quinta-feira, 4 de março de 2010

Estou em crise: agora tenho um baú!

Moro numa região de preciosidades antiquarias. As gurias que moram aqui por perto de casa, andam em alta velocidade... a maioria beira ou passa dos 80!
Dia desses, soube por uma pessoa que soube por outro e que por sua vez soube por outra, que uma das gurias da região teve um AVC e que sua filha teve que levá-la para sua casa, tendo então que desmontar a casa da mãe e vender seus móveis antigos.
Meu primeiro ímpeto foi de sentar com essa filha e tentar convencê-la de não fazer isso... mas me dei conta que certamente as coisas pelas quais tenho apreço, não sejam as mesmas que a vizinha tenha... e quando fui visitar a casa, percebi que pensara certo.
Quando cheguei, o brechó já estava quase acabado, mas ainda resgatei duas coisas de que necessitava: um armário de banheiro e um baú!
Nunca fui muito ligada nessas coisas de casa e de móveis... sempre tive somente o necessário para viver... foi minha companheira quem me fez entender que morada é ali onde nos sentimos em casa (à vontade), tendo somente o necessário, mas com o aconchego que acolha nossos sonhos, nossas andanças, nossos descansos e nossas tempestades.
E vi isso também nas palavras de Bachelard , quando ele diz coisas como essas:
“É preciso dizer então como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num ‘canto do mundo’./ Pois a casa é nosso canto no mundo”.
“(...) na mais interminável dialética, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos./ Por conseqüência, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos tem valores de onirismo consoante. Não é mais em sua positividade que a casa é verdadeiramente ‘vivida’, não é só na hora presente que se reconhecem os seus benefícios. O verdadeiro bem-estar tem um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa nova casa”.
(...) a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos”.
“(...) se nos perguntassem qual é o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis./ (...) é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes deintegração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”.
Bachelard cita, também, um dito: “Carregamos na casa nossos deuses domésticos” e, pensando nessas coisas, três pontos me fizeram anotar este escrito neste papel de embrulho: a lembrança que me ocorreu dia desses, quando me veio à memória uma família de vizinhos de meus pais, em cuja casa quis morar em minha infância, porque lá havia, ao lado da casa, um galpão que funcionava como cozinha, onde ardia o fogo de chão... foi o primeiro lugar em que peguei o hábito de gravetear as brasas e o fogo... era onde assávamos milho verde, batata doce e no caldeirão pendurado sobre o fogo, era o arroz com galinha caipira. Outro ponto: o fato de uma amiga estar passando em revista seus guardados existenciais e com isso estar também aprendendo a se sentir em casa na medida em que redesenha a casa de seu ser. E outro ponto: por estar pensando muito nessa coisa de como as casas e os móveis carregam a história daquilo e daqueles que os habitam e usam. Gosto dos móveis antigos porque garantem a sustentabilidade ambiental e por, também, durarem muito... gosto das coisas duradouras... das coisas consistentemente duradouras... das coisas que fazem e carregam história... as intermitências de tempo dentro de espaços e regularidades longas, são muito mais seguras e profundas.
Assim, estou em crise com o baú, porque descobri que ele consistia mais numa fantasia do que numa necessidade. Ou numa necessária fantasia. Há tantas coisas para guardar nele e ao mesmo tempo, não consigo guardar nada, porque para se ter um baú é necessário muita sabedoria. As coisas que podem ir para o fundo do baú ou simplesmente para dentro dele, não podem ser qualquer coisa! Agora estou revendo toda a minha existência para saber o que é que poderei guardar dentro dele!

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