quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - A VIDA FILOSÓFICA

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
A VIDA FILOSÓFICA
Por François Regnault*
Um grande filósofo é aquele que convence seus leitores, seus ouvintes, a levar doravante uma vida filosófica. Gilles Deleuze os convence. Não é necessário que todos tenham êxito nisso, é suficiente que todos que o lêem ou que o ouvem percebam que tal vida lhes está doravante aberta. Há acentuações da voz que são um tal convite implacável e terno, há uma tensão do estilo que é tal direção do pensamento irreversível e gentil, há o próprio pensamento, que é tão estranho e tão lógico que, à medida que cria seus problemas e lhes encontra por conseguinte novas soluções, efetua inversões no pensamento em geral - se descobre então aue há uma tal vida e na nossa própria - e nos apercebemos então de que em geral pensávamos. O leitor, o ouvinte se dizem: «Mas não devo viver segundo outras representações?» Por que toma ele então esse convite suposto do filósofo para pensar de outro modo como um pensamento que implica também sua própria vida?
Depois de tudo, podemos nos dizer kantianos ou hegelianos sem que viver kantianamente ou hegelianamente tenha um sentido. Mas há filósofos - Platão, Espinoza, Nietzsche - que parecem se não demandar, pelo menos recomendar uma vida como a deles, direta ou não, imitativa ou transposta. Que é uma vida filosófica?
Esse não parece ser, afinal de contas, um conceito deleuziano, se bem que o de vida seja de aspecto recorrente (assim como o de «plano de vida» a propósito de Kleist, Mille P/ateaux, p. 328). E nada do que é talvez a vida de Deleuze está aqui em questão, porque não mais que os grandes nacionalistas (salvo Descartes) ele não foge à epígrafe extraída de Bacon por Kant e colocada no início de sua Crítica da razão pura: «De nobis ipsis silernus: de re autem, quae agitur, petimus...» Gilles Deleuze não diz eu, diferente, por aí, senão de Platão, que diz «Platão», ao menos de Espinoza, que diz eu por vezes, e de Nietzsche, que faz seu ecce homo.
Se esclarecerá portanto essa promessa de uma vida filosófica como há em Proust «promessa de felicidade» - da qual cada livro de Deleuze parece renovar a ocasião, a partir da questão de saber para que serve a filosofia. Deleuze sempre disse ou pensou: «Se você crê que a filosofia não serve para nada, não a faça».
É curioso que aqueles que organizam o debate atual, demasiado atual, sobre o fim da filosofia, os mesmos que também instruem, parte civil ou advogados de defesa, o processo do Grande Culpado, não ponham quase esta questão. Pois, a supor que ela não serve para nada, haveria pouco interesse em que continue e, se morta, nenhum luto a carregar.
Ora, Gilles Deleuze, como prova o movimento pelo próprio movimento, não experimenta o fim da filosofia como um problema (filosófico); ele comprova que se pode não ser heideggeriano, e que a filosofia não é um objeto de processo (parece o único hoje, juntamente com Alain Badiou). Ninguém duvida que ele acha a filosofia útil, contra as angústias exibidas, e mesmo agradável, contra as paixões tristes. Mas útil em que, agradável a que? A filosofia serve para pôr problemas e lhes encontrar soluções. Se lhe atribuirá de início o que ele atribui a Bergson: «Produzir a prova do verdadeiro e do falso nos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação ao nível de problemas» (Le Bergsonisme, p. 3). E, mais geralmente: «O problema é o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético no verdadeiro... Uma produção do verdadeiro e do falso pelo problema, e na medida do sentido, tal é a única maneira de levar a sério as expressões «verdadeiro e falso problema»» (Différence et répétition, p. 210).
Se concebe portanto que alguns amigos - os amigos fazem o filósofo - se apliquem em situar Deleuze hoje, mas o problema seria logo falso se se tratasse de medi-lo na conjuntura atual, suposta maior que ele. Os livros de Deleuze são mais intensos que a conjuntura atual, que uma conjuntura em geral, que releva sempre da ideologia. A importância de Deleuze, como a de todo filósofo autêntico, consiste em que, à diferença da maior parte dos filósofos de hoje, ele não encontra, onde quer que vá, nada que seja da ordem da ideologia. Não se encontra portanto em volta de um tal filósofo a não ser que se dê o passo de ir até ele, o gesto de o achar. Se não, ele o deixa tranqüilo e segue sua vida real.
Em sua via única, Platão acreditava tão bem dizer: os filósofos são reis.
