DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
LÓGICA DO SENTIDO, ÉTICA DO ACONTECIMENTO - Por John Rajchman *
Era a instituição esmagadora de uma «escolástica pior que a da Idade Média» que Gilles Deleuze via na filosofia francesa do pós-guerra: uma escolástica comentadora da história da filosofia, com suas escolas, suas leituras, suas imitações, que se formaria à volta da fenomenologia e, em seguida, do estruturalismo. Já no seu Empirisme et Subjetivité de 1953 ele procurava uma nova maneira de recomeçar a filosofia. Hume era uma brisa: não o Hume da história da filosofia para quem o inteligível deriva do sensível, mas o Hume para quem a força dos conceitos já se encontrava fora deles. Era já a maneira «inglesa» de recomeçar: não como a tabula rasa à francesa, a certeza de um ponto de origem, mas «retomar a linha interrompida, juntar um segmento à linha quebrada, fazê-la passar num estreito desfiladeiro, ou sobre o vazio, lá onde ela tinha parado». Era já o tornar-se filósofo que se opõe à história da filosofia.
Como sair da «história da filosofia», como caminhar fora dela e inventar novas questões? É esta procura de uma outra «imagem do pensamento» que Deleuze perseguirá em toda a sua obra através de uma fabulosa colagem de saberes, de escrita, de pintura, de cinema e de políticas. Talvez seja essa a questão do seu idioma, do seu tornar-se singular. «O propósito não é responder às questões, é sair, é sair delas.»
Sair da «história da filosofia» é se desfazer da questão hegeliana e depois heideggeriana da sua finalidade. A finalidade da filosofia é um tema triste, uma má questão, não parou de repetir Deleuze. É em Sartre que ele teria visto o «nosso exterior», uma nova maneira de conceber o tornar-se intelectual da filosofia. Quanto a Heidegger, ele perguntaria sobretudo qual era o seu papel na inserção da história da filosofia no pensamento. Como contribui ele para fazer «correr para um futuro do pensamento que teria sido, ao mesmo tempo, o pensamento mais antigo»? Não é a questão do futuro ou do passado da filosofia que devemos nos colocar: é a das suas transformações.
A imagem de uma modernidade massiva e única do nosso pensamento, de um destino que o Ocidente designaria, Deleuze substitui por uma abundância de devires secretos, ínfimos, menores, que agem aquém do que se apresenta como tradição e se arriscam a escapar a qualquer momento. O «destino» da filosofia é a questão dos seus devires singulares e incontroláveis. No pensamento não há nunca fundos em comum; os pensadores não colocam nunca as mesmas questões; não há «senso comum», não há história, mas sim movimentos insólitos, linhas que se entrecruzam de uma forma necessariamente temporária. E preciso, então, conceber a modernidade da filosofia não como uma história ou drama, mas como atualidade e como acontecimento. No lugar de historiar os acontecimentos do pensamento, é a história da filosofia que se terá de, segundo a expressão de Foucault, «acontecimentalizar» («événementaliser»).
Daí que se encontre em Deleuze uma dupla prática: 1- separar as singularidades dos pensadores dos esquemas históricos. «Nunca autores que pareçam fazer parte da história da filosofia mas que escapem por todo e qualquer lugar: Lucrécio, Espinoza, Hume, Nietzsche, Bergson.» 2- fazer das singularidades do pensamento o princípio do seu exercício. Assim, seja num autor ou em sua lógica mesma, é sempre um exercício de pensamento que Deleuze tenta descrever. Perseguindo os acontecimentos do pensamento, Deleuze chega à imagem do pensamento como acontecimento, e é então que a obra de Deleuze se torna, por sua vez, acontecimento.
