Este é um escrito que publiquei em forma de conto, no Jornal Estilo – Cruz Alta/RS, não lembro exatamente quando, mas que retomo, revisando seu tempo e seus pronomes, mas trago-o de volta, principalmente, porque tenho estado entretida com Manoel de Barros e com a vontade de conhecê-lo, para além do que conheço de suas letras e de sua breve aparição em minha frente, numa tarde em Corumbá!
Agora, as letras:
DE PASSAGEM!
Viajava, todos os meses, em busca de um amor distante que se revelaria muito tempo depois, quase que por um acaso. Vez ou outra ia pensando nas coisas que vão sendo criadas e adaptadas conforme os movimentos que os seres humanos vão constituindo, enfim, pensava que assim se faz a história e assim, também, se faz o consumo, assim como as invenções e criações, ou seja, a partir das necessidades humanas... às vezes muito tempo depois da emergência da necessidade, às vezes no exato no exato momento e às vezes, visionariamente, muito tempo antes.
Pensava na culinária, dessa de beira de estrada, feita para empanturrar apressado que corre para seguir viagem (bufet, espeto-corrido, lanches, café saturado, preços exorbitantes, comidas recicladas, molhos de pimenta e cremes aos quais, fígado algum sobrevive); lembrou dos postos de combustíveis, das lojas de conveniências, dos motéis, dos bordéis, das oficinas mecânicas, das borracharias e dos postos de pedágio, recordou dos hotéis e das pousadas; repassava na memória todos os presentes que comprara e todas as quinquilharias que guardava em casa e que foram adquiridas nessas tendinhas de beira de estrada... cerâmicas, brinquedos e réplicas em madeira, produtos típicos das regiões por onde passara... coisas tantas que para nada serviam... lembrancinhas, produtos supérfluos que todo mundo compra sem saber exatamente para que servirão... licores os mais diversos e cachaças as mais variadas.
Numa dessas andanças, passava pelo pantanal e ia tomada de ansiedade para ver, ao vivo e a cores, um jacaré que fosse, como se essa visão fosse mudar definitivamente a minha carga de conhecimentos... vi muitos jacarés, mas vi também muitas queimadas/ queimadas que matam ou que põem os bichos em fuga... e quando cheguei bem pertinho do Rio Paraguai, toquei sua água e aspirei profundamente o seu cheiro, para ter a certeza de que não era apenas uma fantasia ou uma figura presente em meu imaginário desde minha infância... e foi lá por perto do rio que soube sobre a pessoa que fez e a forma como foi feita a música Chalana... “lá vai a Chalana, bem longe se vai”... foi por lá, também, que entendi o que é uma chalana... o Pantanal e o Rio Paraguai eram daqueles lugares que queria muito conhecer, mas temia fazê-lo por achar que seriam imagens grandes demais, muito maiores do que aquelas povoavam o meu imaginário ingênuo e febril... sempre tinha essa sensação frente às coisas que eram por demais grandiosas... era tomada desses temores, por exemplo, quando ia visitar museus e me deparava com as obras de arte ou os registros históricos originais, o que me fazia perceber que o mundo é efetivamente real; ou quando visitava as casas em que moraram os escritores ou outros artistas, ou que reproduziam os ambientes em que os mesmos viveram... era tomada de pavor quando percebia que esses seres, que me eram somente imaginários, realmente existiam... foi desse mesmo pavor que fui tomada, lá por perto do Rio Paraguai, quando vi se aproximar Manoel de Barros, um de meus poetas e escritores preferidos, que veio chegando, num passo manso, e parou bem ao meu lado, como se fosse feito de carne e osso/ como se pudesse ficar andando, assim, entre os comuns mortais/ como se tivesse o direito de se por, em conta própria, frente às fantasias dos seres humanos/ quando vi que era mesmo o Manoel de Barros que estava ao meu lado, parei de respirar, fiz de conta que estava num momento de alucinação e fiz cara de delírio, e uma amiga, que conhecia o poeta, ainda perguntou se queria que falasse com ele... respondi que preferia sabê-lo apenas figura de meu imaginário... pensei, ora, se isso é jeito de acabar com as fantasias alheias... esses escritores às vezes não têm mesmo noção do lugar que ocupam na cabeça dos leitores!
Ia entretida nessas tessituras, repassando as criações emergentes das necessidades humanas e meus temores frente à grandeza e imensidão do mundo e das coisas do mundo, quando me dei conta de que os amigos também tinham o seu tempo em minha vida... havia aqueles que marcavam uma época; havia os que permaneciam por um longo tempo; e havia, alguns poucos, que uma vez inscritos em minha vida, jamais se retiravam de minha existência! Pensei nos amigos que ia encontrando pelo mundo... alguns do tempo de infância; outros do tempo de adolescência; outros do tempo de juventude; outros de tempo de universidade; outros do tempo de liberdade/ tempo em que ainda não sabia que responsabilidade não significava somente assumir com afinco as coisas que tinha que fazer; outros do tempo em que ainda estava a dar cabeçadas para aprender a andar com as próprias pernas, pois vivia desse dilema de meus pais não terem me dado um caminho pronto ou um rumo para seguir viagem; outros do tempo em que já via e sentia meus cabelos a embranquecer/ em que já tinha histórias para contar/ em que já estava muito mais a mostrar rumos do que a questionar caminhos; outros do tempo em que a solidão não mais me assustava; outros do tempo em que já encontrava com os amigos não para ter uma bengala, mas para a tranqüilidade da conversa/ da versação das coisas que faziam a vida acontecer ou deixar de acontecer; outros do tempo em que já havia aprendido a andar, nem à frente, nem atrás, mas lado a lado com os outros seres humanos; mas sabia que, de estação em estação, rodoviária que fosse, ou existencial que pudesse ser, haveria novas paradas e novas partidas, pois é de passagens, fugazes ou intensas, que vivemos... sabendo que estacionamos somente quando a inquietude dá lugar para o amadurecimento/ tempo em que, mesmo ainda inquietos, sabemos o que fazer com o que nos incomoda e com as coisas esgarçadas pelo tempo e pela vida!
Hoje viajo menos, porque já encontrei a estação do sossego, situada num mirante a partir do qual posso ver o mundo e circular nele como que anda em meio ao alvorecer da manhã. Viajo menos, também, porque encontrei alguém que me ajudou a ver a vida como possibilidade, coisas que não é somente a nossa caminhada profissional e existencial que pode nos mostrar. Hoje não estou mais de passagem, pois seis das coisas que abrigam as importâncias que me interessam! Aguardo a chegada, vinda de uma estação distante, da minha bugra velha que o Pantanal me concedeu... e foi ela, a melhor concessão que já recebi na vida!
domingo, 14 de março de 2010
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