sábado, 15 de janeiro de 2011

divulgação: escola-droga


escola-droga
em: VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº1 (maio 2002 - ). - São Paulo: o Programa, 2002- Semestral
por guilherme corrêa
Pesquisador do Nu-Sol. Professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, mestre em Educação pela UFSC e doutorando no PEPG em Ciências Sociais na PUC/SP. Desenvolve pesquisas sobre estratégias educacionais não escolarizadoras no Brasil contemporâneo.
revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.
O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um
regime de governamentalidade múltipla.
Michel Foucault

Imagine-se com dez anos de idade e aluno em uma sala de aula de quarta série do ensino fundamental; não se veja no passado, quando cursou a quarta série, mas como uma criança hoje, num universo onde contam "vídeo games", computadores, tênis da moda, as infindáveis sessões de marquetagem destinadas às crianças em que se transformaram os programas infantis na televisão, "pokemons", o medo de seqüestros, etc1. Então, em sua sala de aula - que não mudou muito em relação àquela em que você estudou, a não ser talvez os materiais e o desenho da mobília - a professora, ou professor, como queira, distribui uma folha de papel na qual vocês devem fazer uma redação com um tema que diz respeito à aula sobre drogas ministrada anteriormente. Assim, acima das linhas em branco da folha, diante de você está o título: "Eu conheço um viciado". Antes de "sair" de sua sala de aula, elabore rapidamente as linhas gerais da sua composição - lembre-se que tem dez anos: conhece alguém viciado em drogas? é algum parente, amigo, conhecido? como
sabe que é viciado? viciado em quê? Este exercício que lhe propus eu mesmo o fiz quando chegou às minhas mãos umas folhas fotocopiadas do que, a primeira vista, parecia ser um livro didático para crianças, devido ao grande número de ilustrações. As cinqüenta páginas não numeradas e sem referência bibliográfica, tratavam de um projeto chamado "Drogas? Tô fora!" com o planejamento de cinco aulas de "Língua Portuguesa/ Educação para Saúde". A redação referida acima é o exercício final sugerido como avaliação da primeira dessas aulas. A publicação na qual este material estava inserido2 foi encontrada numa escola de uma pequena cidade do interior de Santa Catarina. É um material bastante curioso e mereceria um artigo inteiro apresentando não só sua noção de drogas, mas também as estratégias de saúde a serem desenvolvidas junto a crianças das quatro primeiras séries do ensino fundamental3. Destinado a professores do ensino fundamental tem por objetivo desenvolver o tema transversal4 "Saúde".
Recorrendo sempre a ilustrações - árvores, sóis brilhantes e muitas carinhas infantis nas mais diversas situações -, encaixadas no clichê do mundo infantil feliz, o material vai apresentando sua versão pedagógica da abordagem do uso de drogas. Assim, ao sugerir ao professor que faça alguns adesivos para serem distribuídos pela escola, um deles tem a frase: "Ao ir ao hospital, visite a enfermaria de pneumologia, não para ver como os enfimatosos [sic] vivem, mas sim, para ver como é que eles estão morrendo". Ilustrando esta frase há um leito de hospital, com um crucifixo sobre a cabeceira, e deitado sob as cobertas um menino exibe seu rosto tranqüilo. Noutra sugestão de adesivos, em que o livro comenta "overdose de tranqüilizantes", aparece o desenho de um menino com as pernas e o olhar desencontrados, como que embriagado. Ao sugerir ao professor que crie cartazes a serem reproduzidos, logo em seguida recomenda as frases ou cartazes que deve criar: "Evite a tentação da primeira dose", "Droga é uma droga", "Eu não entro nessa fria!". Do mesmo modo, abaixo da sentença: "Crie um cartaz alertando sobre o perigo do consumo de cigarros", aparece já pronto o desenho de um cartaz, no qual se vê um menino de óculos escuros com três cigarros acesos ao mesmo tempo, tossindo muito, e a frase "Você está bem... perto da Morte".