Um filósofo faz sempre sistema; para começar: segundo seu desígnio, ou para terminar: pela operação dos epígonos, mas um filósofo pode também não ter desígnio sistemático senão em seu método: Deleuze segue um método. Se vê pacientemente, de livro em livro, o animal tirar suas próprias linhas, de força ou de reserva: «É talvez um dos caracteres mais importantes do rizoma, de ser sempre de entradas múltiplas; a toca nesse sentido é um rizoma animal, e comporta por vezes uma clara distinção entre a linha de fuga como corredor de deslocamento, e os espaços de reserva ou de habitação» {Mille Plateaux, p. 20). Ora em praça pública, Deleuze passa, destrói as filas de espera diante dos falsos problemas, e desaparece, ora se o supõe assiduamente dentro de casa, fabricando um verdadeiro problema. Sem dúvida o método é melhor explicado em Rhizome, o grande achado que está no início de Mille Plateaux, e sem dúvida o rizoma, contra a árvore e contra a raiz fasciculada, orienta o leitor para uma representação da vida; e sem dúvida ainda, se o método de Deleuze consiste também em tomar as coisas pelo meio, e não pela origem ou pelo fim, será de interesse, para conhecer seu pensamento, começar pelo meio, que se pode situar ainda no Mille Plateaux. Mas trata-se de conhecer o pensamento de Deleuze? Se procederia erradamente se se tomasse esse artigo {rhizome) e talvez também os textos que o circundam como um posicionamento, como uma chave. Portanto se procederia também erradamente se se fizesse o mesmo com o presente artigo, e talvez também os que o circundam, aqui mesmo, tomando-os como um posicionamento, como uma análise. Deleuze o diz sem cessar: não se escreve nada sobre nada: «O livro não é a imagem do mundo» {Mille Plateaux, p. 18).
Aliás, acredita-se francamente que, de preferência a ler todas estas segundas mãos, não valeria mais, afinal de contas se ainda não se o fez, começar com Nietzsche e a filosofia, Espinoza e os signos ou A Imagem-Movimento e descartar o Dossier Deleuze? Não se põe portanto aqui nada com precisão, não se dá a chave, e então qual é a utilidade? Que aprovação? Ou que aborrecimento! Se considera novamente que, se método há, não é tal que suponha começo, desenvolvimento e fim. O que acarreta que não há um só livro de Deleuze que deva ser lido antes do outro, nem na ordem, nem mesmo que se inscreva de modo determinado numa trajetória, nem que deva ser preferido por uma razão arborescente. O rizoma aplicado ao rizoma não faz jamais senão rizoma. O que se espera portanto efetuar, por sua vez, não é senão fazer rizoma. E menos que alguma dobra, que se arriscaria e que se diferenciaria sobre a linha mesma que se percorre.
Se poderia, de outra maneira, cortar curto, e recusar o rizoma; se distinguiriam então:
— Os cortadores de cabeças (ordem da árvore, da raiz): se dirá então que há os livros anteriores a Guattari, os livros com Guattari e os livros depois de Guattari. Os anteriores e posteriores a Guattari, justamente bons livros de filosofia; com Guattari: uma escritura formidável. Os outros antes e depois de Guattari: um autêntico filósofo. Com Guattari: algo como uma alteração da personalidade (como disse Lagache). Em realidade, é preciso tratar o encontro com Guattari como, em Comment c'est de Beckett, aquele com Pim: «Como era, eu cito antes de Pim, com Pim, depois de Pim, como é três partes eu digo como eu o ouço».
Se dirá portanto: «Período feliz à sua maneira, segunda parte se fala da segunda parte com Pim como era de bons momentos para mim, se fala de mim, para ele também se fala dele, também feliz à sua maneira eu o saberei mais tarde, eu saberei de que maneira sua felicidade eu a terei, eu não tive ainda tudo».
— Os cortadores de estilos (ordem da raiz fasciculada): se fragmentará a obra em filosofia pura, obra sobre tal ou tal filósofo, livros sobre a literatura, sobre a arte, sobre a política etc. De um lado, Diferença e repetição, do outro, Espinoza, do terceiro, Francis Bacon etc. Outras repartições seriam possíveis. Mas seria não conhecer senão um estilo, «é precisamente o procedimento de uma variação contínua» {Mille Plateaux, p. 123). Parece com efeito que a exposição da linguagem como fluxo se encontra no Kafka, que o livro sobre cinema efetua, conclui o bergsonismo, que o livro sobre Proust é uma teoria dos signos, que a Lógica do sentido aumenta indiferentemente, ou antes, diferencialmente, filosofia, literatura, psicanálise, poesia, antropologia etc.
