quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - A FISSURA DO PENSAMENTO

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
A FISSURA DO PENSAMENTO - Por Jacob Rogozinsky *
«Se perguntarmos por que não bastaria a saúde, por que a fissura é desejável é porque, talvez, nunca pensamos a não ser por ela e sobre suas bordas e que tudo o que foi bom e grande na humanidade entra e sai por ela, em pessoas prontas a se destruirá si mesmas e que é antes a morte do que a saúde que se nos propõe.» (Gilles Deleuze, Lógica do sentido).
«Um clarão se produziu que leva o nome de Deleuze (...). O pensamento é de novo possível (...). Talvez, um dia, o século seja deleu-ziano.» (1) Para um finalista de segundo grau que, pouco depois de maio de 68, descobria a filosofia através de Deleuze, esta homenagem de Foucault a seu amigo não continha nada de excessivo. Lógica do sentido e Diferença e Repetição eram o próprio pensamento, súbito e original, no seu relâmpago. Eis o que nos tirava do insípido Manuel de philosophie de Armand Cuvillier (2º volume: o Homem, o Direito, a Razão, os Valores, o Espírito...). Com Deleuze, tudo se tornava problemático, digno de questão. Cada questão se dramatizava em anedotas vitais que davam carne à filosofia. E cada problema se ramificava, ricocheteava de uma série textual a uma outra, des-bordando por todos os lados o território tradicional da filosofia. Humpty-Dumpty e o cálculo infinitesimal, as vértebras da tartaruga e o alcoolismo de Fitzgerald, as ligas de Kant e os gritos-sopros de Artaud: tantos desafios para o pensamento. Na hora em que os Cuvilliers estão de volta e proliferam, é bom encontrar Deleuze, seus labirintos borgesianos, sua audácia e seu humor. E esta promessa de uma Grande Saúde que atravessa em surdina todos os seus livros.
Clarão, dizia Foucault - justamente. Na condição de precisar que é o pensamento como tal que fulgura, que cada obra e cada vida nascem sempre de uma paixão. A meteorologia nos ensina: o relâmpago é uma diferença de potencial. Ele irrompe no ponto de contato de duas zonas de intensidades diferenciais, «precedida por um precursor sombrio, invisível, insensível, que determina antecipadamente o caminho inverso, como num vazio»(2). Acontece o mesmo com todo o efeito de sentido, que põe em jogo pelo menos duas séries diferenciadas e a acoplagem destas séries, reunidas por seu «precursor sombrio», por um ponto X móvel que faz ressoar sua diferença: «Quando a comunicação é estabelecida entre séries heterogêneas (...), alguma coisa «passa» entre os bordos; irrompem acontecimentos, ful-guram fenômenos, do tipo relâmpago ou raio»(3). A tarefa do filósofo seria de transcrever estas fulgurâncias: descrever os diversos modos de engendramento do sentido, tal como ele se operacionaliza nos pontos de cruzamento das séries divergentes, nos sistemas psíquicos e nas obras de arte, nos problemas da ciência e nas questões da filosofia. Programa que pressupõe a elaboração de um método serial, apoiado por um novo conceito de diferença, irredutível à lógica formal e à contradição dialética (4). E que reclama, por antecipação, redução radical do sentido, uma destruição das identidades metafísicas que pretendem deter o princípio do sentido. Porque o sentido nunca é dado: ele não está dissimulado numa Origem transcendente, Deus escondido ou Homem alienado, nem exibido na certeza tranquilizadora do senso comum. Tal é a «boa nova» de que Deleuze faz eco: «O sentido não é nunca princípio ou origem (...), ele deverá ser produzido por um novo maquinário»(5), depois a instância paradoxal, insensata, do ponto X - palavra-valise ou a carta roubada - que percorre as séries e as faz entrar em ressonância. A doação do sentido se efetua, assim, a partir do não-senso, «numa região que precede todo o bom senso e todo o senso comum».
