DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
FOUCAULT, DELEUZE: UM DIALOGO FECUNDO E ININTERRUPTO - Por François Ewald
Gilles Deleuze e Michel Foucault encontraram-se em 1963. Era a véspera da aparição do Nietzsche. Michel Foucault queria trazer Gilles Deleuze como professor para a Universidade de Clermont-Ferrand, onde ele mesmo ensinava. A coisa não se realizou, tendo o Ministério da Educação preferido nomear Roger Garaudy para este cargo. Mais tarde, em 1969, Gilles Deleuze viria substituir Michel Foucault na Universidade de Vincennes-Paris VIII.
Uma profunda amizade, misturada a um grande respeito, ligará os dois homens, cada um nunca deixando de estar atento ao trabalho do outro onde ele sabia encontrar ecos do seu próprio pensamento. Em novembro de 1970, Michel Foucault fará, na revista «Critique», uma exposição de Diferença e Repetição e Lógica do sentido: «Necessito falar», escrevia Michel Foucault, «de dois livros que me parecem grandes entre os grandes. Tão grandes, sem dúvida, que é difícil falar deles e que poucos o fizeram. Creio que durante muito tempo esta obra pairará sobre as nossas cabeças, em ressonância enigmática com a de Klossowski, outro sinal maior e marcante. Mas um dia, talvez, o século será deleuziano». E, numa nota em Surveiller et Punir (p. 20), Michel Foucault escrevia: «De qualquer forma, eu não saberia medir em referências ou citações o que este livro deve a Gilles Deleuze e a seu trabalho com Félix Guattari». Ainda na revista «Critique», lugar privilegiado do seu diálogo, Gilles Deleuze fará a exposição de Arqueologia do saber - «um novo arquivista» - e de Vigiar e Punir - «escritor ou não, um novo cartografo».
A proximidade entre Gilles Deleuze e Michel Foucault era também política: na véspera do Maio de 68, Gilles Deleuze juntar-se-á ao Grupo de Informação sobre as Prisões (G.I.P.) principalmente animado por Michel Foucault. E numerosas fotos os apresentam juntos nas manifestações de intelectuais contra os abusos policiais e judiciários.
Momento privilegiado desta conivência: a entrevista aparecida em 1972, no número de «L'Arc» consagrado a Gilles Deleuze, onde os dois filósofos, cada um no seu próprio estilo, analisam a transformação das relações teórico-práticas características da nova conjuntura política.
Este diálogo necessário devia prosseguir depois da morte de Foucault (1984). Gilles Deleuze consagrar-lhe-á o seu penúltimo curso e publicará, em 1987, o livro maior sobre Michel Foucault: é, diz ele mesmo, o livro que ele teria gostado de escrever com ele.
Publicamos aqui dois textos que testemunham este diálogo ininterrupto.
Artigo traduzido e retirado da revista «Magazine Iittéraire» nº 257, set./88. «Foucault e Deleuze; um diálogo...» e «II - Foucault, historiador do presente» em tradução de Ana Sacchetti. «I - Anti-Edipo: uma introdução...» em tradução de Carmen Bello.
NOTA MINHA: O escrito "I - Introdução à vida não fascista", de Michel Foucault, foi postado neste blog em 8 de novembro de 2010, em: http://marialuizadiellooutrascompotas.blogspot.com/2010/11/divulgacao-i-introducao-vida-nao.html
II - FOUCAULT, HISTORIADOR DO PRESENTE - Por Gilles Deleuze *
A conseqüência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação, que se afasta do Eterno para apreender o novo. Não é suposto que o novo designe a moda mas, ao contrário, a criatividade variável seguindo os dispositivos: de acordo com a questão que começou a nascer no século XX, como é possível a produção de qualquer coisa nova no mundo? E verdade que, em toda a sua teoria da enunciação, Foucault recusa explicitamente «a originalidade» de um enunciado como critério pouco pertinente, pouco interessante. Ele quer somente considerar a «regularidade» dos enunciados. Mas o que ele entende por regularidade é a amplitude da curva que passa pelos pontos singulares ou os valores diferenciais do conjunto enunciativo (da mesma forma ele definirá as relações de forças por distribuições de singularidades num campo social). Quando ele recusa a originalidade do enunciado, quer dizer que a eventual contradição de dois enunciados não é suficiente para os distinguir, nem para afirmar a novidade de um em relação ao outro. Porque o que conta é a novidade do próprio regime de enunciação, no momento em que ele pode englobar enunciados contraditórios. Por exemplo, se perguntará qual o regime de enunciados que apareceu com o dispositivo da Revolução francesa, ou da Revolução bolchevique: é a novidade do regime que conta, e não a originalidade do enunciado. Assim, todo o dispositivo se define pelo seu conteúdo exato de novidade e criatividade, que marca, ao mesmo tempo, a sua capacidade de se transformar, a menos que, ao contrário, seja desprovido de força sobre suas linhas mais duras, mais rijas ou mais sólidas. Na medida em que elas escapam das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetiva-ção parecem particularmente capazes de traçar os caminhos de criação, que não cessam de abortar mas também de ser retomados, modificados até a ruptura do antigo dispositivo. Os estudos ainda inéditos de Foucault sobre os diversos processos cristãos abrem, sem dúvida, numerosas vias a este respeito. Não se acreditará portanto que a produção de subjetividade esteja reservada à religião: as lutas anti-religiosas são igualmente criadoras, da mesma forma que os regimes de esclarecimento, de enunciação ou de dominação passam pelos domínios mais diversos. As subjetivações modernas não se parecem mais com as dos gregos do que com as do cristãos, e o mesmo se passa com o esclarecimento, os enunciados e os poderes.