Resta portanto afirmar a perseverança de uma obra de ponta a ponta filosófica, que coloca no mesmo plano de consistência todos os indivíduos que ela cruza sobre seus mapas, ou as multiplicidades cujas linhas de força ela revela. Entendo por indivíduo tanto Kafka tomo o corpo-linguagem de Klossowski, por multiplicidade tanto tal ou tal devir como os signos em Proust. E mesmo, se dirá melhor ainda que Kafka ou Proust são multiplicidades no plano Deleuze, enquanto que signos e corpos, eterno retorno e estribilho, nisso terão funções de individuações.
Resulta disso que nos «primeiros» livros não se quererá ver pré-figurações da lógica rizomática, mas essa lógica mesma em ação, e ainda menos nos livros recentes - um retorno à filosofia (Foucault, o Leibniz, anunciado), ou ainda um retorno ao ponto de vista filosófico sobre a arte (Francis Bacon, A Imagem-Movimento, A Imagem-Tempo), mas por toda a parte e sempre livros de filosofia atravessados no caso presente pelo que se chama literatura, arte, cinema, e redobrados sobre o que se chama a filosofia - cuja lógica implicante ou transversal supõe em realidade que, alguma linha que lá se trace, alguma individuação que lá se forme, algum fluxo que lá se corte, a consistência filosófica lá se torna paralela a si mesma.
Que é a filosofia? Se vem de defini-la por essa consistência mesma. Tudo que vem aí figurar, aí se revela consistente segundo um método, pois que o método consiste em constituí-la a cada vez em problema, com sua solução. Contudo, não se poderia crer extrair o próprio da filosofia de Deleuze por oposição à filosofia em seu conjunto, ou a uma tradição filosófica, ou a correntes filosóficas. A questão é mais complicada: ela está em Deleuze, a propósito de todo grande filósofo sempre nestes termos: X é aquele que introduziu os conceitos a, b, c... na filosofia. Assim Nietzsche e o eterno retorno, Bergson e a duração que não estava lá etc. Segundo uma outra perspectiva, Proust propõe uma nova concepção do signo (da série do grupo) em filosofia, Kafka, uma outra concepção da linguagem etc. Segundo uma outra ainda, o cinema efetua na filosofia uma nova experiência da imagem, do tempo, Francis Bacon, uma nova experiência da sensação etc.
Antes de X, portanto, a, b, c... não estavam na filosofia. Mas a filosofia existia então? Importa essencialmente responder sim e sustentar que a filosofia depois de Platão é isso dentro de que se deve introduzir o que pensou tal filósofo, propôs tal artista, efetuou tal arte, experimentou tal política, tal ética, tal prática. Daí a necessidade quase constante de inverter o platonismo correlativo da questão, porém certamente não de sair dele. Nisso o método de Deleuze se diferencia de toda tentativa pré-socratizante ou outra, de retornar a qualquer pensamento anterior ou exorbitante a um suposto gesto catastrófico. Que se reporte ao artigo em certos aspectos tão central (diria um lógico arborescente): «Inverter o platonismo», remanejado na Lógica do sentido. Se poderia dizer parafraseando Pascal («a justiça sem força é contestada, porque há sempre malvados»): a filosofia sem a potência do falso põe sempre falsos problemas, porque há sempre platônicos. («É preciso portanto colocar juntas a justiça e a força; e para isso fazer que o que é justo seja forte, ou que o que é forte seja justo»): é preciso portanto inverter o platonismo, e colocar juntos os simulacros e os fantasmas (potências positivas do falso) com os ícones e cópias (potências negativas do falso); e para isso, fazer que o que é cópia seja simulacro (lógica deleuziana do sentido), ou que o que é simulacro seja cópia (lógica denunciada do significante).
Se reconhece aí o caráter deliberado, decisório, desse método: «Consideremos as duas fórmulas seguintes: , < Só as diferenças se parecem >. Trata-se de duas leituras do mundo, na medida em que uma nos convida a pensar a diferença a partir de uma similitude ou de uma identidade prévias, enquanto que a outra, ao contrário, nos convoca a pensar a similitude e mesmo a identidade como produto de uma disparidade de fundo. A primeira define exatamente o mundo das cópias ou das representações; ela põe o próprio mundo como representação. A segunda, contra a primeira, define o mundo dos simulacros, ela põe o mundo como sendo ele próprio simulacro»(1).
