sábado, 27 de março de 2010

Contos Desbotados

APENAS UM SONHO*
Preferiu falar de um sonho que tivera há algum tempo, apesar do fato de que preferisse não fazer revelações muito íntimas, ou que mostrassem muito daquilo que talvez fosse melhor manter bem escondido, mas não poderia deixar de falar daquele sonho que tivera e que produziu-lhe profundas impressões.
No sonho, ela chegava na carona de um caminhão muito velho, em uma cidade muito estranha, na qual havia uma fonte d'água que brotava bem no centro, bem no coração da cidade. Ficou horas e horas olhando para aquela água que borbulhava, e depois de passar muito tempo a contemplá-la, percebeu que apesar daquilo ser um olho d'água, a água não aumentava, parecendo-lhe que era sempre a mesma água que saía, voltava e depois tornava a sair. Quis beber daquela água mas ficou com medo de que a mesma portasse algum elemento que lhe fosse atingir para sempre.
Quando deu meia volta para ir procurar algum lugar para se hospedar, deparou-se com um velho senhor que a observava, em pé, escorado numa velha bengala; ela fez menção de cumprimentá-lo, mas percebeu que a sua aparência, que o seu aspecto acinzentado, que o seu olhar rancoroso e carregado de intencional maldade, o faziam recolhido para sempre em si próprio e que sua capacidade de comunicação era nula. Percebeu que ele murmurou alguns desvarios e que disse que contava mais de 50 anos cuidando para que aquela fonte não fizesse brotar água nova, tendo que reutilizar sempre a mesma água, por mais envelhecida que estivesse.
Num repente começou a ventar e teve a impressão de que aquele ancião se decompunha como se morto estivesse, como se fosse composto de cinzas. Ele quis avançar sobre ela. Tentou, mas não pôde, pois a cada rajada de vento voava-lhe uma camada de suas cinzas, que iam, aos poucos, emplastrando a superfície da água da fonte. Depois veio a chuva e o velho senhor parecia agonizar procurando um lugar que lhe desse abrigo. Procurava apenas com o olhar, porque não conseguia mais sair do lugar, e os pingos da chuva foram molhando aquele corpo que aparentava estar morto há muito tempo; foram molhando e encharcando, e fazendo escorrer uma lama fétida, para ser mais exata, era uma lama fedorenta, com cheiro de enxofre. Ficou ali, estática, a se molhar naquela chuva calma e tranqüila, e a ver aquele velho senhor a decompor-se devagarinho.
Pôs-se a pensar se dali por diante, não havendo mais aquele ancião que cuidava de não deixar se renovar a água da antiga fonte, se haveria, então, a possibilidade de que água nova viesse a brotar ali.
Acordou naquele domingo de manhã com sol radiante e percebeu que chovera durante a noite. Era inverno. Fazia frio. Banhou-se um banho quente, agasalhou-se e foi para a rua caminhar um pouco. Quando já havia andado muito, percebeu que havia chegado numa fonte de água límpida que borbulhava e escorria fonte afora. Formou uma concha com as mãos e bebeu um pouco daquela água. Procurou um lugar para sentar. Acomodou-se sobre uma pedra e ali manteve-se por muito tempo, sentindo-se como que familiarizada com aquele lugar. De repente percebeu, próximo de onde estava sentada, uma bengala escorada nas pedras e com a ponta enterrada em meio a um pequeno monte de cinzas. Pensou que já havia visto aquilo em algum lugar.
Retornou para casa lentamente, pensando naquelas imagens todas que vira, foi quando lembrou do sonho que tivera naquela noite. Voltou à fonte, bebeu um pouco mais de água e percebeu que o vento já havia levado embora as cinzas, e a bengala já havia caído, talvez alguém ainda a usasse para se escorar e evitar alguma queda.
* Escrito publicado no Jornal Estilo/RS, em tempos idos.

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