Bom senso e senso comum definem, com efeito, a ortodoxia, «a imagem dogmática do pensamento» que se trata de desmantelar. Se o bom senso é o princípio de distribuição que repartiu as determinações segundo as suas parecenças, fica para o senso comum a tarefa de levar a cabo a sua identificação, de fundar a identidade do Eu e do objeto assegurando o acordo das nossas faculdades de conhecimento. Assim se constitui o universo da representação, reino das distribuições sedentárias e das identidades fixas, dominado pelo Eu, o Mundo e Deus. Mas o exercício do pensamento como paixão do paradoxo exige um outro regime das faculdades, que rompa a sua harmonia estável no senso comum e saiba «levar cada faculdade ao ponto extremo do seu desregulamento» (6), abrir «às distribuições nômadas e às anarquias coroadas», ao jogo divino de onde nascem as Idéias. O que lhe importa quebrar, antes de tudo, é a identidade do Eu, forma suprema da representação. O pensamento deve realizar este egocídio, esta dissolução do Ego, que não o leva, no entanto, a um Fundo anônimo e indiferenciado, mas lhe dá acesso a um campo «de individualizações impessoais e de singularidades pré-individuais (...), onde se elaboram os encontros e as ressonâncias (...), que desborda a representação e faz advir os simulacros» (7)
A história da representação é a de uma longa peregrinação, de um esforço infatigável para reprimir a diferença, para impor o primado do Mesmo e do Semelhante, da Origem e do Modelo. Velha doença da filosofia ocidental: começa com Platão, com a sua decisão de privilegiar a cópia, ou seja, a imitação semelhante, e de descartar o simulacro ou fantasma, «imagem diabólica» que duplica o Modelo e subverte a sua hierarquia. Desde logo, «inverter o platonismo significa isto: negar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos» (8). É este «mergulho» jubiloso, este «caosmos», que Nietzsche tinha em vista sob o nome de eterno retorno. Segundo Deleuze, não se trata de uma repetição cíclica do idêntico, mas de um «eterno retorno do outro», onde somente a diferença é afirmada(9). Em um universo onde «tudo se tornou simulacro», cada figura não pode advir senão simulando e repetindo todas as outras, destinada assim a voltar eternamente, como imagem de uma infinidade de imagens passadas e futuras. O que se repete, então, não pode ser a semelhança das cópias, mas a disparidade dos simulacros multiplicando infinitamente sua divergência. A afirmação de eterno retorno é «produção da repetição a partir da diferença»: ela requer um novo conceito de repetição, e uma nova forma de pensar o tempo onde esta repetição se desenrola. O retorno do mesmo se organiza sob o primado do presente. E a ordem regulada de Cronos, para quem «só o presente preenche o tempo», envolvendo nele futuro e passado. A repetição afirmativa da diferença leva a uma «outra leitura do tempo», que a liberta da sua doença crônica. Deleuze chama Aiôn este tempo «sempre já passado e eternamente ainda por vir» que excede o horizonte do presente(10). À primeira vista, Aiôn parece uma criança da Memória. Longe de repetir o mesmo presente na ordem da recordação, este faz ressoar o instante «do fundo de um passado que nunca foi presente». É assim que, em Proust, Combray ressurgiu, imemorial, no sabor da madeleine, com o esplendor de uma lembrança que nunca foi vivida(11). Portanto, não é na reminiscência do passado mas depois do futuro que o Aiôn vem quebrar o presente. Como eterno retorno do outro, como potência destruidora e seletiva, ele rompe com o conjunto do presente e do passado, não repetindo senão o novo, «não faz retornar senão o tornar-se». O Aiôn é o Instante sempre tornando-se onde todos os círculos do tempo se cruzam. E o «tempo fora de seus gonzos» de que falava Hamlet, o «tempo dilacerante» de Hölderlin: aquele do corte, do «acontecimento único e formidável» - assassinato de Laio ou Grande Meiodia de Zaratustra - onde se dividem violentamente o Antes, o Agora e o Depois. Forma vazia do tempo, fissura silenciosa da pulsão de morte, onde o herói deve arriscar sua identidade, sua saúde e sua vida para retornar, enfim, transfigurado, no clarão do eterno retorno (12).
Talvez nos seja sempre necessário escolher entre a idiotice do senso comum e a loucura do pensamento que eleva as questões e desperta as idéias. «Pode-se dizer que, em toda a questão, em todo o problema(...) há forçosamente qualquer coisa de louco»(13). Com efeito, questões e problemas «não são atos especulativos», mas acontecimentos, dramas que afetam os corpos e transtornam as vidas. Eu sou um ser humano ou um animal? Um homem ou uma mulher? Um vivo ou um morto? Estas questões, que constituem o tormento do psicótico ou do neurótico, testemunham enigmas da individuação, bifur-cações aleatórias que decidem a nossa vida. A loucura se vê, então, investida de uma dignidade ontológica. Com o preço do sofrimento, ela explora os labirintos do não-senso onde nasce o sentido. Diferente da redução fenomenológica e da desconstrução heideggeria-na e derridiana, a redução do sentido teorizada por Deleuze não se pode limitar a uma operação intelectual ou a um trabalho de leitura textual. Ela é solidária com desastres do pensamento e catástrofes vitais: já que o corte do Retorno implica a fissura do Eu, e dissolução do sujeito, levado por um «devir-louco» onde toda a identidade se perde. E o reverso sombrio da «boa nova» deleuziana, que faz advir o sentido o mais próximo do não-sentido, sobre uma superfície frágil, sempre ameaçada de recair no caos das profundezas. As mais belas páginas de Lógica do sentido descrevem, sob diversas formas, esta «falência da superfície»: seu mergulho esquizofrênico na língua convulsiva de Artaud ou a viagem alcoólica da fissura em Lowry e Fitzge-rald (l4). O pensamento nasce de uma paixão, no bordo da fissura. Mas se a sua fenda se aprofunda e se agrava, se sua falha incorporai aí se vem encarnar, é então a superfície toda inteira, e a possibilidade mesma de pensar, que se afunda no sem-fundo.