Assim, entre as várias imagens de crianças - ou adultos infantilizados? - fumando, bebendo álcool, chá de cogumelo, cheirando lança-perfumes, imagens de seringas, caveiras, sepulturas com uma carinha sorridente na lápide, e muitas carinhas sorridentes, este livro da série "Alfabetização sem segredos" vai construindo uma noção de drogas, baseada no conceito de que “droga é toda substância que, introduzida no organismo, altera suas funções". A droga aparece estreitamente ligada à degradação da vida e à morte, ao mesmo tempo em que promove uma espécie de sondagem da índole do aluno: "Você aceitaria experimentar algum tipo de droga para não ser criticado pelos colegas? Por quê?"; "Qual seria sua reação se alguém lhe oferecesse drogas?"; "Caso algum colega estivesse usando drogas, você falaria com a família dele? Por quê?"; "O que você costuma fazer quando se sente aflito ou inquieto?" Imaginar os possíveis efeitos do desenvolvimento do trabalho escolar com o título "Eu conheço um viciado", deixou-me curioso a respeito do modo como o tema das drogas vem sendo tratado nas escolas. 
Uma vez que todas as escolas espalhadas pelo território nacional - sejam elas financiadas pelo Estado ou privadas - são orientadas pela LDB, cabe, antes de saber como essas escolas desenvolvem um tema como o das drogas, perguntar o que o Estado diz sobre as drogas. Uma tarde na biblioteca da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina rendeu quase oito quilos de fotocópias. Deste material tomei cartilhas, relatórios e pesquisas feitos por órgãos oficiais do Estado, mais especificamente pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), Casa Militar, Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e pela Universidade de Brasília. Com este material tentei apreender a noção de "drogas" que orienta as ações do Estado brasileiro. Com a outra parte, composta por cartilhas, programas de prevenção e folhetos elaborados por especialistas da área de educação, tento mostrar a correspondência do debate e das estratégias de abordagem da problemática das drogas nas instituições de ensino responsáveis pelo ensino fundamental. A organização do material em ordem cronológica - a partir, principalmente, da última metade da década de noventa - mostrou-se bastante esclarecedora do movimento pelo qual passa a noção de droga neste curto período.
Em meados dos anos noventa a sociedade brasileira mobilizou-se a partir da promoção pelo Estado para diversos encontros, seminários e fóruns, a propósito da questão das drogas. Ao dar mostras claras de que não era uma doença circunscrita aos grupos de homossexuais e de usuários de drogas injetáveis - derrubando a noção moral e administrativamente confortável de grupo de risco -, a AIDS mostrou uma possibilidade concreta de larga contaminação de indivíduos pertencentes aos mais variados estratos sociais. Isso fez com que o Estado, cuidadoso em melhorar a sorte da população, elaborasse uma série de campanhas com a finalidade de conter o avanço da doença sobre os cidadãos. Os números referentes aos infectados chamavam especial atenção para o grupo dos usuários de drogas injetáveis. É dessa constatação que acontece a passagem da utilização de estratégias de controle da AIDS para o emprego de estratégias de prevenção integral tendo como coluna mestra a prevenção ao uso indevido de drogas. Para enfrentar a ameaça representada por uma possível explosão do contágio de AIDS por meio dos usuários de drogas injetáveis, e lidar diretamente junto à população, foram publicadas cartilhas, fitas de vídeo, e promovidos cursos para multiplicadores5.
Estas estratégias, então, empregadas pelo Ministério da Saúde enfatizavam a política da redução de danos e dirigiam-se especificamente às populações em situação de risco, a saber: "profissionais do sexo, jovens socialmente marginalizados, presidiários, populações de rua, e usuários de drogas"6. O trabalho preventivo e educativo com essas populações não ficava como responsabilidade dos serviços formais de saúde, educação e serviço social, mas das emergentes organizações não governamentais7. Neste contexto, a droga é tratada como fenômeno histórico, reconhecendo que "o ser humano sempre conviveu com drogas, e delas fez diferentes usos, ao longo da história."8 E é interessante ver referências a grandes nomes da literatura mundial e ao uso que fizeram de drogas "perturbadoras": Fernando Pessoa -"há doenças piores que as doenças..."-, Baudelaire e o ópio e Aldous Huxley e suas experiências com a mescalina; a droga como substância que "transportava o espírito para outros territórios, para outras sabedorias"9.
O problema do abuso de drogas, ainda nestes materiais do Ministério da Saúde, é situado dentro do espectro das drogas legais: "o panorama epidemiológico do Brasil (...) mostra a prevalência das drogas legais: elas representam mais de 90% dos abusos ou usos freqüentes praticados pela população. Seu custo social é altíssimo, ultrapassando de longe aquele das drogas fora da lei. Em termos de mortalidade, o abuso de álcool e fumo é responsável por cerca de 95% dos casos de óbito devidos a drogas, sendo que somente 5% são imputados às 'outras drogas', no seu conjunto"10.