Em Platão, a inversão será fácil. Se pode mesmo dizer que se divertirá loucamente nesse exercício, pois que a tese de Deleuze sobre o humor platônico é que Platão realiza já a sua própria inversão. Do mesmo modo, se está à vontade para inverter o platonismo nos grandes antiplatónicos: Lucrécio (contra o Ser, o Uno e o Todo), Espinoza (contra o Bem, o fim etc), Nietzsche (em nome de novos valores), Bergson (segundo sua concepção antigrega do tempo) etc. Em troca, se aborrecerá em inverter o platonismo nos quase - ou símiles - ou pseudoplatônicos: Descartes, Leibniz, Kant, Hegel. Assim, Descartes é criticado por conservar a eminência, a analogia e mesmo a equivocidade {Spinoza et le problème de l'expression, p. 51-2).
Leibniz, por excluir a divergência (artigo citado, p. 433); Kant, por ter somente multiplicado a forma do senso comum, em vez de o inverter (Différence et répétition, p. 179); Hegel, por conservar o infinitamente grande da teologia para além da sua teoria da cisão (Différence et répétition, p. 64).
A dialética hegeliana seria por aí a mais pesada coisa a inverter, um embaraço na filosofia: «A dialética < esquece > sua relação íntima com os problemas enquanto que idéias... ela perde sua verdadeira potência para cair sob o poder do negativo», enquanto que para Deleuze «ninguém melhor que Albert Lautman, em sua obra admirável, mostrou que os problemas eram de início idéias platônicas, ligações ideais entre noções dialéticas, relativas a < situações eventuais do existente >, mas também completamente que eles se atualizavam nas relações reais constitutivas da solução procurada sobre o seu campo matemático ou físico etc» (Ib., p. 212-13). Onde aparece paradoxalmente que é preciso permanecer sempre todo próximo do platonismo para o inverter, e onde essa proximidade implica a possibilidade do diferencial e a virtualidade do redobramento.
Lacan representa enfim o platonismo a inverter na psicanálise se se quer introduzir o inconsciente na filosofia. Se recorda talvez a disputa do inconsciente maquínico contra o inconsciente estrutural, e talvez se considerará que a antifilosofia segundo Lacan (um texto muito curto concernente à universidade de Vincennes) era uma réplica aO Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
Mas hoje, que a psicanálise continua conforme seus princípios, e que a esquizo-análise dO Anti-Édipo não se institucionalizou, conforme aos seus, se perdeu talvez de vista a entrada da disputa. Seria contudo interessante revelar o rigoroso contraponto à orientação lacaniana que constituíram os escritos propriamente psicanalíticos de Deleuze e Guattari, as linhas de fuga se aproximando de tão perto do que elas fugiam que chegavam até a constituir um autêntico negativo: esquizofrenia contra neurose, fluxo contra significante, social contra familial, singularidade contra o eu, lobos contra Lobo etc. Mas guardando absolutamente o inconsciente (maquínico, não significante), em que eles puderam se dizer freudianos contra Freud. Ora, Deleuze, se unindo assim a Guattari, o filósofo com o analista, fazia o que nenhum filósofo desse tempo fez: levar a sério a cura analítica (só Alain Badiou levou a sério a psicanálise, isto é, Lacan de preferência ao dispositivo analítico propriamente dito).
Era preciso curiosidade (Heidegger, por exemplo, não terá tido uma palavra sobre Freud) para admitir a existência do diva, paciência para enfiar o nariz na literatura psicanalítica, muitas vezes espezinhada. Sabe-se aliás que, antes de Guattari (antes de Pim), Deleuze, no dizer de Lacan, tinha apresentado magistralmente a questão do masoquismo no pensamento (Apresentação de Sacher-Masoch). Parece, portanto, que com Guattari, Deleuze tenha dito que ler Freud, ler Lacan, não seria suficiente para pôr verdadeiros problemas filosóficos, se não se fosse com eles até o único real, do qual eles tiravam sua experiência: a cura. Não se teria senão um Freud para a classe de filosofia, ou este Lacan para o filósofo que conquista hoje alguns dentre eles, pois que os outros o ignoram sabiamente (esses mesmos aliás também ignoram Deleuze).
