sábado, 3 de dezembro de 2011

A busca pelo falo, a subjetivação masculina ou a heterossexualização como moral homossexual


Felipe Areda 
felipe.areda@gmail.com

"Je ne suis jamais. Je deviens."  
( Eu não sou jamais. Eu me torno) 
André Gide 
  
Se, nas palavras de Simone de Beauvoir, "ninguém nasce mulher" (1980, p. 9), creio que tampouco alguém nasce homem. Mais do que um papel pronto que os que nasceram com pintos são obrigados a carregar, o lugar do masculino é um lugar que deve ser construído e constituído a partir de formas de subjetivação que têm como fundamento a busca pelo falo. Para deixar de ser esse devir-pinto, ser que ainda não cumprir o seu lugar destinado de homem, tão logo apresente uma sexualidade, ele deve confirmar o seu lugar sexual apresentando um desejo pelas mulheres, que, antes de ser um desejo corporalafetivo, é um desejo político. Para conquistar o falo, o homem deve se relacionar com esses seres castrados ratificando assim o seu lugar de poder: agora sim ele é um sujeito, já que pode tornar o outro um objeto. Ser homem é, acima de tudo, uma prática. É fácil perceber a necessidade desse movimento de sujeição se observarmos um grupo de adolescentes do sexo masculino. Uma das maiores ofensas que podem existir dentro desse grupo é ser chamado de punheteiro, aquele que se mostra incapaz de conseguir uma mulher para satisfazer seu desejo sexual e tem que recorrer à masturbação, ou de viado, aquele que desonra o seu devir-pinto se tornando um objeto, um passivo, uma mulher, nas relações com outros homens. 
É intrigante perceber que a sexualidade, antes de ser um movimento de busca de prazer e satisfação de um desejo, é uma face de uma moral masculina que nos obriga a apresentar um determinado desejo. A heterossexualidade, então, acaba-se por se tornar mais uma preocupação política homossexual de afirmação do seu lugar numa moral viril do que a manifestação de um desejo físico-afetivo. É claro que pode existir também um movimento de atração, mas provavelmente este é construído depois e a partir dessa necessidade cultural e moral que obriga esse devir-homem a apresentar uma preocupação de subjetivação. 
Pensando novamente na masturbação, gostaria de especular agora o movimento cultural que cria a própria lógica do onanismo (ver Foucault, 1988). Por que a figura da criança onânica é duramente reprimida? Será mesmo para que esta prática seja eliminada ou será que é para que, pelo contrário, esta seja criada? A masturbação de fato só passa a existir quando surge um discurso sobre ela. Antes da repressão acontecer, a criança do sexo masculino que tocava em seu pênis sentindo prazer simplesmente tocava em seu pênis sentindo prazer, só depois de denominado e qualificado pela voz pedagógica e moral que o reprimiu é que realmente passa a se existir o ato de se masturbar. E o mesmo acontece com a menina que antes se tocava sentindo prazer e que passa então a ser reprimida por está fazendo um ato que é um simulacro do sexo, de uma penetração. Esse discurso que reprime tem como justificativa o sexo, o ato sexual: masturbar-se não é simplesmente tocar numa área proibida, mas estar realizando um ato de uma aprendizagem sexual que não está na hora certa de acontecer. Com isso, esse  foco repentino aos órgãos sexuais não tem como objetivo evitar uma sexualidade precoce, mas trazer à criança a consciência que ela tem um órgão sexual e que este serve para fazer sexo, ela é sexualizada. Mais do que ter confirmado o seu gênero, essa criança é genitalizada. 
Refazendo essa genealogia da descoberta do sexo, ou da criação do próprio sexo, focando principalmente no sexo masculino -  já que numa moral viril o sexo feminino é simplesmente a conseqüência dele - temos o seguinte processo: a criança que explorava o seu prazer nas áreas genitais soube que essas áreas eram genitais e que não deviam ser tocadas por que eram áreas do sexo; essa repressão fez esse movimento de busca de prazer se tornar algo proibido e assim esse movimento é banido para o foro íntimo e passa ser realizado ou sozinho, escondido, longe da presença pública com ares de culpa, ou junto de outros que também se masturbam escondidos; entrando na adolescência é-se bombardeado por discursos, por um lado os que consideram a masturbação um movimento natural de aprendizagem sexual e por outro os que a desqualificam como uma incapacidade do menino de conseguir alguém para realizar o seu desejo. Em outras palavras: o tocar o pênis buscando sentir prazer não é entendido como uma descoberta do corpo, mas é problematizado como um ritual de entrada na vida sexual - a masturbação como simulacro do outro, da mulher, do objeto. Está criada uma necessidade política e uma problematização moral, uma ética a respeito do sexo. 