É clara a oposição às posturas radicais defendidas pelos setores da organização estatal responsáveis pela repressão ao uso de drogas ilegais: "os expoentes da postura antidroga, (...) não enxergam o óbvio: que a "guerra contra as drogas" é inoperante, e que nunca haverá "vitória final", já que as drogas fazem parte, desde sempre da vida humana. Mas há ainda mais: todas aquelas intervenções que se pautam na abordagem exclusiva do "dizer não", são contraproducentes e surtem efeitos contrários"11.
A preocupação aqui não é criminalizar o uso de drogas, mas recuperar o dependente, que deve ser considerado como um doente12, dentro do ideal da reinserção social, pela via da reconstituição familiar13. É neste ponto "ideal" que ocorre a reintegração dos que se encontram em situação de risco. Ponto no qual esses sujeitos passam a estabelecer laços familiares, mesmo que tênues, no qual, automaticamente, as instituições formais passam a atuar. Reinseridos, reajustados, eles restabelecem contato com a rede formal de assistência à saúde, educação e serviço social. Ou seja, o isolamento, que é a condição que caracteriza as populações de risco, impede qualquer intervenção preventiva; portanto, qualquer ação neste sentido deve promover o restabelecimento dos vínculos sociais, num crescendo que vai da família à escola, aos grupos de auto-ajuda e à rede formal de assistência. Dentro deste conjunto de ações de ajustamento e de reinserção, a escola assume um papel de grande importância.
Desta maneira, "freqüentar uma escola representa um referencial de cidadania e fortalece a identidade pessoal, tantas vezes abalada sob o impacto das adversidades sofridas. Devidamente instrumentalizada e com habilidade para segurar e direcionar o aluno, a escola é capaz de manter os jovens afastados da marginalização, mesmo com suas estruturas familiares precárias ou quase inexistentes"14.
Em novembro de 1998, acontece o "I Fórum Nacional Antidrogas", evento que inaugura um importante passo para a compreensão de uma noção de "drogas" utilizada pelo Estado brasileiro. Com o objetivo de abrir um diálogo entre a sociedade e o Governo Federal, e de ouvir as sugestões da sociedade, o Fórum, destinado exclusivamente às organizações não-governamentais15, reuniu representantes dos mais diversos setores. Ao todo foram 30 subgrupos separados em quatro grupos de trabalho: grupo de prevenção, de tratamento, de repressão e um último grupo chamado global. Entre todos estes subgrupos havia, por exemplo, um subgrupo para o pessoal da redução de danos, outro chamado Populações Excluídas, e ainda Criação de Empregos, Internação, Reinserção Social, Mútua-ajuda, Comunidades Terapêuticas, Modificações Legislativas, Comunicação e Marketing, etc. Havia também o subgrupo Escola, um dos treze subgrupos do Grupo Global, juntamente com outros como Família, Local de Trabalho, Mulheres, Crianças e Adolescentes, Instituições Religiosas e outros. No discurso que profere na abertura do encontro, o Presidente da República refere-se à escola da seguinte maneira: "Precisamos, no Brasil, ampliar a consciência do professorado, da gestão das escolas, mas, sobretudo, das famílias, com relação à questão das drogas"16. E segue apresentando um outro lado da questão: "mas, há o outro lado, digamos, propriamente repressivo, da questão das drogas. (...) Isso requer um trabalho de inteligência e de informação. Não é apenas um trabalho de repressão, mas é de conhecimento das tramas que estão por trás daquilo que aparece à primeira vista e que é, normalmente, o objeto da repressão. O objeto da repressão, raramente, está diretamente vinculado à trama de sustentação do tráfico de drogas (...) É ilusão pensar que as informações, hoje, são monopólio do Estado. Pelo contrário. Hoje, também a sociedade dispõe das informações. E, muitas vezes, até mais depressa e mais abundante do que o próprio aparelho de Estado"17.