A parada era portanto a seguinte: inventar uma outra análise (a esquizo) para substituir a psico, a fim de que o inconsciente pudesse ser introduzido na filosofia, a fim de que uma vida filosófica fosse compatível com a análise. Talvez apenas Deleuze e Guattari tenham praticado essa esquizo-análise, e talvez alguns de seus leitores: talvez algum esquizofrênico. Se poderá considerar como derrisório, em nome do que Deleuze chamou um dia «a interpretação mais ridícula», ou antes cômica, como eles dizem, que a esquizo-análise permaneça um programa sem dispositivo, salvo aquele do diva vilipendiado. Lhe supor o lugar público ou - porque não - uma máquina especial (Reich tinha inventado uma, mas Deleuze e Guattari mediram a sua inutilidade) teria sido territorializá-la: «A psicanálise reterritorializa sobre o divã» (Anti-Oedipe, p. 375). O único dispositivo produzido poderia ser o sofá de Henry Miller: «Estenda-se portanto sobre o sofá macio que lhe oferece o analista, e trate de conceber outra coisa» (p. 399), o único exemplo de esquizo-análise poderia ser a Recherche du temps perdu. Mas se podia estar atento, nessa empresa de «destruir-destruir» que é a esquizo-análise (p. 379), às duas tarefas que seus inventores lhe determinam: primeiramente «converter a morte que cresce de dentro (no corpo sem órgãos) em morte que chega de fora (sobre o corpo sem órgãos)» (p. 394), em seguida fazer que os grupos-sujeitos revolucionários, que «opõem coe-ficentes reais de transversalidade, sem hierarquia nem acréscimo de grupo» (p. 4l8),não se tornem grupos sujeitados, que substituem as máquinas de desejo por aparelhos de interesse.
Ora, é preciso dizer que, para a segunda tarefa, o desdobramento lhes deu razão para além de suas esperanças. Chamemos aqui um gato de um gato: o tocador de flauta de Charlety reterritorializou todos os ratos na cidade e os conduziu ao Eliseu. Que isso não seja retido contra os ratos, porque não é preciso pensar mal dos ratos,e Deleuze e Guattari fazem uma análise muito bonita do filme Willard em Mille Plateaux(p. 285).
Mas para a primeira tarefa, mais grave, e que concerne à relação com a morte, eu me recordo sempre dessa frase de Lacan que termina o Estágio do espelho: «No refúgio que nós preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite estático do , onde se revela a ele o montante de seu destino mortal, mas não está em nosso único poder de prático levá-lo ao momento em que começa a verdadeira viagem». Se reencontra bem o problema da vida, da morte do fora e não mais do dentro, da vida contra as paixões tristes, da vida filosófica. Se sabe que Lacan se detinha no umbral desse espinozismo que ele chamou de Outra Coisa, não acreditando na beatitude: «Essa posição não é defensável para nós» (a de Espinoza). Mas uma vida filosófica poderia então começar ou ser buscada? Em que consistiria? De que consistência faria seu plano?
De tudo isto que, enquanto vida, Deleuze introduziu na filosofia. Se evocará, sem fechar nenhuma lista, uma série de conceitos entre os quais toda circulação rizomática é a boa, ou supondo que certos percursos de uma linha à outra serão preferíveis a outros, sem ter aqui os meios de calculá-los.
Deleuze introduziu na filosofia, ou retomou nela explicando-os, um certo número de conceitos que não tinham aí nem esse lugar nem essa duração, ou que os tinham sob outra forma e segundo outra lógica. Assim, são encontradas envolvidas no pensamento essas sensações, essas intuições, esses afetos, essas impressões, essas emoções, esses sentimentos, essas paixões, essas vitalidades, essas representações, essas virtualidades, esses momentos que nós todos chamamos a vida e que, quando começamos a fazer filosofia, esperamos aí ver tratados. A empresa é metódica. O exemplo de Proust é a esse respeito determinante: Deleuze faz da Recherche uma procura da verdade, e ninguém duvida que, lendo esse romance, para além da história contada ou de preferência por ela, sabemos aí postos e resolvidos os problemas concernentes à nossa experiência dos signos, dos amores, dos mundos (sentido mundano). Por tais operações, por esse método, Deleuze complica a filosofia nisso que:
a) ele explica de modo recorrente certos filósofos, «porque explicar, longe de designar a operação de um entendimento que fica exterior à coisa, designa em princípio o desenvolvimento da coisa em si mesma e na vida» (Spinoza et le problème de l'expression, p. 14).
b) o que ele explica a propósito de um filósofo, ele o implica na filosofia toda inteira, e por aí;
c) ele a redobra sobre si mesma e a complica, dá-lhe uma prega a mais, uma nova prega. A teoria da prega é sem dúvida dada no Foucault. Por essa operação de explicatio - complicatio, Deleuze é o grande escolástico dos tempos modernos. Mas vê-se ao mesmo tempo que a topologia deleuziana da prega implica também uma álgebra dos pólos: assim os dois pólos do delírio no Oedipe (p. 329), o pólo paranóico fascistizante e o pólo esquizo-revolucionário etc.
