre as ligações entre globalização e crise financeira, e de articular a crise do capital à degradação do ambiente, Harvey chega ao capítulo mais instigante do seu livro: "Que fazer? E quem vai fazê-lo?". Primeiro, porque as duas perguntas já supõem que haja algum tipo de resistência possível. Depois, porque as respostas de Harveyapontam para a reinvenção da crítica ao capital, crítica que, nos termos do filósofo Vladimir Safatle, havia entrado em falência.
Em seu livro "O Cinismo e a Falência da Crítica", lançado em 2008 também pela Boitempo, Safatle recorre aos sociólogos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello, que desde 1999 já haviam apontado para a coincidência entre a falência da crítica e a emergência de um tipo de pensamento que exaltava o fim das estruturas hierárquicas e das instituições - como igreja, família ou empresa -, o que teria aberto espaço para a apropriação, pelo capital, dos discursos e práticas que pretendiam criticá-lo.
Nesse processo, deu-se a precarização do trabalho em nome do fim da rigidez, a valorização da flexibilidade, sobretudo no quesito remuneração, e instituiu-se a terceirização como modelo de negócios em que as garantias trabalhistas foram trocadas pela promessa nunca cumprida de liberdade de escolha.
No longo processo de esvaziamento da crítica, o livro de Harvey oferece um alento. Não porque pretenda responder a essas perguntas incômodas, como o que fazer e quem fará, mas por partir do pressuposto de que a crise é incontornável se não houver a possibilidade de enunciar as duas questões que dão título ao último capítulo de "O Enigma do Capital". Quando pergunta se o capitalismo será capaz de sobreviver ao trauma da crise, Harvey responde com um sonoro "sim", mas ao mesmo tempo se afasta de qualquer ilusão ingênua ao reconhecer que o momento é de inflexão na história do capitalismo e propor que "o questionamento a respeito do futuro do próprio capitalismo como um sistema social adequado deve, portanto, estar na vanguarda do debate atual".
O autor admite, no entanto, que se há uma reinvenção da crítica essa ainda é muito incipiente. "A existência de rachaduras no edifício ideológico não significa que está definitivamente quebrado", reconhece. A partir daí, entram em cena diversos exemplos de movimentos anticapitalistas, cujo único traço em comum seria a ausência de unidade em termos de objetivo estratégia ou tática.
"O problema central é que, no total, não há movimento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar de modo adequado a reprodução da classe capitalista e a perpetuação de seu poder no cenário mundial", atesta Harvey. Quando escreve essas e outras constatações que seguem a mesma linha, o autor não parece pretender abrir mão da crítica, mas, ao contrário, reanimá-la. "Há uma vaga noção de que outro mundo é possível", dizia ele no fim de 2009.
Em epílogo assinado em janeiro de 2011, ele já dá sinais mais otimistas, quando conclui o livro afirmando que uma alternativa terá que ser encontrada. Mais peremptório, menos cauteloso, mais afirmativo, menos cético, Harvey toma para si a tarefa de crítica, quando diz: "A tarefa da transição está conosco". Ocupem Wall Street se torna, assim, uma referência obrigatória em qualquer retrospectiva de 2011, que termina mostrando que Harvey está certo e há muito trabalho a fazer.
As 238 páginas da tradução brasileira cujo original é de 2010 começam anunciando que se trata de um livro sobre fluxo de capital. O preâmbulo data de 2009, antes, portanto, da tragédia grega, do aprofundamento da crise europeia de 2011, e sobretudo antes, muito antes, de Ocupem Wall Street ter se tornando o símbolo de um movimento de resistência à força do tal fluxo de capital sobre o qual o autor se debruça.
O primeiro capítulo é uma apresentação didática sobre a crise americana, no qual os empréstimos conhecidos como subprime e a acalentada desregulamentação do mercado financeiro levaram os Estados Unidos a perder US$ 11 trilhões em ativos - números do Federal Reserve, o banco central americano, compilados por Harvey para sustentar seu argumento de que essa foi "a mãe de todas as crises", maior e mais profunda do que as registradas nos anos 1930, no pós-guerra, ou nos anos 1970 e 1980.
Depois de reunir números alarmantes e de explicar, como geógrafo, o que chamou de "geografia da crise", numa leitura sobre as ligações entre globalização e crise financeira, e de articular a crise do capital à degradação do ambiente, Harvey chega ao capítulo mais instigante do seu livro: "Que fazer? E quem vai fazê-lo?". Primeiro, porque as duas perguntas já supõem que haja algum tipo de resistência possível. Depois, porque as respostas de Harveyapontam para a reinvenção da crítica ao capital, crítica que, nos termos do filósofo Vladimir Safatle, havia entrado em falência.
Em seu livro "O Cinismo e a Falência da Crítica", lançado em 2008 também pela Boitempo, Safatle recorre aos sociólogos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello, que desde 1999 já haviam apontado para a coincidência entre a falência da crítica e a emergência de um tipo de pensamento que exaltava o fim das estruturas hierárquicas e das instituições - como igreja, família ou empresa -, o que teria aberto espaço para a apropriação, pelo capital, dos discursos e práticas que pretendiam criticá-lo.
Nesse processo, deu-se a precarização do trabalho em nome do fim da rigidez, a valorização da flexibilidade, sobretudo no quesito remuneração, e instituiu-se a terceirização como modelo de negócios em que as garantias trabalhistas foram trocadas pela promessa nunca cumprida de liberdade de escolha.
No longo processo de esvaziamento da crítica, o livro de Harvey oferece um alento. Não porque pretenda responder a essas perguntas incômodas, como o que fazer e quem fará, mas por partir do pressuposto de que a crise é incontornável se não houver a possibilidade de enunciar as duas questões que dão título ao último capítulo de "O Enigma do Capital". Quando pergunta se o capitalismo será capaz de sobreviver ao trauma da crise, Harvey responde com um sonoro "sim", mas ao mesmo tempo se afasta de qualquer ilusão ingênua ao reconhecer que o momento é de inflexão na história do capitalismo e propor que "o questionamento a respeito do futuro do próprio capitalismo como um sistema social adequado deve, portanto, estar na vanguarda do debate atual".
O autor admite, no entanto, que se há uma reinvenção da crítica essa ainda é muito incipiente. "A existência de rachaduras no edifício ideológico não significa que está definitivamente quebrado", reconhece. A partir daí, entram em cena diversos exemplos de movimentos anticapitalistas, cujo único traço em comum seria a ausência de unidade em termos de objetivo estratégia ou tática.
"O problema central é que, no total, não há movimento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar de modo adequado a reprodução da classe capitalista e a perpetuação de seu poder no cenário mundial", atesta Harvey. Quando escreve essas e outras constatações que seguem a mesma linha, o autor não parece pretender abrir mão da crítica, mas, ao contrário, reanimá-la. "Há uma vaga noção de que outro mundo é possível", dizia ele no fim de 2009.
Em epílogo assinado em janeiro de 2011, ele já dá sinais mais otimistas, quando conclui o livro afirmando que uma alternativa terá que ser encontrada. Mais peremptório, menos cauteloso, mais afirmativo, menos cético, Harvey toma para si a tarefa de crítica, quando diz: "A tarefa da transição está conosco". Ocupem Wall Street se torna, assim, uma referência obrigatória em qualquer retrospectiva de 2011, que termina mostrando que Harvey está certo e há muito trabalho a fazer.
O livro - "O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo" - David Harvey. Trad.: João Alexandre Peschanski. Boitempo, 240 págs., R$ 39,00
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