quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

hypomnemata 139

 Boletim eletrônico mensal
 do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 

do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 139, novembro de 2011

a origem do mundo
2011, um artista dinamarquês é censurado no facebook sob a acusação de ter infringido normas de segurança prescritas pela rede social. A infração detectada pelofacebook foi a exposição na página do artista de um quadro pintado há exatos 145 anos, por Gustav Courbet, na França.
Intitulado A origem do mundo, a pintura expõe o corpo de uma mulher deitada com o sexo liberado da moral e de incomodas vestes. Em 1844, antes da origem — quadro que teve inúmeros proprietários, incluindo o psicanalista Jacques Lacan, que o deixou escondido em sua casa de campo sob as telas pintadas por seu cunhado —,Courbet já havia sido repreendido acerca do conteúdo de seus quadros pela administração do renomado Salão de Paris.
Em vez de ceder às exigências do Salão, o pintor intensificou sua produção e apresentou em outro espaço o que havia sido admoestado pelos especialistas franceses.
Para além de afirmar o sexo com liberdade, Courbet saboreou a anarquia. Em 1871, tomou parte dos acontecimentos da Comuna de Paris. No calor da batalhaescreveu que era preciso abolir os privilégios, as falsas distinções que estabelecem entre nós hierarquias perniciosas e ilusórias.
A censura a esse corajoso pintor libertário do século XIX explicita que o conservadorismo velhustro relacionado ao sexo sobrevive ainda hoje.  Entretanto, talpresunção cinzenta — definição inventada por D.H. Lawrence — é estimulada agora pelos cliques nas telas das ditas democráticas redes sociais.
Lawrence, que também fora censurado nas primeiras décadas do século XX, concluiu que a pornografia é alimentada por uma civilização que força o sexo em direção ao submundo e a nudez para o banheiro. Você pode chamar isso de excitação sexual, argumentou o escritor inglês em texto publicado em 1929. Contudo, conclui: é excitação sexual de um tipo secreto, às escondidas, muito especial. A excitação clara e simples, bem aberta e saudável, que você encontra em algumas histórias de Bocaccio, não pode ser confundida com a excitação às escondidas.
Courbet e Lawrence liberaram o sexo na lida com a arte. Depois deles, certos jovens, nas décadas de 1960 e 1970, corajosamente, experimentaram outros costumes e a liberação de prazeres intensos.
Hoje, 2011, momento em que a origem do mundo é censurada numa rede social — local propício para oferta e procura de noivos e noivas em potencial — muitos jovens restauram o decrépito desejo de casamento, revelam em blogs e perfis o seu caduco estado civil, mulheres hífen frutas rebolam na TV, estudantes organizam festas openbar ultracaretas com temas como “luxúria” ou “pecado”...
É preciso investir na invenção de outras práticas de liberdade relacionadas ao sexo. Na companhia de Courbet, com muita anarquia, podemos avançar em surpreendentes movimentos. Instigado pelo fogo da Comuna, em 1871, o artista já escrevera: É desejável que os artistas definam seu próprio curso...
A origem do mundo de Courbet pouco tem a ver com as justificações divinas, é paradise now!
Que tal experimentarmos outros cursos, novos prazeres, já!

