É preciso assumir nosso tempo em todos seus paradoxos, contradições e perplexidades. Ao capitalismo cognitivo, corresponde um movimento em enxame
Por Bruno Cava
Houve época em que a blogosfera era um território bárbaro. Na década de 90, começando com os BBS (Bulletin Board System), as newsletters (principalmente do UOL) e os chats do mIrc, tudo era novo. Vigia uma liberdade radical. As pessoas se encontravam e no caos debatiam, brigavam, se abraçavam e se amavam. O acesso, ainda limitado às subculturas geek e hacker, começava a ampliar-se para a classe média. Tempos em que as redes sociais participavam de um processo contracivilizatório — embora minúsculo, quase guetificado. Éramos felizes e não sabíamos.
Então veio o bum da new economy e tudo mudou. Como acontece com qualquer força produtiva, as redes foram tomadas de assalto. Mercantilizadas, formatadas, uma avalanche de publicidade. A Nasdaq bombou com o mercado pontocom. Os hackers passaram a prestar às empresas consultoria de segurança digital. Os geeks se converteram em yuppies na crista do sistema. Até a bolha estourar, cada ex-geek talentoso sonhava em ser milionário. E alguns conseguiram. Grandes pequenas empresas pipocaram overnight para privatizar as redes, gerir marcas e capitalizar nas finanças. Perceberam o manancial de produtividade circulante e precipitaram os seus tentáculos e ventosas.
Nos anos 2000, o número de pessoas enredadas multiplicou muitas vezes. As redes se ramificaram, se enraizaram na economia política, se miscigenaram: constituiu-se uma rede de redes. Muito mais do que ferramenta ou meio instrumental, a rede é ela própria um espaço social construtivo, um conjunto de relações sociais que organiza, articula, comunica, potencializa e enriquece a vida. É um campo comum na confluência de culturas, éticas, políticas e socialidades, uma cauda longa, multifacetada e atravessada das forças vivas.
A internet não é mais um mundo, é a própria mundivivência na sua modulação mais intensiva. As redes se tornaram o terreno por excelência das articulações produtivas, da antropogênese (a criação do homem pelo homem) e, portanto, das tentativas de expropriar o trabalho social e a potência de vida que todos investem nessa virtualidade tão real.
Com o mínimo de estrutura, geralmente um petit comité de gestores, advogados e publicitários, erigiu-se o paraíso para capitalistas 2.0, como Bill Gates (da Microsoft) e Steve Jobs (da Apple). Eles externalizaram as internalidades negativas e onerosas ao passo que internalizavam as externalidades positivas e gratuitas. Ou seja, souberam explorar os fluxos criativos, difusos, capilares — amiúde anônimos, multitudinários — que surgem espontaneamente na rede. Concomitantemente, transformaram-se em mestres copyright, outsourcing (tercerização), marketing, brand management, networking, crowdsourcing e quejandos. Assim nasceu a economia criativa, a indústria do copyright — a vampirização da produção social e coletiva por empresas, marcas e governos.
Chegou-se então à era Mark Zuckerberg, o criador do Facebook e eleito homem do ano pela revista Time em 2010. As redes sociais estão inteiramente colonizadas. Outro ser humano vive, com outra percepção socioambiental, outro modo de sentir e relacionar-se. Agora, não há mais nada fora do processo de capitalização das relações sociais. Não dá mais para sair. Fazem o Facebook ser o Facebook as 800 milhões de pessoas pelo mundo, e contando. Dessas, 400 milhões o utilizam todos os dias sem falta: 350 milhões pelo celular ou iPad, que carregam consigo o tempo todo. Cerca de 250 milhões de fotos são subidas diariamente. A partir do Facebook, a atividade de cada um é organizada e integrada num gigantesco ecossistema.
Todo o valor do Facebook nasce do tempo de vida, da atenção e das relações investidas na rede por esse quase um bilhão de pessoas. Se não houvesse ninguém conectado, por melhor que fosse o algoritmo, o Facebook não valeria nada. Mas, quanto desse imenso valor retorna para os usuários? Onde está a remuneração pela nossa construção do Facebook? E quanto é capturado como mais-valor para forjar dezenas de milionários e o bilionário Zuckerberg?
