Sociólogo afirma, em Porto Alegre, que só é possível enfrentar crise ambiental atacando também desigualdade e declínio da democracia
Por Antonio Martins
“Por cinco séculos, a Europa procurou ensinar ao mundo sua forma de enfrentar as crises e vencê-las. Fez isso com ideias e guerras, com missionários e genocídios. Mas se esqueceu que detinha apenas uma parte do conhecimento. Fechada em si mesma, não pode mais aprender. Por isso, está à beira de um abismo, do qual dificilmente escapará.
No meio da manhã desta quarta-feira (25/4), o sociólogo português Boaventura Sousa Santos está abrindo uma conferência para cerca de trezentas pessoas, que participam do Fórum Social Temático (FST), em Porto Alegre (sul do Brasil) e municípios de sua região metropolitana. O FST é um desdobramento, em pequena escala, dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs), lançados na mesma capital em 2001. Debate um assunto específico (“Crise capitalista, justiça social e ambiental”). Reúne cerca de 10 mil pessoas. Mas mantém, como todas as edições do FSM, a mesma aposta num futuro de democracia radical, relações sociais baseadas na garantia dos direitos humanos e fim das hierarquias internacionais que dividem o planeta entre “centro” e “periferia”.
Outra cidade brasileira, o Rio de Janeiro, sediará, em junho, a conferência Rio+20, da ONU. Por isso, a crise ambiental é um tema-chave em Porto Alegre. Boaventura discorda da abordagem que se dá tradicionalmente a ela. “Um primeiro problema primeiro é a disputa pela definição da natureza da crise”, diz ele. “Vê-la como mera mudança climática é muito reducionista. A crise é econômica, financeira, energética, ambiental, civilizacional”. O sociólogo chega, então, ao primeiro ponto central de sua análise. “Como disse Marx, as microirracionalidades do capitalismo conduziam à marcroirracionalidade da vida”.
Nos próximos 50 minutos, a fala densa de Boaventura tentará destrinchar as “sete ameaças” em que se desdobra esta marcoirracionalidade. Na plateia, dezenas de pessoas registram seus argumentos em cadernos, fotografam a sociólogo com câmeras ou celulares ou simplesmente acompanham a exposição de suas ideias.
Das ameaças elencadas por este professor das universidades de Coimbra (Portugal) e Madison (Estados Unidos), quatro estão diretamente relacionadas à crise da democracia; as outras três, à desigualdade e, em particular, ao poder que as grandes corporações alcançaram para contornar os poderes tradicionais e se apropriar da riqueza coletiva por meio de mecanismos sobre os quais as sociedades não conseguem ainda incidir.
A primeira ameaça é, para Boaventura, a desorganização do Estado. “O capitalismo, em sua forma atual, já não precisa da democracia”, diz ele. Por isso, dois países da Europa (Itália e Grécia), além do Banco Central Europeu, são governados por “vice-reis”, antigos executivos do banco de investimentos Goldman Sachs. E os Estados, que durante séculos basearam seu poder na arrecadação de impostos, agora eliminam tributos e se orgulham de manter suas funções apoiando-se nos mercados financeiros.
“Mas as dívidas que eles fazem precisam ser pagas um dia, e os cidadãos estão sendo chamados a contribuir pesadamente para este pagamento”, pensa o sociólogo. O pior, no caso europeu, é um desenvolvimento particular da “síndrome de Estocolmo”, fenômeno que leva as vítimas de um sequestro a se identificarem com seus algozes. “Para vocês, na América Latina, o que estamos vivendo é um déjà vu. Para sair da crise, América Latina, Ásia e África, aprenderam a desobedecer. A Europa não quer fazê-lo porque sempre se viu como parte dos que comandam…”.
Em paralelo à desorganização do Estado, caminha a desconstrução da democracia, segunda identificada por Boaventura. “O regime democrático costumava ser mais que o direito elementar de depositar um voto numa urna. Significava ter acesso a saúde, educação, bem-estar. Esta parte da democracia foi sequestrada pelo neoliberalismo. E já nem precisam de ditaduras, porque a própria democracia tornou-se uma ditadura, neste aspectos. Está emergindo um totalitarismo gradual, diferente do fascismo. Os direitos mais elementares são cortados. As sociedades conservam-se formalmente democráticas, mas socialmente fascistas”.