a emergência sustentável
eco: do grego êchos: som, eco, ruído, rumor, repercussão, som que reverbera; do grego oîkos: casa, habitat; ecologia: oîkos + logos, estudo do meio, do habitat; economia: oîkos +nomos: arte de bem administrar uma casa; logos = razão; nomos = norma, regra.
Desenvolvimento sustentável: palavra mágica à direita, esquerda ou centro; relação entre ecologia e economia; arte de bem administrar o habitat; casamentos na administração compartilhada econômica, social e ambiental.
* * *
A esperada Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, no Rio de Janeiro, a Rio+20, aproxima-se. Com ela, intensificam-se as discussões acerca da implantação de hidrelétricas e efeitos da reforma do Código Florestal no Brasil. Personalidades televisivas, políticas e acadêmicas não param de se posicionarem com postagens em prol da causa ambiental, em nome de um bem e de um valor universal.
A polarização entre os chamados ecologistas radicais e os ruralistas permanece. Os primeiros ignoram a questão social, passando por cima do necessário desenvolvimento econômico, considerado o elemento-chave para a erradicação da pobreza extrema. Os segundos desconhecem a necessária preservação negociada do meio ambiente e subestimam a biodiversidade, as culturas tradicionais e aspiram a acusação de “prejudicar internacionalmente a moral do país”.
Todavia, matam índios, pequenos produtores e ativistas; roubam-lhes terras. Enfim, o agrobusiness, novo visual político do latifúndio e do coronelismo, entra em expansão com suas colaborações ao desenvolvimento; enquanto isso, o ecobusiness recobre a prática dos ecologistas radicais. Novo e velho fundem, mais uma vez, o comando rural com os olhos e mãos limpas do Estado.
A retórica gira em torno de argumentações sobre a administração do planeta em nome das gerações futuras, a fim de prevenir a extinção da vida na Terra, e, também, assumir um ponto de vista relacionado ao presente das populações miseráveis, dos famélicos. Entretanto, estas questões não são novas.
Desde a primeira Conferência voltada para o meio ambiente, ocorrida em Estocolmo, em 1972, o embate entre a preservação do planeta e o necessário desenvolvimento econômico se deu a partir da divergência entre os chamados países de 1º e 3º mundo: uns diante das catástrofes relacionadas aos efeitos das grandes guerras e à poluição proporcionada pelo enorme crescimento industrial, e os outros diante dos investimentos – em plenas ditaduras – no crescimento econômicos destes países.
O termo desenvolvimento sustentável, portanto, acabou despontando em 1987, com o relatório Brundtland, e se consolidando, em 1992, na chamada Rio 92, também conhecida comoCúpula da Terra. O resultado destas negociações visava o melhor equilíbrio entre os diversos interesses, em prol de um governo de condutas pautado no ambientalismo e possibilitando alternativas para a continuidade dos empreendimentos empresariais e industriais.
Floresta tornou-se, desde então, a maior oportunidade de negócios para o Brasil empreendedor. E, assim, a crise do capitalismo soluciona-se, temporariamente, pelo compartilhamento entre novos valores morais no governo das condutas e novas possibilidades de business. No meio disso encontra-se o social e a questão da erradicação da pobreza habitando o leque político que vai da direita à esquerda.
 A Conferência prevista para 2012, a Rio+20, cujos grandes temas serão “a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza” e “o quadro institucional para o desenvolvimento sustentável”, apenas atualiza – procurando maneiras mais eficientes de aliar preservação e produção de mercado – as negociações iniciadas há décadas, por meio do compartilhamento, produzindo: programas, agendas, programas para controlar programas, planos e planejamentos, normas... e mais planos e mais programas para acompanhar aqueles outros e demais planos e programas para certificar-se de que tudo seja acompanhado.
Procura-se fazer com que o capitalismo se sustente. A miséria e a exploração desenfreada permanecem sob outros contornos, convocando à participação da população, contemplando os diferentes segmentos da sociedade. Não há echos, apenas administração do oîkos, por um planeta mais governável.
Em alguns anos, um novo balanço está previsto por uma agenda que assimila cada vez mais vozes papagaiando em uníssono. Ruídos e silêncios cortantes se perdem na algaravia abafada do desenvolvimento sustentável. Mas o som em eco pode arrebentar blocos nos desertos de gelos.