É raro que um filósofo se interesse pela lógica, e principalmente em França,onde, como dizia Foucault, há muitos historiadores e poucos lógicos. Na filosofia anglo-saxônica, onde a lógica dos predicados e das variáveis ligadas ocupou um lugar de destaque, a particularidade de Deleuze teria sido a de ter se interessado pelos lógicos pré-fregeanos (de Aristóteles, dos Estóicos, de Port-Royal e de Leib-niz) e numa ótica diferente da de Frege. É Lewis Carroll assim como Russell que entram em jogo. Porque a lógica de Deleuze não visa o cálculo; ela convida a um exercício do pensamento: criar novidades nos conceitos. Se na sua «lógica do sentido» não há provas formais nem de demonstrações nem de deduções reguladas, é porque ele coloca uma outra questão: não como formular as regras de um raciocínio «arborescente» ou categórico, não como estreitar formalmente o raciocínio atributivo, mas o que pode ser o pensamento para que aí possam ocorrer acontecimentos, ou novidades singulares? Trata-se não de nos ensinar a raciocinar ou a julgar, mas de tomar o conceito como objeto de criação.
Deste ingenium filosófico, resulta que se chega a outra «coisa» que aquilo que é dado às nossas categorias, nossos conceitos, nosso senso comum. O ingenium, dizia Kant, não consiste em determinar as categorias, mas em emitir as singularidades. Para Deleuze, esta «beleza» não é exclusiva aos julgamentos de gosto, mas torna-se o princípio de toda uma lógica do pensamento. Já que, com efeito, não é nem a dedução nem a indução que regula as transformações dos nossos saberes, são os «estilos de raciocínio» que determinam um domínio e um desenvolvimento possíveis; são racionalizações singulares que levam à resolução o tipo de problemas que elas inventam. A lógica do sentido não é um «outro» da razão, é uma outra forma de conceber a razão e as suas transformações. E necessário opor à imagem «racionalista» da razão como faculdade abstrata, que estabeleceria conceitos ou regras de uma vez por todas e fora de qualquer processo efetivo, a imagem «empirista» de uma multiplicidade cambiável de práticas e de inventividade experimental dos conceitos. O abstrato não é o que explica, é o que há para explicar. O pensamento científico não se reduz ao que chamamos de cognitivo; a lógica da inventividade dos conceitos exerce-se nos cientistas assim como nos pintores, nos escritores, ou nos políticos menores da vida. Deleuze não procura na escrita uma forma de sair da razão; em renovando a arte do pensamento, ele reenvia o pensamento para a arte.
A imagem do pensamento a que nos remete a lógica de Deleuze é, portanto, a imagem de um «todo aberto», de conjuntos etéreos, de discordâncias. Ele retoma à sua maneira o que Duns Scot tinha chamado de uma «estidade» (como o fez Gerard Manley Hopkins): singularidades, idiomas, minorias, discordâncias. As coisas não são unidades ou totalidades. Elas compõem-se sempre destas «estidades» múltiplas. Na lógica do sentido não são, pois, os elementos e os termos que importam, mas sim as relações, as conjunções,as bifurcações divergentes, que mantêm junto o que nos é dado como as coisas. Assim as coisas fugiriam em todos os sentidos, se não fosse pelos foci de unificação, os centros de totalização, os pontos de subjetivação. O princípio da lógica de Deleuze é que estas operações se encontram nas multiplicidades às quais pertencem e não o inverso.
A imperceptibilidade ou a inexprimibilidade das singularidades não é, então, o que está escondido, alienado ou reprimido, e a sua análise não é a procura de uma entidade nem de uma falta constitutiva. E uma arte das superfícies, uma arte dos deslocamentos de onde resulta um outro tipo de inconsciente: o «isto» de «isto e aquilo» que se desloca através de conjunturas complexas. Seguir as singularidades é deslocar constantemente a questão do «é» pela questão do «e». Pensar as singularidades é dizer que há acontecimento no pensamento. Em Deleuze, o exercício da lógica do sentido se liga sempre a uma habilidade e a uma sensibilidade dos acontecimentos. A questão não é: porque há alguma coisa no lugar de nada? mas: como «isto» nos acontece, porque nos acontece isto e não aquilo?
