Uma Outra Canção Para Elizabeth
Li em algum lugar (o qual não anotei), o dito de uma moça que se explicou dizendo ter uma imaginação galopante, quase beirando à loucura. Li isso e gostei, pra poder ser mais literária do que se pode ser.
Há um negro, pobre, preto-velho e sábio que me habita. De tempos em tempos ele faz ponteios de prosa em meu pensamento e conversa com um índio guarani que me transita; os dois, agenciando o que lhes cabe e interessa, produzem coisas que nem a cachaça poderia me mostrar. Surge devagarzito, quando meus olhos de ver vêem um solo ressequido e rachado (não tem que ser visão real, pode ser só de retrato), ou quando um banco de madeira se me apresenta a esses mesmos olhos. Tem dias em que puxo do meu cachimbo e faço voltas de fumaça entorpecente. Na preguiça de amainar o cachimbo, enrolo meu palheiro, trago a fumaça e fixo no horizonte os meus olhos que pensam por mim. Esse preto-velho mexe em minhas entranhas quando ouve um ponto de umbanda ou uma moda de viola. É ele que tem tentado me convencer a largar desse mundo cada vez mais feroz e montar meu casebre lá no meio do mato, à beira do rio. Noite dessas, ele me provocou uma sonharada estranha. Me fez experimentar vários chapéus grandes demais para minha pouca cabeça. Espero que volte em outros sonhos e me faça sonhar coisas mais calmas, mas aproximadas de meu entendimento pouco.
Digo essas coisas, pra falar um pouco de Ana Terra, personagem de Érico, que mora no Continente, d’O Tempo e o Vento. Foi um dos primeiros escritos de Érico que li (outro dia falarei do orgasmo de Ana Terra). Ganha forma já no começo da história, quando o poeta desce na pena de Érico: “’Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando’, costumava dizer Ana Terra. Mas, entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha aquilo acontecido? Em que mês? Em que ano? Bom, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. Mas, na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário e nem relógio. Eles guardavam na memória os dias da semana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspecto das árvores e a temperatura que lhes diziam as estações do ano”. É o retrato das gentes que viviam das coisas poucas de que necessitavam e das leituras que liam nos escritos da natureza. Viviam em desalinho com isso e querendo voltar para Sorocaba.
Ana encontrou em Pedro Missioneiro o aconchego para sua existência e na própria existência, o traçado para lidar com as adversidades que se lhe foram apresentando. A família vivia da produção plantada e colhida nas terras em que viviam.
Ana fica situada entre a ficção e o retrato explícito da mulher que viu nascer uma fronteira territorial nas beiradas do Rio Grande do Sul, vendo nascer também, uma fronteira subjetiva em seu próprio ser, que lhe permitiu não se submeter às convenções que lhe mandavam enterrar suas vontades e seus quereres. É por ela representar essas coisas, que acoiero aqui, o Troféu Ana Terra – do qual pouco sei – e que Elizabeth Fontoura Dorneles estará recebendo hoje, dia 17 de Março de 2010, em Porto Alegre, estando “entre as 28 mulheres com destacada atuação na sociedade gaúcha em ações sociais e humanitárias (...). As vencedoras foram indicadas pelos Conselhos Municipais de Desenvolvimento- Comudes e depois definidas pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento- Coredes”.
Faço esse floreio porque não sou afeita e nem partidária de prêmios e troféus por destaques de gentes em qualquer coisa que seja. Acredito e penso que todas as gentes são feitas de possibilidades de lutas e de resistências. Mas somos frutos de uma cultura e de uma educação que, sabe-se lá com que propósitos, nos ensina a separar as gentes em andaimes diversos, em que alguns são reconhecidos como distintos e a maioria como patuléia. O sistema nos devora e muitas vezes acomoda ou deixa as gentes acossadas, sem ferramentas para formular a resistência e criar novas lutas. É por reconhecer em Elizabeth uma gente que nunca entregou as ferramentas e nem as deixou de lado, transitando com outras gentes os mais duros territórios e mostrando-lhes as ferramentas para resistir e lutar, que rendo-lhe esta homenagem aqui, porque sei também, que esse Troféu simboliza para ela o desenho de suas andanças e o traçado que Ana Terra lhe encarna em suas crenças e em suas ações.