Consultando cuidadosamente o relatório, ficam mais claras frases tais como "Isso requer um trabalho de inteligência e de informação" ou "É ilusão pensar que as informações, hoje, são monopólio do Estado.", ou ainda "Hoje, também a sociedade dispõe das informações". O "subgrupo R2", um dos três subgrupos do "grupo de repressão", responsável pelo tema "Participação da Sociedade na repressão ao Tráfico - Proteção à Testemunha e Definição do Campo de Atuação das ONGs", em seu relatório "deu destaque à necessidade de estimular-se a denúncia; incentivar-se a delação premiada e de editar-se lei estabelecendo regras de proteção às testemunhas, concedendo-se às ONGs as missões de dar apoio psicossocial aos familiares de testemunhas protegidas e fornecer moradias provisórias"18.
Chamo atenção para a proximidade, a sinonímia mesmo, entre as palavras denúncia e delação. Nesse contexto de "participação da sociedade na repressão ao tráfico" a diferença possível é que a delação pode mobilizar uma rede de proteção à testemunha, todavia, perde sua diferença qualitativa ao produzir o mesmo efeito: ao chegar aos órgãos oficiais competentes, "por correio, telefone ou outros meios"19, transformam-se em informação, em trabalho de inteligência.
As situações apresentadas até agora, enfatizando os discursos produzidos por órgãos e pessoas representantes do Estado, compõem uma galeria que tenta, mesmo que apressadamente, mostrar o largo espectro do que se diz, oficialmente, em relação às drogas. Desta variada flora discursiva, muitos espécimes são aproveitados para decoração, enquanto outros são produzidos e distribuídos gratuitamente à população e devorados vorazmente. O efeito ornamental de alguns discursos não deve, todavia, ser subestimado pois são estes que dão corpo a uma imagem de Estado acolhedor, no qual o cidadão tem ampla liberdade de expressão.
Um episódio ocorrido no Fórum permite começar a delinear o discurso sobre drogas que o Estado brasileiro efetivamente faz funcionar, que tem força e volume para preencher os largos canais das políticas destinadas aos grandes contingentes populacionais e, ao mesmo tempo, fluidez e simplicidade suficientes para percorrer os complicados e finíssimos canais que penetram nas comunidades, nas famílias e, até o mais íntimo da vida de cada um, ali onde percebe-se a si mesmo como cidadão, com direitos deveres e sujeito ao assédio do Estado em vista do cumprimento das leis.
O subgrupo chamado Redução de danos e portadores de HIV, teve uma participação inesperada de pessoas ligadas a grupos religiosos "Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, Amor Exigente, Pastoral de Dependência Química/CNBB" e ao aparato policial, que correspondeu a 68% dos integrantes; eram contrários à troca de seringas e propunham a abstinência como única forma de tratar a questão das drogas. Os outros 32% eram pessoas envolvidas em atividades de redução de danos em instituições governamentais e não-governamentais. Foram produzidos, assim, dois relatórios, um incluindo troca de seringas e outro excluindo troca de seringas20. Esta reunião insólita de membros de ONGs, professores universitários, religiosos e policiais, põe em cena os principais atores do teatro da prevenção ao uso de drogas e expõe o argumento da pantomima: grupos com interesses realmente opostos "confrontando ciência e dogma religioso, estratégias libertadoras e medidas repressoras — unidos na promoção da impossibilidade de pensar a vida sem governo.
Os diversos grupos ali presentes legitimam e conferem, pela sua diversidade e proveniências "militares, policiais, religiosos, advogados, agentes comunitários, assistentes sociais, professores, pesquisadores..." uma voz à sociedade. Seus relatórios "pedindo verbas; aperfeiçoamento de leis e regulações; integração entre agências federais, estaduais e municipais; aumento de pessoal qualificado, cursos de aperfeiçoamento; campanhas de prevenção; repressão policial; criminalização; descriminalização; reformulação de práticas pedagógicas; reinserção social, etc." dirigem-se ao Estado e reforçam seu qualificativo de democrático.
