quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A cracolândia que você não vê


Quem se aproxima tem uma surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, há pulsação e sorrisos sinceros
Por Talita Ribeiro, do Coletivo Cracolândia

(Mais informações sobre o Coletivo Cracolândia e o contexto em que surge em nosso blog)
Todo paulistano médio conhece a região da Luz/José Paulino/Santa Ifigênia como sendo boa para compras, de eletrônicos ou roupas. Todo paulistano culturalmente ativo sabe que ali há o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca e a Sala São Paulo. Todo e qualquer paulistano não ousaria pisar lá (literalmente, a pé) depois das 22h. Porque à noite, o comércio e a cultura são outros. E quem circula pela área não é considerado cidadão da metrópole mais rica do país.
Quem ocupa as esquinas, quadras e avenidas, se mistura com o lixo e divide espaço com os ratos, que cruzam as ruas a procura de comida. À noite não há quem desvie dos moribundos ou crianças alucinadas. E, vez em quando, se tem a impressão que não há uma alma viva sequer, mesmo que oitenta usuários de crack estejam ocupando uma mesma sarjeta. Até quem tenta se inserir nesse meio — por política, trabalho ou missão — dificilmente consegue penetrar nessa outra realidade, onde o olhar não pára, nem brilha, mas ainda busca, desesperadamente, por 8 segundos.
“De 5 a 8 segundos é o tempo que dura o ‘barato’ do crack. Nesse curto espaço de tempo, dizem, a sensação é equivalente a 8 orgasmos” conta um dos missionários do Cena, que conversa com os dependentes durante a noite, para convidá-los a conhecer o projeto e, quem sabe, embarcar numa outra viagem — a de reabilitação. Ele circula normalmente entre a aglomeração de usuários.
Diferente do que os telejornais ensinam, a cracolândia não é um lugar sem leis. Religiosos são respeitados e, muitas vezes, ignorados pela massa. Quando a polícia derrapa com as viaturas nas ruas e saca seus (desnecessários) sprays de gás de pimenta, todos vão para outra esquina. Quando um segurança de uma loja qualquer manda eles saírem, o mesmo acontece. Não há sexo e violência explícita na rua. Não o tempo todo. Não tempo suficiente para concorrer com qualquer balada de classe média alta em uma sexta à noite. Os usuários vez em quando discutem entre si, mas os gritos são, em sua maioria, parte da negociação de droga.
“Quem dá dois por uma pedra? Quem tem uma nota de cinco? E um cachimbo novo?” Com frases desse tipo a “bolsa do crack” funciona a noite inteira, com usuários pra lá e pra cá comprando e vendendo tudo o que podem, de cigarros a 25 centavos até salsichas vencidas achadas no lixo. Nesse mercado quase todos são compradores em potencial, menos os que chegam em bicicletas, trazendo mais pedras em sacolas plásticas, para fazer girar a roda da dependência. Quem não está negociando, só pode estar consumindo, procurando restos na calçada ou tentando tirá-los do cachimbo. Nesse ciclo nada que não tenha ligação com o crack importa. Ninguém liga para os carrões que cruzam a região noite adentro para comprar a droga. E não é raro ver pessoas bem vestidas e com tênis da moda fumando ao lado de moradores de rua. Não existe mais rico ou mais pobre quando se está rente ao chão.
Nesse contexto, crianças de dez anos agem como se tivessem o dobro. São chamadas de “dimenor”, mas só isso as diferencia dos demais. Com uma casca dura de sujeira preta ou incrivelmente limpas, elas sabem o próprio nome, há quanto tempo estão nessa vida, onde doem as feridas e, principalmente, que precisam de uma pedrinha. Os traços infantis quase se perdem em meio a tanta opressão, mas quando pedem ajuda para conseguir a próxima brisa, são como tantas outras crianças pedindo um doce. E são frágeis, muito mais frágeis do que aparentam quando as olhamos de canto de olho, andando a passos rápidos. Mas essa não é uma característica só delas.
Os usários de crack vistos de perto e em seu habitat, em nada lembram os retratados em telejornais. No lugar do medo e do ódio, despertam uma tristeza imensa, acompanhada por um sentimento de impotência. Nada que não seja a pedra parece tocá-los — inclua aí a sua presença. Mas quem, mesmo assim, tenta se aproximar tem uma surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, a voz embarga ao contar sobre o passado, ainda há pulsação e sorrisos sinceros. Apesar de toda a ânsia pela droga, há outros tipos de carências não supridas, tão importantes quanto. E para tratá-las é preciso bem mais que 8 segundos. Mas isso o paulistano ainda não sabe.

Talita Ribeiro é uma das integrantes do Coletivo Cracolândiaque mantém um site participativo sobre a região da Luz e as formas de enfrentar seus problemas

Um comentário:

  1. petista insatisfeito(é apenas pseudonimo) oi maria luiza, muito bonito o olhar de talita, muito humano...é o que falta para nós cruzaltenses, muitas vezes ainda "fugimos" dos bebados das praças da cidade, sim, ainda há bebados e mendigos em nossas praças , voce sabia?...mas nossa cruz alta agora está "infestada" de pessoas "sem alma", explico, não são pessoas más,malvadas, bandidas, assim como tambem não o são os "bebados e bebadas " das praças, são pessoas, seres humanos que hoje se encontram num mundo da sub-humanidade, desumanisados por algo que a sociedade (penitenciemo--nos) e nós não compreendemos: SÃO DOENTES. Sim, voce sabe, e seus seguidores será que sabem?, creio que sim, creio que quem te segue neste blog são pessoas esclarecidas. Dependentes de drogas licitas ou ilicitas são pessoas doentes e precisam de tratamento, de onde vem suas frustrações e "fantasmas" que os jogaram nesta situação , nas nossas acomodações , nem imaginamos. Sejamos mais tolerantes com eles, sejamos intolerantes e se possivel muito, com os poderes publicos, ministerio publico e politicas sociais de nossa cidade que se omitem de seu papel (obrigação) de "abarcar" a estes CIDADÃOS marginalizados.

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