quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - DELEUZE E NIETZSCHE OU O INVERSO

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
DELEUZE E NIETZSCHE OU O INVERSO - Por Marc B. Delaunay*
«A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas espera que a flecha fique presa em algum lugar» (1), escreve Nietzsche; e é a vibração dessa flecha que Deleuze fez ressoar, durante mais ou menos vinte anos, de 1960, a partir de «Nietzsche, sens et valeur» (2), a 1978, em seu prefácio ao Apocalipse de D.H. Lawrence(3). Toda uma geração se reconhecerá no duplo percurso do comentador e do pensador, mas também no trajeto de um estilo: «Aproxima-se o tempo em que não será mais possível escrever um livro de filosofia como desde há muito se faz»: «Ah! o velho estilo...» A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e, hoje, deve ser demandada em relação à renovação de certas outras artes, por exemplo, o teatro e o cinema. Deleuze escrevia essas linhas no começo de Diferença e Repetição (1969), e esse «programa» em nada é desmentido pelas suas últimas pesquisas sobre o cinema. A coerência do trajeto não obedece jamais, nele, a esse ambíguo sentimento de fidelidade ou de dívida que anima o comentador em relação ao autor; certamente Deleuze comentou primeiramente sobre Nietzsche {Nietzsche e a filosofia, 1962) sem recusar a dimensão propriamente didática da explicação {Nietzsche, 1965) nem a discussão, na época em que se efetuava a segunda recepção propriamente filosófica de Nietzsche na França (Conclusions sur la volonté de puissance et 1'eternel retour, in Nietzsche. Colloque de Royaumont, 1964, publicado em 1967; Renverser le platonisme, in «Revue de Métaphysique et de Morale», 1966; Pensamento nômade, Colloque de Cerisy, 1972), mas sua análise não é, de fato, dissociável dos empreendimentos que foram Diferença e Repetição (1968) e Lógica do sentido (1969), onde Deleuze desenvolve o «programa» que seu comentário traz à luz em Nietzsche, com o risco de ser desses «homens póstumos», que são mais mal compreendidos, mas melhor ouvidos que esses que vivem em seu tempo (4); é que «o grande estilo vem em seguida à grande paixão. Ele desdenha de agradar, ele esquece de convencer. Ele comanda. Ele quer».(5)
Por vários aspectos, Deleuze é realmente um homem de seu tempo, e isso não somente pelo interesse heideggeriano por Nietzsche, partilhado por todo o pensamento francês do pós-guerra, reatando, aliás, com a tradição de uma recepção contemporânea do próprio Nietzsche (Taine) e que jamais conheceu verdadeiramente uma solução de continuidade: que se lembre especialmente de Andler, de Bataille; Foucault e Deleuze estiveram na origem do grande empreendimento de tradução e de edição da obra filosófica de Nietzsche pela Gallimard (é necessário sublinhar que é até hoje na França a única edição «crítica» de um filósofo de língua estrangeira?...) Não se faz necessário somente ver aí um retorno do «escrupuloso do espírito» ou a obra de obscuros «especialistas do cérebro da sanguessuga» fazendo submeter Nietzsche à acribologia (NT) filológica de que ele tanto denunciou o espírito do ressentimento. Não, ler Nietzsche tornou-se uma exigência de liberação e libertação por respeito a todos os sedimentos cujos comentadores tinham recoberto e obliterado o texto.
O gênio próprio ao comentador que não permanece na história da filosofia consiste precisamente em desembaraçar a própria ponta do pensamento de um autor para prolongar todas as conseqüências através de um desenvolvimento original: eis porque não se saberia ler Nietzsche e a filosofia sem articular essa primeira etapa em Diferença e Repetição e na Lógica do sentido.
Mas sobretudo Deleuze percebeu o perigo que havia em simplesmente oferecer a Nietzsche um direito de cidadania na história da filosofia, sem levar em conta o impacto formidável que produziu o pensamento do eterno retorno em toda a filosofia e, além disso, ao próprio empreendimento da razão.