A recorrência dos acontecimentos conforme os hábitos é o problema humano da causalidade. Como o demonstrou Nelson Goodman no seu novo paradoxo da indução, este tipo de hábito supõe sempre sistemas categóricos dos «predicados subtraídos» (entrenched predicates)(NT); transformar não é reunir o que nos acontece sob categorias subtraídas, fazendo aí a abstração da diferença na repetição. É saber ligá-lo numa conjuntura complexa ou diferente onde o conceito vem sempre depois (conforme a fórmula de Proust e os signos). Se o acontecimento não é o que dele pensou Aristóteles, uma história ou um drama, se o acontecimento é sempre inatributável ou imprevisível, não é porque ele não tenha sentido mas porque ele implica uma outra lógica do sentido. Os acontecimentos são singulares, as singularidades acontecimentais. As discordâncias levam a transformar e não a reproduzir ou imitar uma entidade idêntica a ela mesma. É nisto que a transformação se opõe à mimese - a boa e a má -das nossas categorias dadas. Outra lógica, outro tempo.
Trata-se de substituir o tempo intempestivo da atualidade à continuidade e à eternidade. Quando se concebe o tempo segundo categorias fixas ou segundo uma lógica atributiva, ficamos nos perguntando como realizar as nossas abstrações, como continuar as nossas tradições. A estas questões morais da eternidade e do tempo, é preciso opor a questão ética do devir: como ser digno do acontecimento? «Ou bem», diz Deleuze no Lógica do sentido, «a moral não tem nenhum sentido, ou então é isto que ela quer dizer: não ser indigno daquilo que nos acontece».
O acontecimento não chega nunca ao sujeito; é por isto que o sujeito se torna outro que aquele que ele é. Porque ser sujeito se concebe igualmente segundo categorias identifícativas - as categorias da subjetivação. Mas o sujeito não é o indivíduo: esta entidade que não se pode separar ou que se repete sem diferença. E por isto que o acontecimento é sempre «pré-individual». É sempre o distanciamento de si e não a identificação de si que nos acontece. O acontecimento não chega nunca ao nosso «espírito» ou ao nosso senso comum, mas ao nosso outro devir.
A questão de não ser indigno daquilo que nos acontece é a questão estóica de aceitar o destino recusando a necessidade; é a questão da alegria espinozista, que se opõe à triste resignação; é a questão do amor fati nietzschiano. A dignidade opõe-se ao ressentimento, à má consciência, como maneira de prender o que nos acontece. O ressentimento é querer atribuir a injustiça do que nos acontece a qualquer um, à instância que sustentaria os nossos princípios. O mal é o escândalo do pensamento abstrato que procura apreender os seus próprios fins no mundo: como explicar a sua existência nos fenômenos, como pode ser Deus responsável? Mas se o abstrato fica sempre por explicar, se são as multiplicidades que fazem surgir a experiência, o problema do mal coloca-se de outra forma: não como escândalo dos nossos princípios nem como defeito do nosso raciocínio ortonômico, mas como a liberdade de nossos devires singulares.
É na dificuldade desta liberdade e deste devir que consiste a dignidade (e não a piedade) do pensamento de Deleuze: «Fazer de um acontecimento, por pequeno que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de fazer um drama, ou de fazer uma história... Também os grandes acontecimentos não são feitos de outra forma: a batalha, a revolução, a vida, a morte... As verdadeiras entidades são os acontecimentos, não os conceitos. Pensar em termos de acontecimento, isto não é fácil. Tanto mais difícil que o próprio pensamento se torna, então, um acontecimento».
* Professor de filosofia no New Social Research em Nova York. Autor de Michel Foucault, Ia liberte de savoir (Ed. P.U.F.).
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» n? 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
NOTA DO TRADUTOR — Em inglês no texto original
cooperação.sem.mando
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