sobre polêmicas

Enquanto se acirram na mídia os debates entre sim e não à construção da terceira maior hidrelétrica do planeta, superada apenas por Três Gargantas (China) e Itaipu (Brasil-Paraguai), aproximadamente quatro mil operários instalaram o canteiro de obras e as primeiras ações de implantação da usina de Belo Monte estão em curso.
As licenças ambientais, prévias e de instalação, foram obtidas junto aos órgãos estatais competentes que aprovaram os estudos de impacto do empreendimento e as medidas para mitigar os conflitos considerados negativos em determinada área de influência durante a construção e operação da usina.
O potencial de geração de energia do rio Xingu interessou ao Estado e às empresas, desde 1975, em plena ditadura civil-militar, ano em que foram feitos os primeiros estudos do inventário da capacidade energética da bacia, concluídos com a identificação de um potencial de 20 mil megawatts com a construção de sete reservatórios. No trecho do rio próximo a Altamira, foram propostas duas usinas, Kararaô eBabaquarara; a primeira, com um reservatório de aproximadamente 1.220 km², foi escolhida para dar início à série de barramentos.
Em meados nos anos 80 do século passado, a redemocratização no Brasil passava também pelas discussões para uma nova constituição, promulgada em maio de 1988. Movimentos sociais se organizaram para participar da Constituinte. A questão ambiental ganhou força, assim como a questão dos direitos das minorias, como a dos povos indígenas. Em 1989, em Altamira, ocorreu o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em que despontou o cacique Raoni, como um dos representantes dos indígenas. O projeto da UHE Kararaô ganhou visibilidade e repúdio internacional e nacional e foi momentaneamente engavetado.
A partir de 1994, novos estudos de viabilidades no aproveitamento do rio voltaram a ser realizados, dessa vez procurando subsidiar um projeto que evitasse inundação de áreas indígenas. A Eletronorte trocou o nome da usina Kararaô, nome de um grupo indígena que teria suas terras inundadas, para Belo Monte, localidade rural da região.
apagão nacional de 2001 foi o mote perfeito para se voltar à carga sobre a ampliação da oferta energética. Em 2006, iniciou-se o processo de licenciamento ambiental da UHE Belo Monte em um projeto redimensionado pela Eletronorte para enfrentar as consultas e audiências públicas, exigidas para se obter a Licença Prévia e de Instalação.
Para otimizar o aproveitamento da força hidráulica, a maior parte das hidrelétricas contam com lagos artificiais nos quais se mantém a força das águas em um nível constante para movimentar turbinas na casa de força e gerar a quantidade estipulada de eletricidade. No projeto atual da UHE Belo Monte serão inundados em torno de 516 km² em duas represas: Reservatório do Xingu, na calha do rio Xingu, com 382 km², sendo que 228 km² viriam do próprio leito atual do rio na cheia, e Reservatório Intermediário do Canal, com 134 km², onde será instalada a casa de força principal. Este segundo lago será formado com água do Xingu que sairá de um canal do primeiro. No local denominado Volta Grande até a localidade de Belo Monte, o rio Xingu correrá com 30% de sua vazão. O governo admite que, para garantir uma vazão mínima no rio, a geração de energia diminuirá na época de seca.
Contra ou a favor?
De um lado, os adeptos de um crescimento baseado na ampliação da capacidade industrial e na expansão do comércio e da oferta de matérias-primas como os minérios, apostando no consumo crescente da população planetária. Graças à emergência de práticas ambientais no âmbito do governo, os setores voltados ao aprimoramento da infraestrutura de transporte e energia habilitaram-se a negociar, a “ouvir as comunidades”, para usar a expressão técnica de escuta social com efeitos de governo.
De outro lado, aqueles que exigem mais do que serem ouvidos em projetos prontos, e reivindicam presença na elaboração não apenas de projetos pontuais, mas da própria concepção de diretrizes que dão a base de projetos e programas.
A quem ou a que favorece uma usina?
Grandes obras implicam hierarquias, dependem de Estados, autoritários ou democráticos, que gerenciam a circulação de grandes massas de recursos, grandes somas de investimentos.
Como efeito do jogo de argumentos que se organiza e centraliza em uma melhor administração dos recursos naturais e do Estado, o projeto UHE Kararaô e seu lago de 1200 km² afogando terras indígenas e abrindo a fila de vários outros barramentos pouco melhorou o projeto da ditadura civil-militar. Transformou-se em UHE Belo Monte, com seus dois reservatórios de 516 km², sem inundar Terras Indígenas, buscando atrair índios, ribeirinhos, pequenos agricultores em programas de indenização, reassentamento ou capacitação, entre outras medidas condicionantes das licençasrecebidas.
Os grupos sociais ouvidos escutam, agora, o maquinário de terraplenagem e a algaravia da chegada de candidatos a vagas de trabalho na obra de Belo Monte. Muitos outros inventários e planos para ampliar oferta de energia a partir do potencial hídrico da Amazônia circulam, ainda que discretamente, pelos gabinetes de ministérios, bancos e Bolsas de Valores.
Mais do que jogar contra ou a favor, importa problematizar o próprio jogo pelo quais se disputam modulações de governo.
A quê ou a quem servem?

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