Elizabeth não é feita de simulacros e nem de lutas vãs. Quando vê que está ventando, desencilha o cavalo para poder se abrigar dos rebordeios dos temporais e aguardar as coisas que podem se apresentar. Reconhece o canteiro em que se pode plantar e aquele que se esterilizou pelo pisoteio sem fim dos que por ali antes passaram. Crê que “Cá por estas bandas, quando passamos por períodos/ quando passamos por tempos em que não podemos fazer mais que plantar sementinhas, então plantamos sementinhas, porque sabemos que, mesmo que queimarem a terra, dali a algum tempo, quando a revolvermos, teremos sementes queimadas, mas também teremos muitas sementes por germinar. Às vezes, não sabemos se é um tempo de plantar sementinhas ou de revolver a terra... mas sabemos que sempre haverá alguém a queimar a terra, então sempre estaremos a plantar sementinhas e a revolver a terra... é assim que o mundo continua vivo e a pulsar!” (Sementinhas, Diello).
E para terminar a anotação que aqui faço, retomo as palavras de Pedro Tierra (que é só o pseudônimo de um autor de que não lembro o nome e não o filho de Ana Terra com Pedro Missioneiro), na Carta do Sul, no 2º FSM e que é uma poetagem de que muito gosto e que tenho utilizado para reafirmar sempre o caminho que perseguimos: "Regressamos como os pássaros migradores. (...) A palavra tecendo sonhos, como agulhas urdindo um tapete sem desenho prévio./ Somos filhos da vertigem. Desse impulso de extrair do impossível mundo das cifras e da ferocidade capitalista, um outro mundo possível... As mãos que trazemos tatearam noites e labirintos. Não moldaram no ar o frágil desenho da cidade futura. Sabem da terra proibida pelo arame; do trabalho escasso; do pão escasso; da fome. Recolhem das ruas do mundo destroços da alegria, da paixão, da dor, da exploração, da violência, do êxodo de tantos, dos sonhos arquivados na multidão, soterrados pela demolição dos direitos, da resistência, e, novamente, da alegria e da paixão e propõem um novo mosaico. Um novo mosaico é possível.../ Morremos em Eldorado dos Carajás; a caminho de uma escola em Ramallah; no sonho que anoitece sob a burka de uma mulher em Mazar-i-Sharif; numa clareira na selva colombiana; em Gênova, no corpo de Carlo Giuliani; ao pé das torres gêmeas, em Nova Iorque; numa mesquita de Kandahar. E renascemos nas ruas rebeladas de Buenos Aires e de Santo André. Para renascer nascemos... Somos centelhas de acender outras possibilidades./ Deixamos de parte as cifras, as taxas de juros, o comportamento da bolsa de valores: esse mundo estéril e homicida. Fixamos os olhos e o coração indignado sobre os dramas que nos afligem: a fome, as guerras, a exclusão social, a limpeza étnica, o desemprego, a AIDS, a morte dos rios, a cinza das florestas, a concentração galopante da riqueza, a destruição das conquistas dos trabalhadores, o controle da informação, a lógica única do pensamento único. Despidos de toda humanidade, em duas gerações testemunhamos a espantosa morte de um continente: a África. Viemos nos despedir da indiferença./ Trazemos a vocação do diverso. Do libertário. A vocação do humano. (...) Somos a desencontrada polifonia das vozes do Sul e do Norte que rejeita a marcha fúnebre do mercado. A solidariedade é o ar que nos sustenta as esperanças. O mesmo alento que prolonga o vôo dos pássaros migradores. Somos herdeiros da vertigem criadora de cada um de nossos povos: pretos, brancos, amarelos, vermelhos, verdes, azuis... A frágil possibilidade de que um outro mundo é possível...".
A esperança alimenta nosso acordar no amanhecer das manhãs e acalenta nosso sono no anoitecer das noites... o sonho é a plantação que nos permite colher! É por acreditar nessas coisas, que Elizabeth busca o Troféu Ana Terra para todas as mulheres que resistem e lutam... e também para aquelas que foram acossadas, mas que ainda podem resistir e lutar!
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