A Internet, aliás, nunca esteve tão ‘social’ quanto agora. As redes sociais engoliram a velha rede baseada na navegação livre e anônima, nos prendendo a uma territorialidade, que é o nosso próprio ‘perfil real’, isto é, à nossa identidade fora da rede, o que traz junto, por tabela, chefes, contatos, amigos, colegas de trabalho e escola/faculdade, além dos parentes — é a partir desse perfil que as pessoas passam a navegar, compartilhando links e fotos (suas vidas…) de tal modo que a navegação torna-se ancorada e identificada por definição — Hugo Albuquerque, no Descurvo
Hugo Albuquerque não está contestando o realismo das redes de redes, o fato de elas trocarem energia com o que de mais real existe: a dor, a resistência, a ternura, a loucura. Não defende o aspecto lúdico, como se as redes transcendessem a vida, noutro plano de existência. Não é isso. Refere-se, na verdade, ao processo de codificação e disciplinamento que sofremos. Esse o social entre aspas, como na expressão fazer uma “social”.
Gentrificaram a internet. Mais do que outros mecanismos, o Facebook vem conseguindo sedimentar a identidade de cada um. E assim participa de um ritual que busca converter bárbaros em usuários comportados, hackers em criminosos sexuais e revolucionários em blogosfera progressista. E tenta assumir o controle sobre a intensificada antropogênese, a autoprodução de sujeitos e formas de vida, que as redes fermentam. A gênese social é mais uma vez capturada pelas instituições clássicas de expropriação: a empresa, o estado, a família:
A empresa, ao ocupar o território cognitivo de cada um e o próprio cada um como processo e produto da cognição. Não apenas assaltar o campo visual e auditivo e semiótico pela publicidade, mas dirigir a atenção, formatar estéticas, homogeneizar mundos e vendê-los como estilos de vida. O tempo de vida é milimetricamente colonizado, até o nível subliminar do subconsciente, dos impulsos e sonhos.
O estado, ao garantir o espaço social em que as empresas atuam e lucram, na velha dialética do público e do privado. Integrado globalmente, o estado controla as redes para assegurar o copyright, o direito autoral, a identificação individual, a propriedade sobre o trabalho social (crowdsourcing) e a financeirização dos lucros (rentismo). Movimentos contestatórios — Wikileaks, Anonymous, cultura livre, novas mídias antijornalísticas — passam a ser sistematicamente desacreditados e criminalizados. Em tempos de redes sociais, nenhum estado precisa mais interrogar ou torturar os cidadãos: basta extrair seus dados da internet.
A família, ao enquadrar a pessoa nas múltiplas normatividades de convívio social e consumo, servindo como polícia próxima nas várias dimensões: moral, ideológica, sexual, cosmética e estética.
Apesar de tudo, o antagonismo persiste, dentro e contra. É preciso resistir e ocupar. Não é hora para saudosismos. A luta central está em imergir na ecologia das redes sociais e, do interior, transbordar dos aparelhos de captura e expropriação. Daí que, talvez, a melhor tática não seja sair do Facebook para a N-1 ou Anillosur, numa nostalgia de bom selvagem, mas ocupar maciçamente e democratizar o próprio Facebook.
É preciso assumir o tempo que se vive no conjunto de seus paradoxos, contradições e perplexidades. Ao capitalismo cognitivo, corresponde um movimento social em enxame, que aparece no software livre, na cultura digital, na blogosfera não-progressista, em diversos grupos e coletivos altamente politizados e produtivos, que cooperam e convivem fora da lógica da captura. São as múltiplas corrosões e resistências por dentro do império, os índios da metrópole que já estão dentro. Eles sabem que não é possível voltar atrás, então resolvem ir ainda mais fundo na sua guerra antropofágica contra a civilização.
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