Se algo caracteriza a trajetória de Cuba, nos últimos cinquenta anos, é o exercício permanente da invenção. Desde que um grupo de jovens guerrilheiros derrotou, com forte apoio popular, o exército do ditador Fulgencio Baptista e assumiu o poder, em 1959, a ilha tem insistido em contradizer certezas estabelecidas. Algumas das trilhas abertas foram brilhantes. A garantia de Saúde, Educação e acesso à Cultura para todos, num país economicamente subdesenvolvido. A irreverência diante do poder imperial dos Estados Unidos, mesmo quando o “socialismo real” naufragou e parecia não haver alternativas ao capitalismo. A ação de médicos cubanos pelo mundo, enfrentando emergências e epidemias em regiões remotas e esquecidas, às quais faltava apoio da ONU – para não falar das grandes potências. Outros passos resultaram em tragédias. A deriva, nos anos 1970, para um stalinismo tardio, que perseguiu de dissidentes políticos a homossexuais. Ou a estatização completa da economia, um pouco antes, burocratizando e empobrecendo a produção, ao privá-la da criatividade e do talento típicos dos cubanos.
Anunciadas em 13 de setembro, a demissão de 500 mil servidores públicos e o estímulo à formação de cooperativas ou à iniciativa econômica pessoal, em cerca de 140 atividades econômicas, expressam, provavelmente, um novo esforço de Cuba para reinventar-se. Provocarão múltiplos desdobramentos. Destacarão o país o noticiário internacional, ao longo dos próximos meses. Estimularão os que não suportam a ousadia da ilha a insinuar que todo desafio à lógica dos mercados será castigado… Em contrapartida, obrigarão os amigos de Cuba a conhecê-la em maior profundidade – sem a segurança ilusória dos chavões e palavras-de-ordem.
Disposto a participar deste esforço, o site Outras Palavras vai iniciá-lo de modo incomum. Ao invés da análise política, a crônica histórica. No lugar de um dirigente partidário ou cientista político, um artista. Em 30 de setembro, o escritor, poeta e jornalista Félix Contreras falará, em São Paulo (com transmissão ao vivo, via internet), sobre “Cuba: Jornalismo e Literatura num país que se reinventa”. Autor de livros publicados em seu país e em diversos outros da Europa e América Latina (veja aqui alguns de seus poemas), Félix é, mais que testemunha, um personagem da revolução. Tornou-se o que é em suas asas. Mais de uma vez, foi tragado por ela. Compartilhará um pouco desta história, que nos últimos dias o frequenta mais que de costume.
Ontem (20/9), por exemplo, emocionou-se ao responder perguntas que recebeu no computador. A revista Jiribilla pedia que narrasse sua presença na primeira turma da Escola Nacional de Instrutores de Arte (ENIA), fundada em 1961. Félix lembrou-se de que a bolsa para estudar em Havana o livrou de uma existência banal. Forçado pelo padrasto a deixar os estudos, vendia frutas em Pinar del Rio (poupava gorjetas para comprar revistas ilustradas, entre elas a brasileira O Cruzeiro). Subitamente, viu-se “num ateliê renascentista, sem muros entre ballet e dança, entre teatro e vida, entre música popular e clássica, entre ‘boas’ e ‘más’ palavras, convivendo com Michelangelo, Chaplin, Marx, Martí, Cervantes, Picasso, Chekhov, Beethoven e Stravisnky”.
A abertura da revolução à cultura levou ao florescimento, nos primeiros anos, de uma imprensa profunda e sofisticada. A revista Cuba Internacional, estimulada por Fidel, circulava no país e em ambientes intelectuais do exterior (sem que soubesse mover as pedras no tabuleiro, Félix foi encarregado de frequentar os bastidores do torneio internacional de xadrez realizado em 1968 no Hotel Habana Libre, apenas para narrar a atmosfera social entre as partidas). Em 1966, doze poetas lançaram Palavra, o primeiro manifesto estético da literatura cubana e criaram a revista El Caimán (jacaré) Barbudo.
Mas este espírito de liberdade seria sacrificado pouco depois, quando pareceu acirrar-se a Guerra Fria e vieram as primeiras frustrações econômicas. A partir de 1970, o jornalismo com ambições de literatura passou a ser visto como um desvio – assim como as ideias não-alinhadas à liderança política, as opções sexuais não-ortodoxas, os cabelos compridos e as roupas muito coloridas. Félix e os doze caimaneros foram afastados primeiro da revista poética; depois, de Cuba Internacional. A repressão vinha com jeitinho cubano. O Estado oferecia a cada um dos demitidos doze folhas de cheque por ano, cada uma correspondente a um mês de salário. O poeta rebelou-se, recusou o cala-boca e passou sete anos esfregando o chão, para ganhar a vida. Foi resgatado sete anos depois, quando o Estado reviu parte dos erros (neste mesmo ano, criou-se o ministério da Cultura, entregue a um jovem escritor, Abel Prieto). Dirigiu, até 1988, o setor de imprensa da Casa das Américas. Lá, pôde ampliar a proximidade com a América Latina.
Aos 72 anos, Félix é parte das dores e delícias de Cuba. Alguém já chamou sua casa, em El Vedado, de um Consulado Brasileiro heterodoxo, que inúmeros amigos (e amigas) usam como base para seus recorridos pela capital. Participa da organização do Festival Internacional de Poesia. Em sua casa, tem acesso à internet.
Parte dos amigos emigrou; outros, morreram. Seu trabalho produz convites constantes para viajar ao exterior – que ele aceita e desfruta. Em mais de uma ocasião, uma boa companhia sugeriu que ficasse. Garante que sempre recusará: é capaz de morrer pela revolução, mas quer estar vivo para mudá-la. Contará um pouco de sua vida, tão entrelaçada com a de Cuba revolucionária, no próximo dia 30. Em seguida, passará a escrever Crônicas Cubanas, para Outras Palavras.
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