quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A arte de ouvir



Muitas palavras acabarão em jazigos digitais, mas o contador de estórias seguirá até que o último ser deixe de escutá-lo
Por Henning Mankell* | Tradução: Paulo Cezar de Mello
Cheguei à África com um objetivo: queria ver o mundo do lado de fora da perspectiva egocentrista europeia. Podia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul. Acabei na África porque a passagem aérea para lá era mais barata.
Vim e fiquei. Durante quase 25 anos, vivi em Moçambique em períodos alternados. O tempo passou e eu não sou mais jovem. Na realidade, estou chegando à velhice. Mas a minha razão de levar essa existência escarranchada, com um pé na areia africana e outro na neve europeia— na melancólica região de Norrland, Suécia, onde cresci —, tem a ver com a vontade de ver com clareza, de compreender.
O modo mais simples de explicar o que aprendi com minha vida na África é recorrer à parábola sobre a razão de os seres humanos possuírem duas orelhas mas só uma língua. Por que isso? Provavelmente porque precisamos ouvir duas vezes mais do que falar.
Na África, ouvir é um princípio orientador.
Princípio que tem se perdido na tagarelice ininterrupta do mundo ocidental, onde ninguém parece ter tempo nem mesmo desejo de ouvir quem quer que seja. Pela minha própria experiência, percebi como a necessidade que tenho de responder a uma pergunta durante uma entrevista para a TV ficou mais urgente do que era dez, quem sabe cinco anos atrás. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de ouvir. Falamos, falamos e acabamos amedrontados pelo silêncio, o refúgio daqueles que ficam sem saber o que responder.
Sou velho o bastante para lembrar a época em que a literatura sul-americana emergiu na consciência popular e mudou para sempre nossa visão da condição humana e do significado de ser humano. Agora, penso que chegou a vez da África.
Por toda parte, gente do continente africano escreve e conta estórias. Com certeza, a literatura africana logo estará pronta a irromper na cena mundial — assim como aconteceu com a literatura sul-americana anos atrás, quando Gabriel García Márquez e outros conduziram uma revolta tumultuosa e altamente emocional contra verdades arraigadas. Brevemente um jorro literário africano oferecerá uma nova perspectiva sobre a condição humana. O escritor moçambicano Mia Couto, por exemplo, criou um realismo mágico africano que mistura linguagem escrita com as grandes tradições orais da África.
Se formos capazes de ouvir, vamos descobrir que muitas narrativas africanas apresentam estruturas completamente diferentes do que estamos acostumados. Eu simplifico demais, claro. No entanto, todo mundo sabe que há verdade no que estou dizendo: a literatura ocidental é normalmente linear; vai do começo ao fim sem grandes digressões no espaço ou no tempo.
Não é o que acontece na África. Aqui, em vez de narrativa linear, existem narrativas desimpedidas e exuberantes que saltam para trás e para frente no tempo e fundem passado e presente. Alguém que morreu há muito tempo pode intervir sem cerimônia numa conversa entre duas pessoas perfeitamente vivas. Isto só para dar um exemplo.
Os nômades que ainda habitam o deserto de Kalahari são conhecidos por contar estórias entre si durante suas caminhadas de um dia inteiro para procurar raízes comestíveis e animais de caça. Com frequência há mais de uma estória se desenrolando ao mesmo tempo. Às vezes, três ou quatro estórias seguem paralelas. Mas, antes de voltar para o local onde passarão a noite, eles procuram entrelaçar as estórias ou separá-las de vez, dando a cada uma sua própria conclusão.
Uns tantos anos atrás, sentei-me em um banco de pedra do lado de fora do Teatro Avenida em Maputo, Moçambique, onde eu trabalho como consultor artístico. Era um dia quente, e estávamos fazendo um intervalo nos ensaios a fim de dar uma escapada lá para fora, esperando que soprasse uma brisa fresca. Fazia tempo que o sistema de ar condicionado do teatro deixara de funcionar. Devia fazer mais de 38 graus lá dentro enquanto trabalhávamos.
Dois velhos africanos estavam sentados no banco, mas havia lugar também para mim. Na África, compartilha-se mais do que apenas água, um hábito fraternal. Mesmo quando se trata de sombra, as pessoas são generosas.
Ouvi os dois falarem de um terceiro homem velho que havia morrido recentemente. Um deles disse: “Eu estava de visita em sua casa. Ele começou a me contar uma estória assombrosa sobre algo que aconteceu quando ele era jovem. Mas a estória era longa. Veio a noite e concordamos que eu devia voltar no dia seguinte para ouvir o resto. Só que, quando eu voltei, ele tinha morrido.”
O homem caiu em silêncio. Resolvi que não deixaria aquele banco enquanto não escutasse a resposta que o outro daria ao que tinha ouvido. Tive um sentimento instintivo de que isso seria importante.
Finalmente, ele também falou:
“Não é um jeito bom de morrer — antes de ter contado o final da sua estória.”
Enquanto eu ouvia aqueles dois velhos, ocorreu-me que um termo para nomear nossa espécie, mais verdadeiro do que Homo sapiens, poderia ser Homo narrans, a pessoa que narra, que conta estórias. O que nos diferencia dos animais é o fato de que podemos escutar os sonhos, medos, alegrias, tristezas, desejos e frustrações das outras pessoas — e elas, por sua vez, podem escutar os nossos.
Muita gente comete o erro de confundir informação com conhecimento. Não se trata da mesma coisa. Conhecimento implica interpretar a informação. Conhecimento implica ouvir.
Então, se eu estou certo em dizer que somos criaturas narradoras, e na medida em que nos permitimos ficar quietos por um momento às vezes, a eterna narrativa irá prosseguir.
Muitas palavras serão escritas no vento e na areia, ou acabarão em algum obscuro jazigo digital. Mas o contador de estórias seguirá em frente até que o último ser humano pare de ouvir. Então, podemos enviar a grande crônica da humanidade para o universo infinito.
Quem sabe? Talvez haja alguém lá fora, desejando ouvir…
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(*Henning Mankell é autor de muitos livros, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo personagem Kurt Wallander. O artigo foi publicado em 10 de dezembro de 2011 pelo New York Times

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