Os dois outros riscos relacionados com o sistema político são criminalização da dissidência e a recolonização da diferença. Para abordá-los, Boaventura refere-se a um caso conhecido dos que o escutam. A cerca de mil quilômetros de Porto Alegre, o Brasil viveu, neste domingo (22/1), um ataque brutal do Estado a um direito social. Dois mil soldados da Polícia Militar desalojaram, em nome do direito à propriedade, 6 mil pessoas que haviam ocupado e transformado em bairro, o Pinheirinho – uma área abandonada, pertencente a um grande especulador nos mercados financeiros.
“O que ocorreu no Pinheirinho”, diz o sociólogo, “é uma pequena mostra do que se passa num continente onde os mapuches chilenos são aprisionados por resistirem ao desmatamento e às mineradoras, onde os indígenas são mortos no Peru quando querem defender suas terras das transnacionais que cobiçam o subsolo”. Ele prossegue: “Além de criminalizar os dissidentes, o sistema que reenquadrar os diferentes. Ao contrário do que podíamos pensar, racismo está de volta e com força. Não há sinal de que sexismo tenha terminado, nem de que as diferenças sexuais sejam respeitadas”. Estas manifestações são resquícios da dominação colonial, que agora derivou em preconceito”.
Para Boaventura, este reaprisionamento do Estado e ataque à democracia está relacionado com três movimentos do capital para apropriar-se da riqueza produzida coletivamente. O primeiro é a devastação acelerada da natureza, tema da Rio+20. “Ela é real é importantíssima, mas não existe sozinha. Nos últimos vinte anos, grandes transnacionais – principalmente as que atuam com transgênicos, agronegócio, medicamentos, conquistaram poder inédito. Nos Estados Unidos, por exemplo, elas são capazes de manter três lobistas para cada membro do Congresso”.
Boaventura não crê no chamado “capitalismo verde”. Ele apoia esforços como o de buscar fontes limpas de energia, mas pensa que serão vãos, caso as sociedades não evoluam para novas formas de produção e consumo. “E aqui – diz – as metrópoles terão um papel fundamental, porque é onde viverá, em breve, a maioria dos habitantes do planeta. O consumo responsável precisa ir além de guardar convenientemente o lixo. Ele precisa identificar os componentes dos produtos onde há sangue – meu celular, por exemplo, produzido com componentes extraídos dos territórios de antigas comunidades africanas. E pode empregar a força coletiva das metrópoles para distinguir o que não merece ser consumido ou produzido”.
A segunda ameaça relacionada a ataque a direitos sociais é a desvalorização do trabalho, ou empobrecimento generalizado dos povos. “Falamos do precariado (os trabalhadores que não têm direitos sociais) e do ciberiado (os que são obrigados a se manter todo o tempo ligados à internet, para produzir). O problema é que esta confusão entre tempo de trabalho e tempo livre s está produzindo dividendos para o capital. Trabalha-se no escritório, no ônibus, em casa. Os tempos livres, quando existem, estão todos colonizados pelo consumo. Passa-se o tempo em shopping centers – e depois, trabalhando novamente, para pagar as contas do consumismo…
“Em paralelo, há um regresso às formas de exploração que foram, no passado, caracterizadas como ‘acumulação primitiva’ de capital. Expulsam trabalhadores de suas terras. Eliminam-se direitos, como salários, subsídios, pensões. Isso é um terrorismo de Estado, promovido pelos Estados em tempos chamados de… ‘democráticos’!”.
A sétima ameaça é, para Boaventura, a comercialização do conhecimento. “Tenta-se fazer o que não se conseguiu até agora, que é destruir pensamento crítico. As Universidades – inclusive parte das que são públicas – valorizam o conhecimento segundo seu valor de mercado. Não se considera mais a curiosidade científica. Nos Estados Unidos, em certos departamentos de Biologia, há professores que só se promovem se ao seu lado houver uma empresa financiadora. Eu pergunto: qual o valor das humanidades, da poesia ou da literatura, neste sistema?”
Boaventura vê novos desafios para os movimentos que se articulam em torno do Fórum Social Mundial, nesta nova fase. “Estou em Porto Alegre para relançar, num conjunto de seminários, a Universidade Popular dos Movimentos Sociais. As oficinas que começamos a realizar mostram claramente que movimentos precisam se articular-se como nunca fizeram antes. Mulheres com operários, lésbicas com os que constroem a economia solidária, camponeses e pequenos empreendedores, muitas outras combinações. Se as ameaças estão bem articuladas, os movimentos também precisam preparar-se para isso.
