terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sim, uma humana pescadora!


Arrecado sonhos jogados pelas esquinas. Percorro as veredas das zonas de meretrício, e recolho as vidas que escorrem pelas calçadas. Pego caronas incertas, em certas estações. Certas. Bem certas. Jogo sementes em precipícios. Algumas serão bonsai. Outras, somente sementes. Jogos sementes ao vento. Algumas serão árvores. Outras, arbustos. Jogo sementes em terra fértil. Algumas brotarão, crescerão, florirão e frutificarão. Outras, apenas florirão. Ou crescerão. Não há rumo certo, exato, para uma semente. Nem pra vida há rumo certo. Jogo rizomas pelos terrenos em que passo. A vida simplesmente acontece, se transversaliza, é rizomática. Vida feito raiz, é apenas um rabanete, um nabo, uma cenoura, uma beterraba... vida rizomática se espalha e toma o terreno, faz a volta em suas bordas e se perde nos confins do mundo, tramando redes, tecendo teias.
Tomo liberdades com as palavras... componho-as... decomponho-nas... invento-as... desinvento-nas... tenho (des) interesse pelo que elas são... interesso-me mais, pelo que não são ou pelo que é dito que não podem ser. Não me apego na fixidez das raízes. Sou, ao mesmo tempo, eremita e tribal.
Aproveito os comentários na postagem sobre a vinda da mais nova pescadora da família diello, para resgatar umas anotações que dormiam esquecidas em meus papéis de embrulho.
Claudinha, vegana, pergunta: pescadora? Sim, Claudinha, uma humana pescadora.
Lembro do comercialmente-comercial filme “Austrália” (comercial, mas de uma ímpar beleza fotográfica e de um interessante retrato cultural)... Nuhlah, um pequeno mestiço australiano, cruza de uma mãe aborígene com um inglês explorador, que diante das dificuldades invocava seu avô aborígene (Rei George) que orientava sua vida e lhe ensinava a ser mágico, a ser mago, a ser gullaca. Eis o que me vem da mágica dos nativos, dos negros, dos índios de todas as terras: não se pode aprender um modo de vida sem aprender a vida, sem entender a vida... é necessário entender para conhecer: isso nos faz mágicos! Mágico é aquele que aprende os caminhos que lhe ensinam por condição cultural e depois vai fazer a sua própria vida, a sua própria caminhada, a sua própria existência, o seu próprio percurso.
Quando quero cartografar olho para as coisas, para os espaços, para as pessoas, com as chancelas do meu pensamento sempre abertas e tento ver a vida ou a falta dela, a vida que circula. Cartografar é uma experiência mística... é essa coisa de olhar para o que circula dentro e entre as coisas, os espaços, as pessoas.
O pescador é o cartógrafo que traça o mapa incerto da vida da natureza. E quando falo de pescador é no mais absoluto sentido poético e literário que o termo possa significar. Falo da condição de pescador como um modo de vida. Não o modo de vida predatório, mas o modo de vida indígena, afeito e afetado pelas coisas e pelos movimentos da natureza. O pescador reconhece os sinais da água, do vento, da chuva, do sol, da lua, dos pássaros, dos peixes, da vida. O pescador respeita os ciclos dos peixes e da natureza.
É disso que falo quando me refiro às histórias que a vida de pescadora me fez tramar. Quando saímos para pescar, vamos vendo os movimentos das margens, das águas e dos territórios pelos quais passamos... vamos recolhendo as imagens dos acontecimentos que ali se passaram em outros tempos... há lugares em que outros bichos vão tramando a vida, para além dos peixes... à beira do riacho pouco visitado, as aranhas tecem suas teias formando redes que se perdem em meio às árvores... as plantas vão se fincando onde os acontecimentos da natureza às jogam... as borboletas, que até há pouco tempo estavam quase desaparecidas, formam um colorido e uma vivacidade ímpar... as marrecas do banhado que haviam sumido, hoje voejam aos bandos... os próprios peixes que, em outros tempos, eram dizimados pelos agricultores que abasteciam nos rios e riachos seus equipamentos de espalhar veneno, assim como, espalhavam-no por todos os territórios... as pedras que cedem à força das águas e, tão pesadas, rolam feito plumas... enfim, são tantas coisas...
Foi pescando que aprendi a ouvir o som das águas e som dos ventos. Foi pescando que aprendi que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”. Foi pescando que aprendi que a água, com sua leveza e força, com sua constância, com seu rumo, vai definindo as sinuosidades e as margens do rio. Foi pescando que aprendi os caminhos das águas.
É nessas andanças que vou mostrando para as crianças e para outros adultos, as coisas que já vi acontecerem... mostro a pedreira em que hoje há o lago cuja imagem pinta este blog, de onde foram tiradas as pedras para asfaltar aquela região... isso, na época, se chamava “progresso” e foi feito pela empresa Andrade Gutierrez que, além de fazer esse tal progresso, deixou danos ambientais irreparáveis... há um terreno onde fora instalado um grande depósito de piche e que, terminada a tarefa na região, foi simplesmente deixado sepultado lá... piche que a natureza nunca absorverá! Quando dinamitavam a pedreira, tínhamos que sair fora de um certo raio de distância, pois pedras enormes e pequenas eram lançadas ao longe, sendo que muitas atingiam as casas próximas, assim como, tais explosões afetavam toda a vida no entorno.
É nessas andanças que vamos conhecendo e comendo os frutos do mato... que vamos espalhando sementes... que vamos transversalizando a vida dos peixes, deixando nos açudes e lagos o que interessa para esses espaços e levando para os rios o que interessa à vida dos rios... os pequenos e as prenhas são respeitados, para crescerem e multiplicarem a espécie... que vamos recolhendo restos da natureza para animar os espaços em que vivemos.
Quando o sistema capitalístico encontra sua exaustão, não é do sonho predatório, exploratório e acumulador de nossos antepassados europeus que lembramos... é da cultura indígena que tomamos os referenciais do usufruto da vida e da natureza... é da vida indígena que lembramos ao pensar o não abuso da natureza, a vida coletiva, a sustentabilidade, o cuidado, o usufruto baseado na necessidade e não na acumulação, exploração ou consumo... então, quando falo sobre a condição humana de pescador, refiro-me ao modo de subjetivação, ao modo de vida pescador... não como um ideal cego e absoluto, mas como um modo de vida que pode ser produzido e que produzi em minha existência... e que posso mostrar para os pequenos cujos passos ajudo a andar!

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