sexta-feira, 26 de março de 2010

Meio meu, meio alheio

A VIDA BATE
Hoje, na ausência de mim mesma, deixo apenas um poema de Ferreira Gullar e, quando voltar, vinda do exílio na terra imaginária de Manoel de Barros, que também lembra a terra de Thiago de Mello extraviado em suas florestas de idéias e de palavras, trago mais poesia e alegria, no compasso daqueles que pouco sabem de onde é que vem a palavra/ a palavra dada e a palavra calada... trago na mala a saudade da estrada que nos leva a muitos caminhos.
Quando voltar, olharei uma vez mais nos olhos da beleza e tocarei seus lábios como quem os tivesse tocado pela primeira vez e, feito cristã arrependida, pedirei perdão por todos os pecados que não cometi e seguirei em frente beijando sua face que me pede, desesperada, que não lhe roube os motivos de seu sorriso... ainda surpresa com sua tristeza, enxugarei suas lágrimas e fingirei supor que sua tristura venha da minha abrupta ausência, mesmo sabendo que vem dos motivos que me levaram a ausência.
Enfim, A VIDA BATE
Não se trata do poema do homem
E sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
E há os que se perdem por te achar,
ó desatino,
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas, vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, do coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Dehli,
sob as penas da lei.
Em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçada à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

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