Alguns amigos me fizeram relembrar os escritos de outrora e aventaram que eu poderia colocá-los aqui, para além daqueles que já publiquei, então aí vai um dos Contos que foram publicados no Jornal Estilo (Cruz Alta/RS), em tempos idos.
SETE PALMOS
Andava, devagarinho, vagando entre um paralelepípedo e outro. De dia pisava somente nas lajotas escuras e de noite somente nas claras. Jamais errava um passo. Jamais errava a cor. Era imprescindível para a sua existência, manter aquela rigorosa ordem.
Começou a preparar cedo os rituais da própria morte, do próprio velório e do próprio enterro, assim como da missa de corpo presente, da missa de sétimo dia, das missas de todos os meses até completar um ano de sua morte e das missas de todos os anos até completar sete anos da morte.
Era um crente convicto, por isso acreditava que não tinha que se preocupar com a situação da morte, pois entregara a sua vida à Deus, que tudo sabia e que certamente saberia o momento e o lugar certo em que deveria morrer. Mas se pudesse escolher, queria morrer deitado em sua cama. Fria cama de alguém que nunca fora feliz. A companheira era feito pedra, e ele também. Mas acreditara a vida inteira, que deveriam viver juntos porque o pai dele e o pai dela morreram da mesma causa (colapso cardíaco) e no mesmo dia, souberam disso na missa de sétimo dia dos dois, apesar de os terem velado no mesmo conjunto de capelas funerárias e enterrado no mesmo cemitério, à mesma hora e na mesma fileira de sepulturas, um numa ponta e outro na outra ponta.
Viveram juntos desde aquela missa de sétimo dia. Namoraram três meses. Ficaram noivos quatro meses. E no final do sétimo mês casaram, era um sete de julho, nunca esquecera aquela data. Tiveram sete filhos, sete netos, dezessete bisnetos e trinta e sete tataranetos. Não pôde saber das outra gerações, por razões óbvias.
Comprou o caixão numa funerária antiga e que certamente ainda duraria gerações, até que fossem consolidados métodos mais radicais de viagem para a última morada, portanto, havia a garantia de que, se pagasse o caixão e os serviços todos que a casa funerária teria que prestar, os receberia tal e qual havia contratado e pago.
Escolheu um caixão claro, que era para aparentar maior tranqüilidade, apesar de a vida ter sido cinzenta. Queira muitas flores, que era para aparentar alegria. Queria música, muita música. Deixou os discos e as músicas selecionadas, que era para pensarem que sua vida teria sido muito animada. Queria a leitura de alguns salmos da bíblia, de algumas citações de romances clássicos e de algumas poesias, tudo devidamente escolhido, que era para pensarem que teria sido muito crente e culto.
Deixou a descrição de todos os rituais que deveriam ser seguidos pela família e pelos amigos. Quem deveria falar. Quem deveria fazer os discursos. Queria que os sete filhos falassem, primeiro o mais jovem e por último o mais velho, que era para as pessoas terem a impressão de que os discursos foram ficando mais intensos e de que fora um pai muito amado, forte e presente. E depois a esposa deveria falar e dizer o quanto foram felizes. E ainda um amigo que falaria por todos os outros e que deveria dizer do grande ser humano que fora e da imensurabilidade de sua amizade.
Deveriam aguardar pelo menos trinta e quatro horas depois da confirmação de sua morte, para fazer o enterro. O enterro deveria acontecer durante o dia, de preferência ao meio-dia, que era para as pessoas terem o tempo de pesar e de lembranças dele até que a noite caísse e com a noite viesse também o esquecimento.
A missa de corpo presente deveria durar setenta minutos, que era para dar tempo de seguir todos os passos que deixara escrito e registrado na secretaria da igreja. Deixara todas as outras missas encomendadas e pagas, junto com a lista de pessoas a serem convidadas, que era para garantir que tudo aconteceria conforme o seu desejo. Depois que completasse sete anos de sua morte, os familiares e os amigos estariam liberados para lembrá-lo da forma como quisessem.
Quando, em vida, avisava a família que havia um segredo que deveria ser revelado no dia de sua morte antes de serem tomadas as providências para os seus funerais, todos pensavam que fosse brincadeira ou exagero dele, mas mesmo assim os orientava dizendo que assim que morresse, imediatamente pegassem no pequeno cofre no canto de seu quarto os documentos que lá estavam.
Na semana em que completaria setenta anos foi participar de uma pescaria junto com alguns vizinhos. Estava contente, talvez até feliz. Gostava de se afastar e pescar sozinho. Retornariam no dia de seu aniversário, pois mesmo sendo avesso a festas, naquele ano faria uma para a família, os amigos e os vizinhos. Pescaram bastante, organizaram os peixes e os equipamentos. Antes de partir pediu aos companheiros que esperassem um instante, pois gostaria de nadar uma vez ainda antes de partir. Jogou-se ao rio e largou-se a dar braçadas. Mergulhou e voltou à superfície. O coração estava bem. Mergulhou mais uma vez e nunca mais voltou. Os companheiros, mesmo sabendo que ele não era dessas coisa, num primeiro momento pensaram que fosse uma brincadeira.
Primeiro vieram os moradores da vizinhança contando histórias de jacaré, de uma cobra devoradora, de piranhas (mesmo que aquele rio não desse para essas coisas) e de uma antiga bruxa que ali morrera e cujo corpo nunca fora encontrado. Depois vieram os bombeiros e passaram sete dias procurando e vasculhando o rio, sem nada encontrar. Desistiram.
A família registrou o seu desaparecimento e o delegado, o seu óbito. A vida da família seguiu, agora tranqüila. O jardim ficou mais florido. A viúva começou a sorrir e se divertir. Os filhos passaram a se encontrar mais e se afastar menos. Mas a vida de todos mudou radicalmente no exato dia em que completou sete anos de seu desaparecimento, quando o filho mais jovem resolveu dar um jeito de estourar a fechadura do cofre e lá encontrou o testamento dos desejos do pai para a celebração de sua morte, junto com todos os documentos e recibos que deixara. Por sorte estava tudo pago, porque já era tarde demais para revelar um segredo tão bem guardado e para atender desejos de um morto que nunca voltou para ser atendido. Bem no cantinho do cofre ficara um papelzinho com a anotação da senha para abrir o cofre. Era tarde.
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