DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
A ESQUIZO-ANÁLISE - Por François Ewald
1972: aparecia O Anti-Édipo. Que brisa, que alegria, que liberdade! De que outro livro poderíamos dizer que tivesse exprimido tanto a filosofia de maio de 1968? Do acontecimento político a O Anti-Edipo, a mesma insolência soberba. Já se estava farto. Já não era mais hora de discutir, ou seja, de ter que se justificar. Não há o que discutir com Freud. Somente morrer de rir diante das suas histórias de Edipo, como se tudo na vida, a política, a literatura, a doença, se devesse reduzir a pequenas histórias de família: papaimamãe- pipi. No momento em que alguns sonhavam que o movimento saído de 68 chamava à grande aventura - Freud com Marx - Deleuze-Guattari jogavam Marx contra Freud. Não que O Anti-Edipo seja um livro marxista, mas porque se não se pode acreditar nas histórias de Freud é necessário utilizar Marx, colocá-lo em máquina, extenuá-lo. Com O Anti-Edipo, Deleuze e Guattari quebram os códigos, mudam os signos, franqueiam a linha e engajam a filosofia em vias nunca antes traçadas.
O Anti-Edipo é um livro voraz, opressivo, por vezes fulgurante, engraçado, apressado, uma torrente que corre numa arquitetura demonstrativa simples. O primeiro capítulo lança, sem precaução, o jogo das categorias da nova psicologia, o mapa do mundo. Mas, pode-se ainda falar de psicologia? A noção central é a das máquinas desejantes. Uma noção complexa - há máquinas desejantes de todas as dimensões supra, infra-individuais, molares, moleculares - que chamam muitas outras, todas inéditas no sentido em que aqui são usadas: corpo sem órgãos (Artaud), devir, códigos, fluxo, território, ter-ritorialização, agenciamento, multiplicidade, intensidade. O inconsciente (ou o desejo)? Não o recalcado, o pequeno segredo sujo, o inconfessável ou o vergonhoso, mas máquinas, máquinas de máquinas, uma fábrica incessantemente ocupada em produzir. No momento, nossas imagens familiares, nossos pequenos conhecimentos freudianos (id, ego, superego) são perturbadas, diminuídas, derrotadas. Se o inconsciente (o desejo) é máquina, então, evidentemente, não existe sujeito do inconsciente; ele é, de saída, coletivo, político, social, histórico. O inconsciente (o desejo) não tem complexos, ele produz. O quê? Sujeito? Algumas vezes, em determinadas conjunturas, mas não necessariamente. O inconsciente máquina produz tudo: a terra, os homens sobre a terra, suas relações, territórios com múltiplos devires possíveis.
Você quer fazer psicologia? Deleuze e Guattari dizem: aprenda a história, percorra as grandes formações da história universal -«selvagens, bárbaros, civilizados» -,espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do economista, empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo, as disciplinas que relatam no seu conjunto e na diversidade as produções do desejo. Mas, e é o propósito do projeto de« esquizo-análise » que termina O Anti-Édipo, aprenda a lê-las sem nunca as interpretar, ou seja, as decompor certo do mesmo e do idêntico. Aprenda a ver o puro múltiplo que aí está em construção.
1980. Oito anos se passaram. As intensidades de 68 já estão longe. Marx e Freud não são mais referências (e motivo). Aparece Mille Plateaux: «A continuação e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia cujo primeiro volume era O Anti-Édipo». Maturação, aprofundamento, Mille Plateaux é um livro suntuoso que retoma e desenvolve os temas de O Anti-Édipo. O Anti-Édipo era um livro maravilhosamente polêmico, mas um livro contra. Aí reinava uma presença obsessiva da psicanálise. Mille Plateaux é um livro completamente positivo, sem inimigos, sereno, certo da sua própria positividade. Mille Plateauxcura livro pacificado, singular, que se situa resolutamente no exterior dos campos de referências tradicionais, pelas categorias que ele constrói, agencia e desenvolve, assim como pela forma do livro: a descrição por «platôs paralelos e correspondentes». Tem muito poucas questões de inconsciente e psicanálise; a oposição máquina de guerra-aparelho de Estado substitui o par capitalismo-revolução. Quase ausente de Mille Plateaux a grande questão que atravessava O Anti-Édipo: «Mostrar como o desejo pode estar determinado a desejar a sua própria repressão no sujeito que deseja».