Escola e droga
A partir das recomendações do I Fórum Nacional Antidrogas, foi organizado, pela Secretaria Nacional Antidrogas e pela Universidade de Brasília, o curso "Prevenção ao Uso Indevido de Drogas: diga sim à vida". Este curso visava "contribuir para a formação de profissionais ou de membros da comunidade em geral devidamente qualificados para atuar na prevenção ao uso de drogas"21. Os conteúdos elaborados por especialistas tinham por objetivo "oferecer informações consistentes (...) de maneira clara e fundamentada em literatura atualizada"22. As estratégias de ensino empregadas neste curso "oferecido gratuitamente a trinta mil futuros trabalhadores da missão de prevenir contra o uso indevido de drogas" surpreendem ao ressuscitar a instrução programada23. Enquanto os conteúdos eleitos para o programa seguem a já consolidada liturgia dos cursos de prevenção às drogas "definição de droga, classificações das mesmas (naturais, sintéticas, psicotrópicas, lícitas e ilícitas, classificação dos usuários (experimentador, recreativo, funcional e dependente), uma listagem das drogas e seus efeitos e estratégias de prevenção" a instrução programada, rediviva, causa a impressão de que o que importa aprender são os conteúdos expressos no programa, quando o que está se processando, é um amortecimento da capacidade de pensar e de querer, do exercício da vontade. A descrição de um desses exercícios presente na apostila do curso não vai deixar dúvidas sobre o que estou dizendo: sob o título "autoavaliação" está a sentença "Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:", segue então um conjunto de doze palavras que devem ser colocadas nas lacunas existentes nas frases de "a" a "f", imediatamente após as frases aparece o mesmo conjunto de palavras só que desta vez colocadas na ordem em que devem aparecer nas lacunas das frases acima.
"AUTO-AVALIAÇÃO
Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:
Palavras-Chave
experimentador habitual abusivo comportamento controlada consciência tranqüilizantes dependência motivação ocasional pessoa droga
a) As drogas psicotrópicas são substâncias capazes de alterar o ________________ das pessoas.
b) Mesmo certas drogas chamadas lícitas podem ter sua comercialização ______________ por leis. É o caso dos _____________ .
c) O uso indevido de certas drogas lícitas é uma questão importante em relação à saúde da população porque pode causar _____________ .
d) Existem tipos diferentes de usuários de drogas. O usuário ____________ é aquele que experimenta um ou mais tipos de drogas sem dar continuidade ao uso, enquanto o usuário ___________ faz uso freqüente, podendo ocorrer prejuízos à vida profissional ou familiar. Há também o chamado usuário ___________ que se utiliza da droga esporadicamente, numa situação especial, como no caso dos bebedores sociais e o usuário ____________ cujo consumo adquire papel de destaque na sua vida, acarretando sérios prejuízos profissionais, sociais e familiares.
e) O triângulo básico do consumo de drogas é representado pela _____________ pela ____________ e pelo contexto sócio-cultural.
f) Existem diferentes _____________ para o consumo de drogas como a obtenção do prazer ou a modificação deliberada do estado de _____________ .
Gabarito:
a) comportamento
b) controlada; tranqüilizantes
c) dependência
d) experimentador; habitual; ocasional; abusivo
e) pessoa; droga
f) motivações; consciência"24.
Os materiais didáticos utilizados nas escolas seguem a liturgia, acima referida, dos cursos de prevenção às drogas. E este é umdos fios discursivos com que a escola tece a teia da prevenção, uma teia que arrasta consigo toda sorte de sanção moralizadora: "Todo uso de drogas é arriscado!"25; "(...) Não significa eximir o consumidor ocasional (mesmo criança ou adolescente) da aplicação da pena da lei,..."26; "Solte todas as suas angústias para aquele que patrocinou sua vida, que ELE o ajudará a levar avante seus projetos. [...] Assuma seu papel de cidadão e mude sua vida como você gostaria..."27; "O consumo de drogas deve ser considerado como um sinal de destruição da vida em termos de saúde e de valores..."28 .
Uma boa visão da rede tecida pela prevenção no ensino escolar é dada pelo sumário com “subsídios de prevenção integral para o educador”, constante do “Programa de Prevenção Educação e Vida” realizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. A partir da identificação da gravidade do problema das drogas, este programa compõe uma grande e complexa seqüência de vinte cinco temas29 organizados em planos de aula com os ítens: objetivos, desenvolvimento do tema, atividades da clientela (alunos).
Entre todas essas opções a disposição de professores e alunos, a escola institui um tipo de liberdade ao qual seremos, se já não estamos, acostumados: a liberdade de escolher entre um conjunto restrito e estabelecido previamente de itens postos à disposição, que desembocam sempre na normalização e no ajustamento dos sujeitos de modo a caberem confortavelmente na figura do cidadão livre dentro do horizonte delimitado pelas leis e pela moral.
Agora sim, sinto-me falando de drogas. Refiro-me ao efeito narcotizante dessas intervenções, dessas aplicações diárias, pacientes, constantes, desde a mais tenra idade, de drogas que abalam a vida ao produzi-la morna, prevenida, segura e que têm como princípio ativo o "saber sem vontade"30.