Segundo o sociólogo português, três desafios podem inspirar estas articulações: os de democratizar, descolonizar, desmercantilizar.
“Democratizar exige radicalidade”, diz ele. E explica: “Defino socialismo como sinônimo democracia sem fim, em todos os espaços. Não apenas nas instituições – mas no trabalho, em casa, na cama, Os partidos têm de entender que não têm o monopólio de representação política. Nem os movimentos, aliás, o têm. Estamos caminhando para um tempo de presenças. Presenças coletivas na rua, ocupando espaços que o capital reivindica, não ligadas necessariamente a um movimento instituído.
“Já no esforço por desmercantilizar a vida, as cidades têm papel enorme. É preciso retirar da esfera do comércio mercantil dimensões como as a cultura, a mobilidade urbana, as vivências, a sociabilidade. Os resultados são imediatos. Por exemplo: a cultura, que está sendo banalizada, ressurge imediatamente como espaço de resistência, quando tratada como um direito e uma inspiração humana”.
Ao abordar a descolonização, Boaventura – que apoia os governos de Dilma Rousseff na presidência do Brasil e do governador Tarso Genro, no estado do Rio Grande do Sul, lança-lhes algumas alfinetadas. “O Brasil, que tem criado tantos bons paradigmas, não pode estar ao lado do neoliberalismo, nem orgulhar-se do ‘novo’ Código Florestal, ou de abreviar os processos de licenciamento ambiental para apressar algumas grandes obras”.
O sociólogo confessa, ao final: “Sou um otimista trágico. Acredito nas mudanças do mundo, mas sei que elas custarão enorme esforço, mobilização, às vezes dores”. Ele faz previsões para os anos 2010: “sta década vai exigir líderes mais esclarecidos, mais imaginativos; e movimentos sociais mais aguerridos. A luta contra fascismo social faz-se nas instituições, mas também na defesa, nas ruas, de uma democracia sem fim.
A fala de Boaventura ocorreu no âmbito de uma das principais atividades do FST: um seminário organizado em Canoas, pela rede que organizada o Fórum de Autoridades Locais de Cidades de Periferia (FALP). Criada em 2006, no I FALP, realizado em Nanterre (periferia de Paris), esta articulação promoveu um segundo encontro em 2010, em Getafe (periferia de Madri). Prepara um III FALP em Canoas, em junho de 2013.. Será o primeiro no hemisfério Sul. Espera-se que reúna mais de mil autoridades, de 200 metrópoles do planeta. O seminário inaugurado dia 25 é preparatório para a atividade do próximo ano.
A conferência do sociólogo foi antecedida por exposições de autoridades gaúchas e brasileiras. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Adão Villaverde, destacou a importância de adotar, a partir das cidades de periferia, dinâmicas de democracia participativa. “Está em nosso poder criar estruturas de partilhamento. Não significa deixar de tomar decisões, de ser positivos. Mas temos várias experiências de participação real e podemos multiplicá-las”, frisou.
O prefeito de Nanterre, Patrick Jarry, saudou a disposição de Canoas, de sediar o III FALP Sustentáveis”. Sobre a valorização das periferias de metrópoles, destacou: “Não queremos ser os invisíveis de um planeta que está se tornando majoritariamente urbano. O olhar da periferia, seus desejos e escolhas não podem ser submetidos. Para que outro mundo seja possível, nossos territórios de periferia jogarão um papel essencial”.
Muito aplaudido por um público formado principalmente por habitantes de Canoas, o prefeito da cidade, Jairo Jorge, citou o escritor italiano Italo Calvino, para quem “não importam numa cidade suas 7 ou 77 maravilhas. Mas as respostas que dá a suas perguntas”. Frisou que “há novas perguntas, para novos problemas. As mudanças climáticas, por exemplo, não derrubam apenas as pedras das cidades. Elas tragam vidas, que estão na maioria das vezes na periferia das regiões metropolitanas”. Concluiu afirmando que “é preciso debater uma agenda que apresente voz da periferia. Ela significa propor um novo conceito: o metrópoles solidárias, democráticas, sustentáveis – e livres de preconceitos.
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