Esses seres genitalizados, então, necessitam se subjetivar para assim conseguir voz nessa moral de homens. Para se subjetivar eles precisam confirmar seu sexo num movimento de construção pessoal, de prática de si, não há melhor palavra para isso do que fazer sexo. No ato sexual o homem mostra a sua posição superior quando come, fode, possui e domina a mulher, ele faz seu sexo, ele confirmar o seu lugar, um sujeito, e define o lugar do outro, um objeto. O sexo da mulher então se coloca a mercê do homem, do ato sexual, do momento em que alguém faz sexo  com ela ou que ela é desejada para essa função. Como nasceu culturalmente castrada, a mulher não pode se tornar um sujeito, então a única maneira dela se encaixar nessa moral de homens é como um objeto, como um segundo sexo. Dentro dessa moral, essa é a sua única maneira de ser. Talvez por isso a lésbica seja a figura que mais se encontra à parte dessa moral masculina, a lésbica é aquela que não é, é aquela que não têm sexo dentro dessa moral, já que as lésbicas não são mulheres (Wittig, 1980) embora tenham nascido castradas. Vê-se isso na própria História e nos seus registros: "não se fala, logo não existe" (Navarro-Swain, 2000, pg. 19) uma relação lesbiana. "As mulheres homossexuais não tinham direito a um nome, logo, à existência." (idem). Contudo, tende-se a moralizar a lésbica. Tanto a enquadrando na lógica heteronormativa a partir da dualidade butch e femme¹, onde se mantém uma lógica heterossexual mesmo a butchse tornando um pastiche  do lugar homem; como na objetificação das próprias lésbicas que faz com haja um olhar de desejo para essa relação - o famoso desejo masculino de transar com duas mulheres. As lésbicas só são, só passam a ser e a existir dentro dessa moral e desse mundo moral quando existe esse olhar que as vêem como um pastiche de sujeito ou como um objeto desejável em uma aventura sexual. Mesmo assim, as lésbicas talvez sejam hoje o ponto mais subversivo e marginal dessa sexualidade viril. A moral ainda não está completamente convicta que ser lésbica é uma maneira de ser. 
Os gays, ao contrário, não possuem nem um ar de contracultura. São devires-pintos que se enquadraram perfeitamente nessa moral masculina. Tanto quando se subjetivam ratificando seu lugar de homens - gays, porém ativos -, como quando são ratificados no ato sexual com outro homem se igualando ao objeto mulher como passivos. Obviamente os primeiros são melhores aceitos, já que existe uma cultura que não condena a relação puramente sexual com outra pessoa do sexo masculino quando se é ativo. Esses, muitas vezes, nem são considerados gays. Mas com os passivos, que são visto como seres que desejam ocupar o lugar da mulher, existe uma manifestação de ódio por eles não honrarem o seu devir-pinto ao não ocupar o seu lugar de homem. Essa homofobia, porém, é uma conseqüência do mesmo olhar que menospreza e castra as mulheres. Essa homofobia é uma manifestação da própria moral homossexual, é uma manifestação da misoginia dessa moral. 
É nítido o quanto essa moral nos engole, moral que além de trazer uma obrigação política, cria até a nossa preocupação ética. Moral que fundamenta a nossa relação conosco mesmos e com os outros. Moral que constitui a nossa identidade, a forma que somos vistos e que nos vemos. Moral que nos faz ser e que nos faz seres. Como então subverter essa moral? Como se colocar a parte dessa ordem homossexual que nos obriga a nos heterossexualizar, que nos obriga a sexualizar e a nos sexualizar, que nos obriga a ser sexo e fazê-lo? Talvez a melhor forma seja abrir mão desse, abrir mão do gênero, abrir mão do sexo, abrir mão da identidade, abrir mão da  sexualidade e do fazer sexo. Abrir mão das identificações, das predestinações, das práticas que nos nomeiam e das máscaras com as quais somos obrigados a fazer coreografadas performaces. Abrir mão de ser, enfim. Ser, talvez, seja a melhor forma de compactuar com essa moral. Ser feito, ser fazendo, fazendo ser e até mesmo sendo diferente. O não-ser talvez seja o que possa existir de singular. Não 
