segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

divulgação: O PLISSADO BARROCO DA PINTURA

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
O PLISSADO BARROCO DA PINTURA - Por Christine Buci-Glucksmann*
Imagine o jogo inicial, infinitamente variado, de três elementos pegos na sua dinâmica pictórica: uma estrutura, aquela das grandes pinceladas uniformes de cor, monocromáticas, disformes e sempre vibrantes; figuras, puros acontecimentos estáticos de corpos deformados, espasmados, habituados a todas as violências e rompendo com seu rio de carne as intenções narrativas ou figurativas da pintura; e finalmente, contornos delimitando um lugar, organizando um espaço fechado e atordoante. Tal seria a aventura de um Bacon segundo Deleuze, uma pintura da Figura e do Grito, um sentir crucificado e convulsivo de onde nasce a inteligência da matéria: uma «lógica da sensação» (1).
Dezessete seqüências então, quase musicais, onde o entrecru-zamento de diferentes planos do sentir e da análise levam a descrição dos quadros e a história da pintura, reinterpretada a partir da arte bizantina e de Cézanne, ao seu ápice. Este abismo, esta plenitude de presença - este «excesso histérico» onde o pensamento corre o risco de se perder em seu silêncio ou na profusão das aparências, caso ele não se meça pelo que se arrisca mesmo na pintura: «De todas as artes, a pintura permanece sem dúvida a única que integra necessariamente, histericamente, sua própria catástrofe»(2).
Mas agora como abranger o caos? E como em filosofia escrever sobre esta pintura de Bacon que rejeita o código lingüístico da abstração visual, sem por isto desposar o informal, apintura-catástrofe e gestual de um Pollock? De onde o paradoxo central de Bacon: construir uma lógica da sensação - um tipo de topologia das forças - naquilo que escapa a toda a lógica conceituai: as sensações colorantes e este furor de esvaziar todo o clichê, toda a imagem pré-pictórica de sua banalidade para fazer aparecer a figura mesma, para além de todo o figurativo. Dos «corpos sem órgãos» de Bacon, os corpos em horrível ou torturado, mas o corpo mesmo da tortura, seu acontecimento aqui e agora.
Porque «a cor está no corpo, a sensação está no corpo e não nos ares. A sensação é isto que é pintado»'3'. No sentido absoluto, se é verdade que a sensação não está nem no objeto representado (um corpo violentado), nem em um elemento empírico isolável (tal amarelo), nem mesmo num simples sentimento, seja ele negativo (suscitar o desgosto ou o horror), ela seria sobretudo o efeito de fronteira, de contexto e de diferença, tal como este suspender camadas finas de matéria saídas do trabalho manual do pintor, que se dá de um só golpe no movimento forçado, pregueado e despregueado, no corpo-carne do Triptych de 1970: Studies of the human body. Uma amálgama de cinza-rosa-negro à Velasquez, repentinamente plissado em um espasmo de violência e de afetos. Do grito como premissa no entrelaçamento de uma incisão verde, surgida do vazio transparente de uma pincelada uniforme alaranjada onde a luz da cor vibra. Corpo intenso, violento e excessivo que agiu diretamente sobre o cérebro.
É por isso que não se saberia analisar aqui a pintura no par estético hegeliano da forma e do fundo. A captar energias invisíveis, ela só pode explorar a radicalidade barroca da diferença material/força em movimento apagando o limite do sensível e do inteligível. Como se o regime da luz, a potência do material forçassem a pensar. E, sem dúvida, a «lógica da sensação» seria ela o avesso de toda uma outra lógica, aquela do simulacro e do trompe-1'oeil. A se construir num teatro de matérias sem espetáculo mas não sem testemunha, o acontecimento pictórico conduz a alma no atordoamento do corpo, nas «pregas da matéria» em seu hystéresis (4). A força insensível daquilo que faz gritar em uma «figura sem horror» que não parece menos horrível. O grito «à morte» de Tosca ou de Lulu...
Histeria e carne da pintura: os termos de Deleuze, em seu equívoco, não devem deixar pensar que a lógica da sensação se releva de uma fenomenologia da «carne» do mundo no sentido de Merleau-Ponty (a despeito de quaisquer proximidades), nem com mais razão de uma lógica freudiana. Toda sensação remetendo a uma força fará do corpo o material da figura. Suas leis são os ritmos plissando os corpos e os submetendo a energias plásticas de desagregação, de deformação ou de isolamento. Toda uma «concepção muscular da matéria» já próxima de Leibniz(5).
Também, se o ser é prega, suas dinâmicas se repartem nestes dois andares próprios à alegoria da «casa barroca»(6). Aquele dos corpos em baixo com suas cavidades violentas («prega da matéria») e aquele das almas no alto, em sua ascensão alada toda espiritual, como no quadro de Greco, O enterro do Conde de Orgaz. Mas, à diferença da glória (defunta) do barroco, os corpos de Bacon caem infinitamente e a elevação não é mais religiosa: o aéreo não toca mais que as pinceladas uniformes de cor onde a luz cria o ritmo e a melodia, como no misticismo luminoso de um Rothko.
