domingo, 9 de janeiro de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - O ULTIMO CURSO?

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
O ULTIMO CURSO? - Por Giorgio Passerone *
Terça-feira, 2 de junho de 1987, no edifício pré-fabricado ao lado de Paris VlII-Vincennes em Saint- Denis, havia até câmeras para filmar o acontecimento. E curiosos, reaparecidos, mais a habitual etnia de tentação nômade - os brasileiros, os africanos, os U.S. A. e os chilenos, os japoneses, os árabes e os italianos, o indiano e a russa.. (mas não muitos parisienses). Todos lá, esperando a réplica de Deleuze,uma vez que, já se sabe, um acontecimento é a coisa mais delicada do mundo, não se o filma assim. Basta-lhe suspirar com a sua voz, uma brisa - uma modulação, mas com firmeza - que mal se entendia, já que os últimos cursos se fazem sempre exceto no momento em que se julga, e nunca se deixa de perdê-los: «Hoje se trata de uma coisa completamente diferente... Eu desejava que nos encontrássemos reunidos para lançar novas direções de pesquisa, e que alguns dentre vocês falassem e eu não, eu coloco as questões, é para isso que vocês podem colocar as , isto será cinema mudo...»
Começava sempre assim, um «falar com» que se ria do verdadeiramente predicador, a busca de um tom para uma espécie de concerto, onde o tema em solo é inseparável do acompanhamento dos outros. E, esta manhã, o tema tinha sido explicitamente a própria variação. Tinha decorrido o ano sobre Leibniz, rodeando o problema da harmonia, a harmonia das almas entre elas, das almas e dos corpos, até retirar a elaboração de um conceito filosófico novo, o acordo da alma e do corpo: não haveria ressonância com a renovação da noção de harmonia na música barroca, definida por uma teoria dos acordes e um tratamento inédito das dissonâncias (Monteverdi, Peri, Caccini), mais do que por uma teoria do contraponto melódico? Aos «musicistas» do seminário caberia o desembaraçaresta história da transformação da noção de harmonia; Deleuze teria feito eco com certos conceitos de Leibniz a fim de aí produzir uma leitura estática que reagisse com a música e que se encadeasse com a sua compreensão mais propriamente conceituai. O curso das terças-feiras sempre funcionou assim, uma produção-laboratório à volta do operador Deleuze com sua tarefa: fazer uma leitura dos filósofos que destaque a sua originalidade, sobrepondo a esta uma criação conceituai que possa servir de exemplo àquilo que de novo surge noutros domínios, nas ciências, no cinema, em literatura, em pintura ou em música... E por isto que o seu público sempre foi composto de «filósofos» e de não-filósofos, já que esta tensão do novo, do inesperado, não implica de forma alguma um simples jogo conceituai, mas uma urgência, um afeto préfilosófico a ser preservado e que é a graça do próprio filósofo. Com efeito, se há uma resposta de Deleuze às teorizações muito em moda sobre o sentido da filosofia, ela tem a postura de uma questão-rittornello: de onde vem esta estranha afinidade que nos atravessa como um míssil, com tal filósofo, tal pintor, tal músico, que tipo de conceito nos convém ao suscitar em nós não necessariamente um tornar-se filósofo, mas tornar-se um outro que pega qualquer coisa da filosofia para que daí se possam servir diferentemente? O fundo comum de um encontro, e assinalam-se os problemas para os trabalhar em conjunto, significa cada um com sua própria pesquisa solitária. Esta simpatia-choque, sem complacência, se sente deslizar por intermitências entre as pessoas, uma espécie páthos incorporal das sessões.
