quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

sem título

A comunidade de Porto Alegre vive, mais uma vez, o sério dilema com relação à atuação dos profissionais da área médica no campo da saúde pública. Essa pendenga, por conta do corporativismo da categoria, já derrubou vários secretários municipais de saúde da capital. No atual capítulo, o Sindicato dos Médicos aproveita o pano da criação de uma Fundação de Saúde e costura com a questão da atuação dos profissionais.
O Secretário de Saúde argumenta que com a criação da Fundação seria possível, inclusive, melhorar os salários pagos aos profissionais médicos e cobrar o cumprimento da carga horária. Mas o que sustenta a idéia de que somente o salário desses profissionais deva ser qualificado? E, em não sendo Fundação, não se pode cobrar o cumprimento da carga horária e da efetiva atuação?
Essa situação não é característica somente de Porto Alegre. A grande maioria das comunidades enfrenta a mesma dificuldade e há muitos pontos a serem modificados no campo da saúde pública. Vejamos alguns:
1. Saúde pública não é feita somente por profissionais da área médica. O médico é somente um dos profissionais que atua no campo da saúde. É comum os profissionais das outras áreas, por conta de uma formação cultural e profissional conservadora, acabarem submetendo a própria prática ao crivo e determinação do colega médico, não assumindo aquilo que seja da sua responsabilidade; assim como, é comum, também, o médico impor o saber de sua área como o saber dominante.
2. O fato da maioria das comunidades ser guiada pelas práticas curativas e medicalizadas, torna comum a expectativa das pessoas de serem atendidas pelo profissional da área médica, não aceitando o atendimento integral produzido pelo coletivo de profissionais de diferentes áreas; portanto, ao não encontrarem o médico na unidade de saúde, entendem que estejam sem atendimento.
3. A velha cultura do médico que porta a verdade sobre a doença e a saúde do usuário, fazendo-o um mero paciente que não produz nenhum protagonismo sobre si, transforma esse usuário num refém de práticas definidas por gavetas e prontuários.
4. A maioria dos Concursos Públicos descuida em definir de forma mais aproximada do campo da saúde pública, as características dos profissionais a serem selecionados. Essa é uma condição que acaba gerando o ingresso de profissionais, de todas as áreas, mas principalmente da área médica, sem nenhum interesse pela produção de trabalho em saúde pública.
5. É comum vermos profissionais, principalmente da área médica, que comparecem nas unidades de saúde por breves instantes, atendem um número X de "fichas" e se retiram, sendo, inclusive, acobertados por colegas de outras áreas que guardam a devida subserviência à essas situações. O uso do argumento de que os profissionais dessa área contam com amparo legal para atenderem tal número de "fichas", limita-se à atuação no SUS, pois, concluído o atendimento das "fichas", acabam indo para o consultório particular, onde não há limite de "fichas".
6. Não se trata somente de cumprir uma carga horária, pois o profissional pode estar em tempo integral em seu espaço de trabalho e não estar envolvido ou guiado pelas práticas em saúde pública. Em primeiro lugar, o não cumprimento da carga horária para a qual o trabalhador público foi nomeado ou contratado, constitui-se num absoluto desprezo e desrespeito para com o coletivo e a coisa pública; em segundo lugar, é ter muita cara de pau, pensar que enquanto os demais trabalhadores estão ralando e trabalhando, alguns que se creem acima dos demais (e isso se refere à todas as áreas profissionais) podem atuar de forma precária, em tempo reduzidíssimo e ainda se dar ao direito de sair pela sombra.
Enfim, poderíamos seguir os andaimes, mas por hoje já deu... tenho estertores quando começo a pensar nessas coisas... em profissionais precários e irresponsáveis, que são contratados 20 ou 40 horas semanais e que atuam no máximo em 20% desse tempo (e se atuassem mais tempo não mudaria suas práticas precárias)... em profissionais contratados que se outorgam o direito a férias e, além de não trabalharem regularmente, cobram, nessas férias,  para emitir documentos ou atender os usuários do SUS... em profissionais de diferentes áreas que fazem acordos com gestores, para redução remunerada de suas cargas horárias, sob o argumento de que os médicos tem "o direito" à jornada reduzida, o que lhes garante  o mesmo "direito"... em profissionais que justificam o seu não cumprimento da carga horária e do efetivo trabalho, comparando suas atuações às dos colegas e argumentando que se os outros conseguem cumprir, é por não terem outras atividades fora do trabalho público... em profissionais que mal olham para os usuários, fazendo atendimentos relâmpago e surdos... e por aí vai!

6 comentários:

  1. Que bom que não sou só eu que vejo tudo isso acontecer e que tenho coragem de falar o que vejo! O que fazer com a Saúde Pública na mão de uma categoria profissional rica??