Como é possível duplicar ou mimar esta efetuação mortal do devir-louco por uma «contra-efetuação que a limita, a joga, e transfigura» (15)? Como percorrer a fissura em toda a sua amplitude e sua crueldade, até o ponto onde ela cruza o corte do Aiôn, onde ela vira e se deixa levar no caminho do eterno retorno? O que poderia significar, para além da fissura, a promessa de uma Grande Saúde que seria «nossa maneira própria de ser piedosos»? É a estas questões, entre outras, que nos levam os caminhos do labirinto deleuziano.
* Diretor de programas do Collège International de Philosophie. Participou nas recolhas de Du sublime (ed. Belin).
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» n? 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
NOTAS
1. M. Foucault, Theatrum philosophicum, «Critique», 1970.
2. G. Deleuze, Différence et Répétition, p. 156.
3. Ibidem, p. 155, cf. também p. 286-7: «Tout phénomène fulgure»...
4. Sobre a diferença, cf. Ibidem, p. 43-95 etc. A melhor exposição do «método serial» por Deleuze está no seu texto intitulado A quoi reconnatt-on le structuralismé? na L'Histoire de la philosophie dirigida por F. Châtelet, Hachette, 1975, t. VIII, p. 299-334.
5. G. Deleuze, Logique du sens, p. 89-90.
6. Différence et Répétition, p. 186. Sobre «a imagem do pensamento», cf. ibidem, p. 169-217. Sobre o uso paradoxal ou discordante das faculdades, ver p. 180-92. Deleuze refere-se aí à concepção kantiana do sublime como «acordo discordante» das faculdades.
7. Ibid, p. 355. E preciso reparar que a redução do Eu não equivale à sua destruição, pelo contrário, ela deve permitir a descrição da gênese do Eu e do indivíduo a partir de uma rede de singularidades préindividuais, de estruturas e de acontecimentos de sentido, cf. p. 56, 327- 333 etc. Sobre a demarcação entre superfície e fundo in-diferenciado, ver Logique du sens, p. 124, 130, 166...
8. Différence et Répétition, p. 92. Sobre Platão e o simulacro, cf. também ibid. p. 165-8 e Logique du sens, p. 292-307.
9. A demarcação entre as duas interpretações do retorno nietzschiano - o eterno retorno do mesmo, ainda tomado no nihilismo metafísico, o eterno retorno do outro, «diferencial» e seletivo - é o motivo essencial do pensamento de Deleuze desde seu Nietzsche et laphilosophie, PUF, 196.2, p. 52-5, 77-82... Ver também Logique du sens, p. 302-6, 344-9 e Différence et Répétition, p. 80, 151-2, 165, 377-384...
10. 'Aiôn contra Cronos (...). No lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem em cada instante o presente {Logique du sens, p. 192-4), cf. também p. 77-82.
11. Sobre esta repetição diferencial na memória, cf. as belas páginas de Différence et Rêpétition,p. 108-15. Sobre a «lembrança imemorial» proustiana ver p. 115 e 160, que retomam as análises de Proust et les signes, PUF, 1964. cap. V.
12. Sobre a «terceira repetição» como corte do instante e fissura do instinto de morte, cf. Différence et Répétition, p. 116-26, 146-152, 374-9.
13. Ibid, p. 141-3, que esboça, a partir de Lacan e Leclaire, uma «teoria da neurose e da psicose em relação com a noção de questão como categoria fundamental do inconsciente». Podemos lamentar que, a partir de L'Anti-Oedipe, Deleuze tenha abandonado esta direção de pesquisa...
14. Sobre Artaud, Logique du sens, p. 101-14; sobre Fitzgerald, p. 180-9. Cf. igualmente as p. 174-9(sobre a ferida em J. Bousquet)e 373-86 (a fissura na obra de Zola)
15. Logique du sens, p. 188.
cooperação.sem.mando

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