Certamente que também aí havia uma «cena», sublinhada ao longo dos tempos: o frenesi de Vincennes nos belos dias militantes de O Anti-Edipo, o clima mais estudioso, menos virado para os happenings de St. Denis. Estavam aí os cientistas, os intelecto psi, anti-psi, terceiro-mundistas, com suas intervenções acirradas, por vezes para trazer dados, especificar (e isto funcionava),outras para polemizar, distribuir os erros e as razões, conforme o mais velho tribunal do júri (e assim não funcionava de forma alguma); havia alguns loucos, e neuróticos de toda a espécie, os aborrecidos e os encantadores, todos numa demanda infinita, em falta, atentos ao menor sinal do Mestre. Um Grand Guignol, umas vezes fatigante outras divertido, gerado com muita paciência e humor, o próprio encanto de Deleuze. Uma queda instantânea do humor, uma subida cantarolada, ele se colocava tão longe do olhar crítico do entendimento como das tentativas reiteradas de psicodrama: sempre fazendo deslizar o sub-representativo que abre a formalização, seja no campo do conceito como no do vivido vivo, agenciando um ao outro. Se o lê, em Deleuze, escrito num estilo duro e ao mesmo tempo emocionado, sacudido por aquilo que Artaud chamava de «o exterior subexterno mais estranho que todo o interior», o impensado mesmo de uma vida não-orgânica; mas também se o vê quando o estilo e o encanto, indiscer-níveis até desaparecerem, vão criar na sala a exterioridade serena desta voz-silhueta que envolve todo o mundo e até mesmo sua fragilidade de saúde. Ele conta, por exemplo, seguindo a conceptualização mais minuciosa, como a lógica de Whitehead compõe uma verdadeira filosofia do acontecimento apta a dar conta daquilo que se passa nas ciências, nas artes, na própria vida, não somente no pensamento puro. Depois, e isto recomeça de um golpe, ao mesmo tempo muito organizado e improvisado: «Mas o que quer dizer, pensar e viver em termos de acontecimentos? Estas são coisas que se fazem completamente sós, e no entanto... Vocês estão certos de serem individuados como pessoas, nos termos de eu e de sujeito, ou não antes e à letra como um vento, uma corrente de ar?... Não se trata do mesmo mundo, aquele onde se diz < não somente há acontecimentos mas mesmo esta mesa é um acontecimento >e aquele onde se diz ».
Quando se consegue vos envolver com palavras tão normais, parece muito inocente; mas não é tão ingênuo quanto se pensa, é pelo contrário a prática do conceito mais extrema. Ela destitui toda a filosofia reflexiva com os seus princípios (idéias objetivas, razão subjetiva), sua busca das origens, mesmo perdidas ou rasuradas, sua explicação dos fenômenos sempre em nome do Universal, do geral. A lógica deleuziana (cartografia) não diz respeito senão aos processos de consolidação imanentes ao conjunto leve da experiência; o que exige ainda mais rigor, já que são suas velocidades, suas lentidões mais do que forças que é necessário pensar, suas intensidades mais do que seus sujeitos.
Daí o sintoma ambiental, justamente a exterioridade mesma de toda a relação-processo que carrega os termos-sujeitos com seus movimentos mutantes... o mestre e também os alunos. E entende-se que não haja mais seminários das terças-feiras. Nunca se repetirá em demasia: nada aborrece mais Deleuze do que aqueles que pensam «eu sou isto, eu sou aquilo», e que no entanto bem gostariam de fazer parte de mais uma escola, identificando o professor público como mestre. Mas os únicos mestres, diz Nietzsche, são os intempestivos, aqueles que crêem e que conseguem pegar sob os acontecimentos barulhentos, os pequenos acontecimentos silenciosos (ao mesmo tempo demasiado cedo - demasiado tarde, já lá, ainda não) anunciando a composição de novas forças... E porque não o 2 de junho de 87?
Com efeito, a filosofia prática que Deleuze não cessa de experimentar no acaso de outros reencontros, em outros lugares, permanece inseparável para aqueles que o seguiram, e não somente em Paris VIII, do exercício o menos fácil a continuar não necessariamente pelo material filosófico. Porque é da mesma forma o real que se pode viver em acontecimento, fazendo uma produção de existência nova, uma relação tão pequena que esteja entre todos os devires minoritários do mundo. Sem dúvida também uma «política»; desde aí o agenciamento-simpatia funciona melhor, ainda mais imperceptível, estejam certos.
* Pesquisador na Universidade Filosófica Européia. Traduziu Mille Plateaux para o italiano.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» n? 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
cooperação.sem.mando

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