Arremato o vislumbre, que espero que este texto tenha proporcionado, da pedagogia que interessa ao Estado brasileiro na atualidade, com a seguinte declaração do Ministro da Educação, ao comentar os desvios de verbas do Programa Federal Bolsa-Escola e a importância da "participação social nas deliberações públicas": "é importante que tenhamos pessoas como o vereador Otto Barroso, responsável pela denúncia de fraude no município de Jutuabá (MG). O aumento da participação social nas deliberações públicas significa a radicalização da democracia. Certamente surgirão pessoas, atentas como ele, capazes de identificar problemas e denunciá-los. [...] Desde julho o Ministério da Educação vem investigando denúncias de  irregularidades na destinação de recursos. Trezentas denúncias chegaram por meio do telefone 0800-616161, e estão sendo apuradas"31.
A denúncia como forma de participação social e exemplo de radicalização da democracia, sublinhada pelo Ministro, dá idéia da eficiência de uma espécie de pedagogia da delação "com programas, conteúdos e técnicas didáticas" que vem sendo largamente implantada no país. Basta atentar para os programas vespertinos de televisão nos quais o principal argumento são as denúncias da população feitas por meio de telefones gratuitos. Os meios de comunicação de massa mais importantes "televisão, rádio, imprensa, internet e escola", e também o Governo Federal, têm dado mostras de seu empenho em educar o povo dentro dessa perspectiva, por assim dizer, democrática. Inventa-se no Brasil um povo que sente que decide, quando delata.
Olhando os créditos das publicações oficiais que utilizei neste ensaio, encontrei vários nomes nas comissões de consultoria, equipes de elaboração, colaboradores, especialistas... Adriano, Nelita, Sueli, Gilson, Maria, Almeli, Lídia, Saulo, Fernando, Ione, Marisa, Flávia, Carlos, Eliseu, José, Izilda, Clarinha, Ruy, Rosane, Shirley, Juçara, Araí, Mileide, Gey, Ana, Dóris, Liana, Márcia, Thérèse, Aluísio, Waleska, Alício, Aracy... são alguns nomes de pessoas que, como qualquer um de nós, freqüentaram escolas, estudaram segundo as determinações da LDB, tornaram-se profissionais e agora fazem aparecer a expressão do Estado em palavras. Assim, Como sabemos muito bem, "o Estado não tem entranhas, e não simplesmente no sentido de que não tenha sentimentos, nem bons nem maus, mas que não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidade múltipla."32
Notas
1 Esta lista de situações que cercam um estudante brasileiro de dez anos embora pareça "típica" é bastante limitada, pode-se ter uma noção disto lembrando que,em 1990, 60% das unidades escolares do Brasil eram escolas multisseriadas, ou seja escolas que reúnem, simultaneamente, em uma mesma sala de aula e sob a responsabilidade de um mesmo professor as primeiras quatro séries do ensino fundamental, cf. Cássia Ferri. Classes multisseriadas: que espaço escolar é esse? Florianópolis, 1994, p. 152. Dissertação de Mestrado em Educação - Centro de Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. Com isto quero lembrar a grande parcela dos alunos brasileiros nesta faixa etária que não tem acesso a computadores, não conhece "vídeo games", não tem tênis da moda e sequer energia elétrica em suas casas, ou seja, a realidade dos estudantes do país é muito variada e desigual não podendo ser tomada como padrão a classe média dos centros urbanos, até porque classe média no Brasil, com casa, carro e computador, é muito pouca gente.
2 Maria Radespiel. Alfabetização sem segredos: temas transversais. Contagem, Editora IEMAR, 1998.
3 Ensino fundamental é a denominação que substitui, na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei Federal n.9.394 de 20/12/1996, a antiga denominação de primeiro grau da LDB anterior, Lei Federal n. 5692 de 11/08/1971. O ensino fundamental refere-se às oito primeiras séries (mais rigorosamente aos quatro primeiro ciclos, correspondendo cada ciclo a duas séries) da educação escolar e corresponde ao ensino obrigatório exigido pelo Estado, cf. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, MEC/SEF, 1997.