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  2. Paula, penso que nem se trata de riqueza, mas de ganância, de interesses individualistas, de uma ética do "solito", de exploração da coisa pública, de um corporativismo miserável, de uma hipocrisia esnobe. Dia desses conversava com um médico que não segue essa linha predatória da dignidade humana e ele dizia do quanto se envergonha do fato de que a maioria dos seus colegas de profissão ainda tenta preservar o elitismo que originariamente circundava a área. Reconeçamos que também nos envergonhamos de muitos colegas de profissão!
    Convenhamos que nem se trata de questionar quem faça basicamente a opção privatista, pois cada um atua no campo em que se sente à vontade; trata-se, sim, de questionar quem não tenha o interesse de atuar de forma séria no campo da saúde pública e que, ainda assim, escolha o "emprego público" como incremento ao seu orçamento!
    Quando vejo muitos colegas de trabalho do SUS, que tem a cara de pedra de atuar menos de 20% do tempo que deveriam atuar e ainda bradar como triunfo a fila de espera de usuários esperando por um afago do destino que lhes conceda um precioso minuto de seu precário e miserável tempo... quando vejo isso com meus próprios olhos machucados me dá umas ganas de trabalhar muito mais pra fazer o SUS de verdade acontecer, para que as pessoas possam ver o grande engodo em que estavam metidas e vir a garantir, no mínimo, sua dignidade.
    Gentitudes que fazem essas coisas com a coletividade e com a coisa pública, mesmo que recebam 10 vezes a remuneração a que tem direito, nunca farão saúde pública de forma diferente do que fazem... pagar 8, 9, 10 mil para garantir um profissional de determinada área atuando no silenciador de bocas de usuários que medicalizam suas vidas é zombar de todos os outros profissionais e da própria coletividade.
    A consolidação do SUS e da saúde comunitária pode, PAula, modificar um pouco desses distúrbios existenciais e políticos!
    A luta nunca está ganha!
    Abração pra vc, PAula e para suas incansáveis pensaduras!

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  3. Recebi o blog pela primeira vez e assino embaixo. Muito bom ter colegas pensadores. Também estou cansada de incoerência. No fundo, trata-se de 'humanizar' o trabalho. Afinal, SUS, convênios, seja a modalidade de atendimento q for, nosso 'material de trabalho' são pessoas, são sentimentos, são dores (concretas ou abstratas, tanto faz). É bem diferente de lidar com papéis, com máquinas...gente pede apenas para ser vista como gente. Para isso é preciso deixar o egocentrismo de lado...talvez a parte mais difícil desse relacionamento, esquecer um pouco as nossas necessidades para pensar nas necessidades do outro. 'Alguém' já disse, muito tempo atrás, para 'buscarmos a paz, e o resto tudo nos seria acrescentado' (paz é a minha versão do q ele disse.... Eu acredito nisso. Trabalho em Saúde Pública há 30 anos e nunca me faltou nada para viver com dignidade. Sem luxo, claro...mas, já dizia Gandhi, 'no mundo só não há recursos suficientes para suprir a ganância de alguns'. Nos voltemos aos que não são gananciosos. Felimente, são muitos! Parabéns, pescadora escrevinhadora!!!

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  4. val, é necessário ser gente para trabalhar com gente!
    quem não se produziu como gente enquanto condição ética, segue apenas os interesses individuais... sempre haverá quem seja assim... o que não podemos mais aceitar é que os valores e as práticas dessas figuras se perpetuem como perspectiva dominante no mundo em que vivemos... temos o dever em sermos mais intensos em tensionamentos capazes de produzir rupturas mais profundas e abrangentes nos espaços em que atuamos.
    o sistema individualista, exploratório, predatório e excludente que busca garantir o interesse (interesse e não as necessidades) de alguns já mostrou sua exaustão... nós é que demoramos para roçar o terreno!
    apareça sempre por aqui!
    grande e carinhoso abraço!

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  5. Olha não atuo na área da saúde, mas vou relatar um caso, pois, tenho na questão social meu objeto de trabalho. Outro dia acompanhei um usuário da Assistência Social até o posto onde ele tinha uma consulta agendada para as 9h do mesmo dia. O médico não aparecia ( que ele não me ousa pois se diz Dr.). La pelas 10h, mesmo diante do estranhamento dos demais (considerando o médico como funcionário, apesar de ter visto la na PUC uma placa dizendo médicos e funcionários) funcionários comecei a perguntar por ele, logo percebi o estranhamento. Como um paciente ousa perguntar sobre os horários de um DR? Mesmo assim responderam me que èra às 9h, Continuei argumentando teria ele tido um imprevisto? Notei que a paciência do interlocutor se esgotara. Identifiquei me como Assistente Social, obtive um pouco mais de atenção, porem mediante o constrangimento da funcionária parei e esperei ate 11 e 20 Quando ele chegou, e, en 7 minutos atendeu o menino que estava comigo. HA! o atendimento só levou 7 minutos por que eu dizia que éra ele quem tinha que dizer o que o menino tinha pois ele insistentemente dizia; mas o que ele tem? mas o que ele tem? Este é só mais um caso que ilustra como é o procedimento de muitos dos trabalhadores do SUS. Nestes percebe se o entendimento de estarem assima do sistema. Grande abraço!

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  6. olá, claudio!
    são exatamente essas coisas que devem nos fazer buscar garantir um trabalho humanizado no campo da saúde (e de qualquer outra política pública), fomentando a produção de práticas de autonomia e protagonismo entre os usuários, assim como, devolvendo ao usuário o saber sobre si e sobre sua saúde... saber este, que oi sequestrado pelo saber´técnico dominante!
    deixo-lhe a provocação para que os colegas do campo da assistência social estejam ativos nos processos das pré-conferências e da conerência municipal de saúde que acontece neste ano... enfim, o trabalho em rede e a efetiva intersetorialidade é algo que ainda temos que aprender a construir!
    grande abraço!

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