Mille Plateaux, de que se trata? Como isto se organiza? Como um tratado de filosofia, depois da ruptura, quando o filósofo, o grande nômade, resolveu desertar da filosofia dos códigos, dos territórios e dos estados, a filosofia do comentário. Mille Plateaux é um grande livro porque, com ele, a filosofia ascende a um de seus devires improváveis. Mille Plateaux desenvolve uma filosofia verdadeira, ou seja nova, inaugural, inédita. Duas grandes filosofias nunca se assemelham: é porque elas não são nunca da mesma família. A filosofia não se desenvolve segundo uma linha arborescente de evolução, mas segundo uma lógica dos múltiplos singulares. A questão que Deleuze e Guattari retomam é esta: de que se ocupa então a filosofia se ela não pode nunca se exprimir senão de uma maneira incomparável? Não, evidentemente, do que poderia ser comum a todas as filosofias: do universal, do verdadeiro, do belo e do bem. Deleuze e Guattari respondem: do múltiplo puro sem referência a um qualquer Um, da diferença pura, das intensidades que individualizam, das estida-des. Mille Plateaux é um acontecimento na ordem da filosofia. E ler Mille Plateaux é se perguntar: 1980, Mille Plateaux, o que é que aconteceu?
Mille Plateaux contém todas as componentes de um tratado de filosofia clássico: uma ontologia, uma física, uma lógica, uma psicologia e uma moral, uma política. Unicamente não se vai de uma para a outra segundo uma lógica de desenvolvimento, do fundador ao fundado, dos princípios às conseqüências. Deleuze e Guattari dão o maior privilégio ao espaço sobre o tempo, ao mapa sobre a árvore. Tudo é coextensivo a tudo. As divisões também, não podem corresponder senão a placas, a estrias paralelas, com diferenças de escala, de correspondência e de articulações dos platôs, datados mas co-presentes.
Deleuze e Guattari concebem a ontologia como geologia: no lugar do será terra, com seus estratos físico-químicos, orgânicos, an-tropomórficos. O que é que faz a terra? Quem fez da terra o que ela é? Quem deu este corpo à terra? As máquinas, sempre as máquinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas. Mecanosfera. A filosofia de Mille Plateaux não concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose a aliança. A lógica da mecanosfera não conhece nem a negação nem a privação. Não há aí nada senão devires, sempre positivos, entre os quais os devires perdidos, bloqueados, mortos. Positividade do esquizo.
Como se fazer um corpo sem órgãos? E de que é que se trata num devir? Sem dúvida nunca, antes de Mille Plateaux, se tinha ido tão longe na crítica da representação e da significação, na colocação à luz do que se relaciona a uma representação. Não um significante, mas sempre um ato, uma ação. O «platô» intitulado «Postulados da lingüística» subverte a abordagem à linguagem, de Ferdinand de Saus-sure a Chomski, em torno das noções de «palavra de ordem» e de «redundância» de «forma de conteúdo» e de «forma de expressão».
As últimas duzentas páginas de Mille Plateaux assemelham-se a um tratado de filosofia política. Aí se coloca a questão do Estado e do seu outro: o nômade. Deleuze e Guattari transformam a questão política: eles a arrancam à sua colocação histórica, ao esquema de evolução. O problema não é saber quando nem porque isto acabou mal: o Estado sempre aí esteve, delimitando o. espaço, fixando as identidades. Mas, desde sempre, ele tem o seu outro, no nômade e a máquina de guerra. Eis o que transforma a questão do que se pode querer em política. Não se tem mais que sonhar com uma desaparição do Estado, mas escolher: preferir o exercício do significante um, a ordem e os cadastros, bloquear os devires, ou se dotar de uma máquina de guerra e se fazer nômade.
O Anti-Edipo, Mille Plateaux, obedecerão eles a um método comparatista? Sem dúvida. Como todos os grandes comparatistas do século - Georges Dumézil, Michel Foucault - Gilles Deleuze e Félix Guattari odeiam a interpretação. «Interpretar, dizem eles, é a nossa maneira moderna de crer e ser piedoso.» A interpretação eles opõem a experimentação. O seu método, a esquizo-análise ou pragmática, obedece às regras de um positivismo radical. Não se trata de amar a ciência mas de produzir fatos. Os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia são uma máquina de produzir fatos, como tal inéditos. A sua importância é renovar de alto a baixo os fatos de que trata a filosofia e que tramam nossa existência.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» nº 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
cooperação.sem.mando
Penso que a esquizo-análise por meio do "Anti - Édipo" e "Mil platôs", se trata de uma reação à psicanálise e atua como uma crítica ao inconsciente desenvolvido por Freud e também para sua interpretação do conceito de "desejo" como falta, Deleuze e Guattari propõem o conceito de "máquinas desejantes", sendo que o inconsciente produtivo é responsável pelo "desejo" como intensidade que produz realidade!!!!!!!!! A reinvenção do inconsciente como produção desejante, ao invés de falta a ser preenchida. Segundo Deleuze e Guattari a esquizo-análise como uma abordagem politica e militante do individuo, sendo aquela que resiste ao "edipianismo"
ResponderExcluirtalvez, pra muito além de uma reação, gustavo... a esquizo-análise se apresenta como o pensamento da diferença... dá de ombros ao pensamento dominante e olha pras gentes do jeito que as gentes são...
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