Desde então, neste mundo saturado de forças, a visão pictóri-ca, sempre para além do único ver ótico, não saberia surgir de um vazio, de um Olhar castrado, da «voyure» no sentido de Lacan. Se a pintura é bem «histérica», o olho da pintura, o terceiro olho, não é jamais ótico mas áptico. De haptein, tocar. Tocar com os olhos, ver o mundo como um tecido, uma textura, um papel plissado, um tecido veneziano.
E compreenderemos então que esta visão tátil e multisensível do Olhar reconduz a matriz dos três elementos de Bacon ao que o unifica e o organiza: a cor no sentido muito forte de Goethe no seu Tratado. A cor, como potência de clareza e energia, tato do ver e capacidade musical. Cores - cores fluidas de figuras, cores-estruturas e forças de pinceladas uniformes, cores-linhas: a lógica das sensações não é senão a análise dos regimes de cores, de suas modulações e de seus diferenciais. Tal seria o fundo da lição de Cézanne para Bacon: uma lógica colorida do abismo, com toda a potência formal do material.
Que uma tal lógica desempenha um papel privilegiado e limite na obra de Deleuze é certo. Porque ela se confronta em permanência ao «mal» da matéria, à sua catástrofe, ela seria um tipo de ponto entre a Lógica do sentido com suas figuras, acontecimentos e paradoxos e esta outra lógica toda leibniziana, do último livro: Le Pli (Leibniz et le Baroque). Mania de Deleuze: como constituir uma lógica das singularidades que não deixe jamais o sentido sem se confundir com ele. Mania do barroco: nas retóricas de Gracian ou de Tesauro,o conceito não é jamais conceito, ele não deixa mais a «carne» da língua e do mundo, procedendo por analogia e metáfora, dissonância e consonância em uma «nova harmonia».
Talvez a lógica da sensação remeta já àquela da Prega. Os corpos-pregas e tormentos desta violência vinda da Irlanda não param de evocar o traço fundamental do barroco segundo Gilles Deleuze: «A prega que vai ao infinito», a forma em suas inflexões, suas modulações, suas variações, se esgotando para fazer renascer sempre a fenda e o buraco(7).
Um barroco do pleno, do desdobramento sem fim onde as maneiras remetem ao teatro das matérias em ausência de toda a retórica e efeitos de língua. Uma lógica sensível e do sensível, inventando, como Deleuze em sua escrita, o plissado prometendo um novo tipo de expressão: «a entre-expressão, prega segundo prega». Uma loucura de pregas, o incomensurável e a desmedida do mundo-prega. Que um tal paradigma maneirista e musical duplifique uma dinâmica barroca das forças explica sem dúvida a pregnância de uma lógica de duas entradas que abre e fecha a prega: «dois andares» do barroco. Como se o livro-labirinto de Deleuze irradiasse a partir de um ponto selado. Certo, tudo é ponto de vista, multiplicidade e perspectiva. Mas, como em certos jogos, só há duas entradas para atingir um centro ausente: pregas da matéria onde cada forma se inclina, se espasma, se metamorfoseia e se anamorfisa, até o adormecimento, o desmaiar das marcas mudas. E pregas da alma, onde todo o real de um mundo submetido ao princípio da razão retorna a cada coisa espiritual (as «mônadas») em uma série de acontecimentos que ela inclui. Inflexão e inclusão, duas faces distintas e idênticas de um mesmo mundo e entre, no Entre-dois-plissado, todo o entrelaçamento infinito das analogias entre a alma e o corpo. Talvez a pintura, que Bacon diz ser «linguagem analógica» por excelência, exploraria este «entre as pregas» misterioso, sempre ao limite de...
Da Pintura-Grito de Bacon a estes curiosos «gritos-premissa» de um Leibniz, a mesma coisa não diferindo senão pela maneira? A pintura seria então este grande maneirismo de corpos desenhando a grande dramaturgia das almas pelas suas posturas, a fluidez de sua matéria e o fundo sombrio de suas «pequenas percepções». Estes pequenos azuis de Cézanne ou estes pequenos rosas de Bacon...
No fundo, isto é o barroco segundo Gilles Deleuze: «O esplêndido momento onde se mantém qualquer coisa mais do que nada» (8). A última glória de um mundo pirâmide e cúpula, conjurando o vazio em sua ponta luminosa e conceituosa, sem outro pecado que este ódio-furor de Deus próprio aos condenados, toda esta «raiva da razão» que freme no plissado barroco dos corpos de Bacon e o trançado também denso que secreta a escrita da Prega. «A alma na ponta dos dedos» dizia Diderot, tais as últimas vibrações sonoras de uma Ópera do pensamento: seu sutil-sublime e seu ouvinte-ver. In furore...
* Filósofa e diretora do Collège International de Philosophic.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» nº 257, set./1988. Tradução do francês por Carmen Bello.
NOTAS
1. Francis Bacon. Logique de Ia sensation. Ed. de la Différence.
2. Idem, p. 67.
3. idem, p. 27.
4. Sobre esta histeria da pintura, cf. o capítulo VII e, mais particularmente, a p. 37 ("com o pintor, a histeria tornou-se pintura") e p. 41 (sobre o Grito).
5. Francis Bacon, capítulo III: o atletismo e Le Pli. Leibniz et le baroque (Ed. Minuit) p. 6 e ss.
6. Le Pli, pp. 7,41, 133 e ss. "O que é propriamente barroco é esta distinção e repartição de dois andares."
7.Le Pli,p. 51.
8. Le Pli, p. 92.
cooperação.sem.mando

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