Pertencemos a dispositivos e agimos neles. A novidade de um dispositivo em relação aos precedentes chamamos a sua atualidade, a nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nos tornamos, o que estamos a caminho de nos tornar, ou seja, o Outro, nosso tornar-nos-outro. Em qualquer dispositivo é preciso distinguir entre o que somos (o que já não somos mais) e o que estamos a caminho de nos tornar: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho disto que somos e que deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço do que nos tornamos. Se bem que a história ou arquivo é isto que nos separa de nós mesmos, enquanto o atual é este Outro com o qual já coincidimos. Acreditou-se por vezes que Foucault desenhava o quadro das sociedades modernas como outros tantos dispositivos disciplinares, por oposição aos velhos dispositivos de soberaneidade. Mas não se trata disso: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que deixamos de ser pouco a pouco, e nossa atualidade se delineia em dispositivos de controle aberto e contínuo, muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault está de acordo com Burroughs, que anuncia nosso futuro mais controlado que disciplinado. A questão não é saber se isto é pior. Já que também apelamos para produções de subjetividade capazes de resistir a esta nova dominação, muito diferentes daquelas que se exerciam recentemente contra as disciplinas. Uma nova luz, novas enunciações, uma nova potência, novas formas de subjetivação? Em qualquer dispositivo devemos distinguir as linhas do passado recente e as do futuro próximo: a parte do arquivo e a do atual, a parte da história e a do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo, é porque se serviu da história em proveito de outra coisa: como dizia Nietzsche, agir contra o tempo e assim sobre o tempo, em favor, eu o espero, de um tempo por chegar. Porque, segundo Foucault, o que aparece como o atual ou o novo é aquilo que Nietzsche chamava o intempestivo, o inatual, este devir que se bifurca com a história, este diagnóstico que assegura a continuidade da análise com outros caminhos. Não predizer, mas estar atento ao desconhecido que bate à porta.
Nada o demonstra melhor que uma passagem fundamental de Archéologie du savoir, válida para toda a obra (p. 172): «A análise do arquivo comporta, portanto, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, é a borda do tempo que envolve nosso presente, que o cobre e que o indica na sua alteridade, é aquilo que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo abre suas possiblidades (e a maestria de suas possibilidades) a partir dos discursos que, justamente, acabam de deixar de ser os nossos; o seu patamar de existência é instaurado pelo corte que nos separa daquilo que não podemos mais dizer, e do que sai fora de nossa prática discursiva; ela começa com o exterior de nossa própria linguagem; seu lugar é o distanciamento de nossas práticas discursivas. Neste sentido, ela é válida para o nosso diagnóstico. Não porque ela nos permitisse traçar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar antecipadamente a figura que teríamos no futuro. Mas ela nos desprende de nossas continuidades; ela dissipa esta identidade temporal onde gostamos de nos olhar a nós mesmos para afastar as rupturas da história; ela quebra o fio das teologias transcendentais; e lá, onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade, ela faz surgir o outro, o exterior. O diagnóstico assim entendido não estabelece a constante da nossa identidade pelo jogo das distinções. Estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras».
As diferentes linhas de um dispositivo se repartem em dois grupos, linhas de estratificação ou sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última conseqüência deste método diz respeito a toda a obra de Foucault. Na maior parte de seus livros, ele assegura um arquivo bem delimitado, com meios históricos extremamente novos, sobre o hospital geral no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão no século XIX, sobre a subjetividade na Grécia antiga, depois no cristianismo. Mas é a metade da sua tarefa. Já que, por preocupação de rigor, por vontade de não misturar tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra metade. Ele a formula, só e explicitamente, nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus grandes livros: que se passa hoje com a loucura, a prisão, a sexualidade? Que novos modos de subjetivação vemos aparecerem hoje que, certamente, não são gregos nem cristãos? Particularmente esta última questão obcecou Foucault até o fim (nós que não somos mais gregos, nem mesmo cristãos...). Se, até o fim da sua vida, Foucault deu tanta importância às entrevistas, na França e mais ainda no estrangeiro, não foi pelo gosto da entrevista, mas porque ele aí traçava estas linhas de atualização que exigiam um outro modo de expressão que as linhas assinaláveis nos grandes livros. As entrevistas são diagnósticos. É como em Nietzsche, de quem é difícil ler as obras sem aí juntar o Nachlass contemporâneo de cada uma. A obra completa de Foucault, tal como a concebem Defert e Ewald, não pode separar os livros todos marcantes e as entrevistas que nos conduzem para um futuro, para um devir: os estratos e as atualidades.
* Este texto foi extraído da intervenção de Gilles Deleuze no colóquio «Mi-chel Foucault, filósofo», realizado em janeiro de 1988 pela Associação para o Centro Michel Foucault.
cooperação.sem.mando
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