Inverter alguma coisa (sempre algum platonismo) consiste portanto em lá perceber dois pólos, o que é a explicação (por exemplo, para Espinoza, a Ética das proposições e a Ética dos escólios), pois, por um redobramento - o demiurgo se dobra em Platão - em efetuar uma prega que torna os pólos tão próximos quanto terão sido afastados, tão diferenciais quanto puderam a princípio se assemelhar, tão cruzados quanto terão sido alinhados: o que é a complicação ou ainda a expressão. Assim em Proust, a série e os grupos, em Kafka, as duas línguas, em Zola, a hereditariedade e a fissura.
Seguindo os livros ao acaso (e simplificando enormemente), se dirá por exemplo que se introduzem na filosofia com Deleuze o empírico como tal com Hume, a diferença de natureza nas faculdades com Kant, o intensivo, o diferencial, o incomensurável com Diferença e Repetição , o expressivo (o implicado e o complicado, e por aí, a velocidade) com Espinoza, os fluxos com Kafka, os signos com Proust, o serial pela Lógica do sentido, a duração como multiplicidade com Bergson, o corpo sem órgãos no Mille Plateaux, a imagem como tempo com o cinema, o «háptico» com Francis Bacon, o transversal, o rizomático sendo operações de um grau superior e atravessando os outros, e notadamente todas as polaridades entre o psicológico e o social. Mas que nenhum privilégio lhes seja por aí suposto: o leitor, à sua vontade, pode se contentar com qualquer desses conceitos sem que ele implique obrigatoriamente todos os outros, e se deslocar à sua vontade através de um ou vários outros. Nenhum circuito obrigatório, circulações virtuais.
Nenhuma periodização oficial, velocidades diversas. Donde ressalta contudo que se se considera o conjunto do plano, todas as multiplicidades qualitativas, intensivas, expressões ou diferenciais se acham implicadas no pensamento. Por aí a vida, que não é para Deleuze uma entidade leve, vaga, incerta, mas que seria como a integração específica dessas mesmas multiplicidades, se encontraria definida não como objeto da filosofia, mas como filosófica.
O exemplo do cinema é um prazer: ele escreveu sobre o cinema o mais belo livro. Ora, é um livro de filosofia. De um pólo a outro, o espectador de cinema encontra enfim aqui no livro o que ensaiava lá, sentado na sala escura, e que não se pode saber quando se lê o cenário, nem quando se fala sobre o filme, ainda menos quando se olha um fotograma, mas o que ele vivia na imagem e no tempo daquele momento. Ele reencontra portanto no livro o que cada filme implica do cinema. Tal é a polaridade da sala ao livro. Mas segundo a topologia do redobramento, ele aprende filosoficamente no livro a imagem e o tempo da vida dos quais a sala lhe deu somente a experiência.
Ele capta então, como em cada livro de Deleuze, para que serve a filosofia: para tornar a vida filosófica. Poucos filósofos nasceram tão filósofos quanto ele. Ele o é por natureza.
Quando todos os pássaros do anoitecer nos inquietam a propósito do fim do seu ídolo, enquanto que nós poderíamos, nós, questioná-los sobre simplesmente sua tão triste existência, por que esse rinoceronte continua tão alegremente seu caminho? Na cavidade da mais profunda prega.o que é que agencia, sem que advenha o Um, que não é, tantas multiplicidades? Quase um axioma que retorna em várias obras de Gilles Deleuze de modo subterrâneo e recorrente e que bastaria talvez para definir a filosofia quando tudo que opera suas miragens tradicionais tiver sido invertido, quando todas as potências do falso se tiverem tornado coextensivas à sua verdade, quando sua cartografia tiver sido integralmente rastreada: a univo-cidade do ser.
* Mestre de Conferências da Universidade de Paris VIII (Departamento de Psicanálise).
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» no 257, set./1988.
Tradução do francês por Oscar Farinha.
NOTA
Revenser le platonisme, primeira versão, «Revue de Métaphysique et de morale» out./dez. 1966, p. 432. Passagem não retomada em Logique du sens.
cooperação.sem.mando

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