O pensamento do eterno retorno é não somente uma exigência de extremo avanço moral (para Nietzsche esse avanço é explicitamente de ordem estética) - querer que cada instante de minha vida seja vivido de tal maneira que eu possa aceitar revivê-lo tal qual uma infinidade de vezes - mas sobretudo a marca de um imanentismo radical: o ser é somente o voltar seletivo do que é, «ele é a lei de um mundo sem ser, sem unidade, sem identidade. Longe de supor o Um ou o Mesmo, ele constitui a única unidade do múltiplo, enquanto tal, a única identidade do que difere (...), ele elimina os < meios- quereres > (...). Em toda parte, o eterno retorno se encarrega de autentificar: não identificar o mesmo, mas autentificar os quereres, as máscaras e os papéis, as formas e as potências»(6). Essa crítica radical da modernidade «como simulacro»(7) e que está em pé de igualdade com uma crítica do sujeito (o Eu como ficção) mobiliza, bem entendido, a reflexão sobre a morte de Deus, o sentido da História e o lugar da própria instância crítica; se o céu se esvazia, a tentação é muito forte de nele substituir os ídolos, mesmo quando Nietzsche diagnostica seu «crepúsculo»: «Quantos novos deuses são ainda possíveis!... Eu mesmo, em quem o instinto religioso, isto é, criador de deuses procura, às vezes, reviver com que diversidade, que variedade, o divino que cada vez se revelou a mim!».(8) Desde a ruptura com a era do mito, a História pode ser compreendida como uma dinâmica reativa que, como tal, esforça-se em recalcar toda essa parte obscura à qual, todavia, ela deve seus saltos - que se lembre dessa potente imagem nietzschiana, onde o homem é descrito como um dorminhoco ligado à sua ignorância nas costas de um tigre...
Eis porque Deleuze procura através de uma «outra lógica», essa dos «acontecimentos», em radicalizar isso que, em Nietzsche, corre o risco de cair na nostalgia ou no «profetismo»: «Nós outros (...) pagãos por nossa fé (...) nós cremos no Olimpo - e não no «crucificado»... (9) Pois está bem aí o cerne da questão, como Nietzsche o pressentia em seu último caderno: «Há mais dinamites entre o céu e a terra do que esses idiotas purpureados jamais sonharam... »(10). Se se quer definir a modernidade não somente como um processo de racionalização, mas como uma dinâmica da secularização, e se por outro lado não se recusa em estar atento a todos os aspectos regressivos ou recessivos dessa dinâmica que não é decididamente linear, a tentativa de Deleuze aparece bem como o desafio mais externo da filosofia, voltando-se contra o que ela representa, a arma da crítica, que ela imagina ser a única a ter forjado. Para simplesmente contornar este desafio não se evitariam os artifícios que são o refúgio da tradição, a miragem da erudição por ela mesma, a abulia ou a anomia do pós-modernismo; responder a isso implica, de uma vez, uma crítica da secularização que não se deixa seduzir pela errância política, o «nomadismo do pensamento», e ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a crítica contemporânea que não se deixa presa nem à nostalgia da era mítica, nem à tentação insidiosa do profetismo: o espírito foi primeiramente camelo, como o proclama Nietzsche em seu Zaratustra, depois quis ser leão para ser, enfim, uma criança lúdica; mas essa última metamorfose pode ela mesma encobrir algum perigoso simulacro...
* Pesquisador em filosofia no C.N.R.S. Tradutor e editor das «Oeuvres Completes» de Nietzsche (Ed. Gallimard).
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» n? 257, set./1988. Tradução do francês por Eduardo Montenegro.
NOTA DO TRADUTOR
— Acribologia: rigor e precisão no estilo de palavras; pesquisa minuciosa, documentação exata.
NOTAS
1. F. Nietzsche, Schopenhauer êducateur, 7.
2. Cf. a revista «Arguments», 1960.
3. Escrito em colaboração com Fanny Deleuze, esse prefácio será publicado no Ca-hier de L'Herne consagrado a Nietzsche.
4. F. Nietzsche, Fragments posthumes, vol. XIV (trad. J. -C.Hémery), caderno W II 6a, primavera 1888, Gallimard, 1977, p. 232.
5. Ibidem, p. 231.
6. F. Nietzsche, Colloque de Royaumont, Ed. de Minuit, 1967, p. 284 sq.
7. Renverser le platonisme, «Revue de Métaphysique et de Morale» nº 4,1966, p. 437.
8. F. Nietzsche; (N.T.) Fragments posthumes, op. cit. , p. 271.
9. Ibidem, p. 240.
10. Ibidem, p. 380 (trata-se dos fragmentos póstumos escritos de dezembro de 1888 a janeiro de 1889).
cooperação.sem.mando

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