4 Temas transversais, são uma série de cinco temas (ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual e pluralidade cultural), instituídos pela nova LDB para o ensino escolar. Não constituem disciplinas e podem ser desenvolvidos dentro de qualquer disciplina, com maior ou menor grau de aprofundamento, segundo necessidades que podem variar quanto a faixa etária dos alunos, especificidades regionais ou demandas de cada grupo. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Apresentação dos temas transversais e ética. Brasília, MEC/SEF, 1997.
5 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília, Coordenação Geral de Doenças Sexualmente transmissíveis/AIDS, 1995, p. 3.
6 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério de Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 22.
7 Idem, p. 22.
8 Neri Filho. “ Preconceitos e conceitos sobre drogas in: Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS,
9 Idem, p. 29.
10 Richard Bucher. "Drogas na sociedade" in: Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à saúde. Coordenação-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/ AIDS, 1995, p. 35.
11 Idem, p. 48.
12 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério da Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 08.
13 Idem, p. 27.
14 Ibidem, p. 28.
15 I Fórum Nacional Antidrogas (Brasília: 1998). Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 05.
16 Discurso do presidente Fernando Henrique, na abertura do I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 08.
17 Idem.
18 Relatório do Grupo de Repressão in: I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 40.
19 Idem, p.42.
20 I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, pp. 17-24.
21 Eliane Maria Fleury Seidi (org). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga SIM à vida. Brasília, CEAD/UNB, SENAD/SGI/PR, 1999, vol. 01, p. 04.
22 Idem.
23 Instrução programada é um conjunto de técnicas de ensino baseadas nas teorias da comunicação em que o aluno é encarado como um dispositivo receptor de informações input que processando-as pode devolvê-las ao meio, output; a análise da qualidade da informação processada permite avaliar a aprendizagem. Uma das novidades disso tudo são os materiais auto instrucionais, elaborados por programadores especializados, que segundo a lenda permitem ao aluno aprender conteúdos escolares sozinho, sem a intervenção do professor. Posta em marcha nos anos setenta, a instrução programada foi a panacéia pedagógica da Ditadura Militar, adquirida por preços altos com a celebração do acordo MEC/USAID, quando a educação pública passou a ser estratégia de segurança nacional.
24 Cf. Elaine Maria Fleury Seidl (org.). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga sim à vida. Brasilia, CEAD/UnB; SENAD/SGI/PR, 1999. Vol. 1, pp. 20-21.
25 Carlos dos Santos Silva. Drogas! Se eu quiser parar você me ajuda? Rio deJaneiro, Autores e Agentes Associados, 1977. 3ª ed., p. 17.
26 Idem, p. 8.
27 Secretaria Municipal de Educação de Criciúma. Criciúma cuidando da sua saúde: diga nãao às drogas. Curitiba, Base Editora, p. 13.
28 Governo do Estado de Santa Catarina. Previda, programa prevenção educação e vida: subsídios de prevenção integral para o educador. Florianópolis, Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desporto, p. 11.
29 Família; Adolescência; Sexualidade; DST; AIDS; Relacionamento; Amizade; Religiosidade; Valores; Meios de Comunicação; Poder de Decisão; Projeto de Vida; Participação do Jovem na Construção da História; Educação Ambiental; Educação para o Trânsito; Trabalho e Lazer; Recomendações Gerais; Abordagens de Prevenção; Drogas Psicotrópicas; Automedicção; Álcool; Tabagismo; Drogas Voláteis; Maconha e,finalmente, Cocaína.
30 Max Stirner. O Falso Princípio de Nossa Educação. São Paulo, Imaginário, 2001.
31 Folha de São Paulo, 01/01/2001.
32 Michel Foucault. "Fobia al Estado" in La Vida de los Hombre Infames - ensayo sobre desviación y dominación. Madrid, La Piqueta, 1990, p. 308.
RESUMO: Uma problematização do apelo, cada vez mais efetivo e insistente, para que a sociedade participe das decisões governamentais por meio de denúncias é o ponto de chegada deste trabalho. A partir disto pode-se falar de uma espécie de pedagogia da denúncia levada a termo pelos principais meios de comunicação - televisão, rádio, jornais e rede escolar. A abordagem das drogas legais e ilegais encaminhada por órgãos e representantes oficiais do Estado brasileiro é apresentada aqui como exemplo do modo de funcionamento de estratégias de governamentalidade.

criticamos mais duramente um pensador
quando ele oferece uma proposição
que nos é desagradável; no entanto,
seria mais razoável fazê-lo quando sua
proposição nos é agradável
Nietzsche


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