ser, estar à margem desse engessamento moral, estar à parte dessa cultura de lugares. Não ser e só não sendo poder agir contra essa cultural, criando cultura, mas não mais a sendo.  Não ser nada, um não-ser que pode ser tudo, um tudo indefinido e longe das máscaras prontas, uma cultura nova, uma cultura à parte e não identificada. O não-ser que é máscara fluida, que é performance inédita, que é manifestação do não-dito e do indizível. É difícil imaginar, porém, que, depois de já subjetivados, os sujeitos dessa moral queiram deixar de ser. Quando já sujeitos, torna-se culturalmente fácil manter essas práticas do sexo, essas práticas políticas de manutenção da voz moral, manter a heterossexualidade continuando a fazer mais objetos e permanecendo, assim, com a moral homossexual intacta. Se a lógica da subjetivação masculina  é regida pela violência, pela objetivação do outro e pela criação de femininos, já que tornar-se homem é tornar outros indivíduos mulheres, por que razão se esperaria que os homens, os sujeitos, se incomodassem com a violência e a objetivação do outro? Por que se esperaria que eles abrissem mão de suas formas de ser? Por piedade, por culpa, por comiseração? Nenhuma resposta ainda me parece clara.  
Abrir mão da identidade sexual talvez seja um caminho interessante para desconstruir essa moral sexualizadora. Esse caminho, porém, também é um caminho viril; pois, como se se torna homem enquanto se é tornada mulher, esse caminho só é possível para homens. Não cabe ao feminino escolher se terá ou não uma identidade, a identidade o engole. Só os homens, depois de devidamente subjetivados, podem abrir mão da identidade. 
Talvez o caminho então esteja na especulação dessa moral. Analisar remexe as verdades, expõe o sólido e, com ele, as fissuras. Criticar as práticas sexuais, buscar as origens do sexo e desmentir as essências talvez seja se colocar à margem desse moral, à margem dessa forma de ser que é entregue os indivíduos de forma tão clara. Mostrar as construções desconstruindo o que já parece ter nascido feito, pois ser é uma prática, uma construção de si. Desconfiar dessa moral e de si mesmo como integrante dela pode abrir espaço para uma nova ética, para uma nova forma de se ver dentro desse moralismo sexual engessado, dessa cultura sexual e sexualizadora. Só assim parece nascer uma nova problematização de si que possibilitaria a mudança das práticas, a mudança das funções, a mudança das performances e mudança dos tornar-se. Só assim deixaríamos de ser, de ter que ser e de se ver tendo sido feito e, assim, não mais seres, poderíamos buscar novas formas de viver não mais sendo apenas sujeitos ou objetos de uma moral engessada. Mais do que buscar ser de outra forma, buscar formas novas de ser. Descontruir as opções que nos foram dadas, estar à parte delas e criar novas opções. Novos caminho e talvez uma nova busca.  
Nota: 1 As expressões “butch” e “femme” correspondem, respectivamente, aos papéis “masculinos” e “femininos” em uma imagem binária e heteronormativa da relação lesbiana.

Referências bibliográficas 
DE BEAUVOIR, Simone. O segundo Sexo. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980, vol 2. 
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2 - O uso dos prazeres. Rio de Janeiro : Graal, 1984.  
____. História da Sexualidade 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro : Graal, 1988. 
NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é Lesbianismo. São Paulo : Brasiliense, 2000.  
WITTIG, Monique (1980). The Straight Mind and other Essays, Boston: Beacon, 1992 - Discurso Intitulado "Pensamento Hétero" proferido em 1980. Publicado em português em http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/pensamentohetero.htm, acessado em 10/12/2004. 

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