sexta-feira, 17 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Ricos, decadentes e malvados

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Ricos, decadentes e malvados - Por Antonio Martins e Pep Valenzuela
Em silêncio, porém rapidamente, alguns dos símbolos de civilização e prosperidade que tornavam o “primeiro mundo” orgulhoso e cobiçado estão se desfazendo. Na Europa rica, antigo reduto do “Estado de bem-estar social”, fala-se em adiar a aposentadoria em toda a parte — na Holanda, para depois dos 70 anos… Questiona-se o seguro-desemprego. Eliminam-se serviços de assistência sofisticados (como a renda dos portadores de deficiência e doentes acamados, na Espanha). Coloca-se em xeque conquistas políticas marcantes (como a autonomia regional italiana, ameaçada por cortes dramáticos no orçamento locais). As ilusões de afluência de alguns países dissipam-se: na Irlanda, o PIB despencará 10%, este ano. Os imigrantes retornam (especialmente à América Latina), tornando as sociedades menos diversas. Nos Estados Unidos, dezenas de cidades (entre elas, Philadelphia, Fresno e Colorado Springs) estão desligando parte da iluminação de rua. Por falta de recursos para mantê-las, estradas de asfalto são reduzidas a cascalho. A demissão em massa de professores e a reversão de programas educacionais, obrigam Estados (o caso mais drástico é o Havaí) a reduzir o ano escolar.
Na Europa, embora o desmonte houvesse se esboçado alguns meses antes, seu estopim foi a quebra da Grécia, em maio — e a Alemanha foi o protagonista decisivo. A partir de janeiro, os compradores de títulos públicos gregos passaram a exigir taxas de juros cada vez mais altas para renovar suas aplicações, ou simplesmente migraram para outros papéis. A moeda atacada era o euro, adotado por Atenas desde 2000; devido à pouca importância relativa da economia grega, a sangria poderia ter sido debelada com facilidade, em seu nascedouro, pela União Europeia (UE). Porém, o bloco permaneceu dividido e paralisado. A chanceler alemã, Angela Merkel, comandou o grupo de governantes contrários ao socorro. Argumentou que os gregos viviam acima de suas possibilidades e era preciso forçá-los à disciplina.
A falta de ação alastrou o incêndio. No final de abril, a espiral de juros e a dificuldade de rolar a dívida já atingiam Espanha e Portugal. Especulava-se sobre outros países na fila e temia-se uma crise sistêmica nos circuitos de crédito, semelhante à deflagrada em setembro de 2008, com a quebra do banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers. Berlim só flexibilizou sua posição em 10 de maio, após os sobressaltos de uma “sexta-feira negra” nos mercados financeiros. Mas exigiu contrapartidas ultura-draconianas, até então inéditas na Europa.
A Alemanha comandou, política e financeiramente, a formação de um Fundo Europeu de Estabilização. Ele colocará 500 bilhões de euros à disposição dos Tesouros ameaçados pela especulação. No entanto, os países que precisarem recorrer aos recursos estarão obrigados a se submeter, também, ao FMI (que aportará mais € 250 bilhões) e às suas conhecidas condições. O arranjo instaurou um clima de pânico e deflagrou a adoção de “ajustes fiscais” em todo o Velho Mundo (veja, nos boxes, a situação dos principais países atingidos). Como ocorrera em crises anteriores, na América Latina, Sudeste da Ásia e Leste Europeu, as principais medidas foram adotadas sumariamente, sem nenhum debate real entre as sociedades ou mesmo nos Parlamentos. Dominada pelo centro-direita e direita, a maior parte dos governos e legislativos não hesitou em agir contra os serviços públicos e direitos sociais. Mas os social-democratas (no poder na Espanha, Portual e Grécia) tampouco resistiram.
O choque foi agravado porque medidas de austeridade foram adotadas inclusive por países europeus que vivem situação financeira muito confortável. O parlamento francês prepara-se para elevar em dois anos a idade mínima para aposentadoria. A própria Alemanha, que tem superávit comercial superior a € 150 bilhões ao ano e cujo Tesouro capta recursos pagando juros reais em torno de zero, cortou 10 mil postos no serviço público. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, prevaleciam posições de idêntico sentido. Em junho, o Senado recusou-se a prolongar medidas de apoio aos desempregados decretadas em 2008, embora os índices de desocupação sejam os maiores desde 1930. Obama conformou-se e aderiu ao discurso de “austeridade”. No mesmo mês, o G-20 reuniu-se em Toronto e decidiu (mais uma vez sob liderança da emblemática Ângela Merkel) recomendar a redução dos déficits públicos “ao menos pela metade”, até 2013. O norte-americano Paul Krugman, Nobel de Economia (2008), considerou tal decisão “escandalosa, já que a economia mundial está muito longe da recuperação” — e não será possível reativá-la sem ação dos Estados.
II. Para que um conjunto tão vasto de medidas impopulares seja possível, um dogma tem sido ressuscitado: o da suposta ineficiência dos serviços públicos. Alardeia-se que os Estados estão gastando mais do que arrecadam. Mas se omitem os motivos. O gráfico abaixo, elaborado pela revista The Economist a partir de estatísticas oficiais referentes ao G-7, mostra que o endividamento estatal oscila, em última instância, ao sabor de decisões políticas. Ou seja, seu aumento ou diminuição são comandados pela sociedade, não por lógicas econômicas imutáveis.
De 1950 a 1973, quando prevaleceram políticas de apoio ativo ao desenvolvimento e ao bem-estar social, que exigiam forte investimento público, as dívidas… diminuíram constantemente. Caíram de mais de 110% do PIB (o esforço exigido pela II guerra atolou os Tesouros de débitos) para 30%. Os Estados souberam usar o elenco de mecanismos de que dispõem para reduzi-las. Já entre 1974 e 2008, foram hegemônicas as ideias que pregavam o “Estado mínimo”, a confiança na alegada virtuosidade dos mercados e, portanto, os cortes de gastos. Nessa fase, contraditoriamente, o endividamento público… cresceu sem parar — até chegar a quase 90% do PIB do G-7. Novamente, o fator decisivo foi a ação dos Estados — então, fortemente comprometidos em transferir riqueza aos mais ricos, a pretexto de “estimular os investidores”.
A seção mais impressionante da curva é a que se refere ao período que vai de 2008 a 2012 (inclui previsões). A trajetória da dívida pública entra em ascensão vertical. Bastam quatro anos para que seu percentual passe a 120% do PIB. É natural: trata-se justamente da fase que corresponde à crise financeira global. Nela, os Estados dispenderam rios de dinheiro para evitar que se repetisse uma depressão dramática como a dos anos 1930. Uma das ações mais onerosas foi o resgate das instituições financeiras que estavam à beira do abismo devido à sua própria irresponsabilidade — e que ameaçavam levar consigo o conjunto das economias.
III. Mas há algo além de ideologia, por trás da ofensiva contra os direitos sociais e serviços públicos. Ela é uma revanche das elites; uma tentativa de deixar para trás as sérias derrotas econômicas e políticas sofridas nos dois primeiros anos de crise. Do ponto de vista financeiro, a manobra é clara. Nos anos anteriores ao grande terremoto financeiro de 2008, grandes bancos internacionais fizeram aplicações de cerca de 2,5 trilhões de euros na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. As garantias oferecidas pela União Europeia e FMI protegem estes recursos contra um eventual calote. Em 5 de agosto a revista britânica The Economist informava que os balanços trimestrais de algumas das maiores instituições financeiras europeias (como o HSBC inglês e o BNP francês) voltavam a registrar lucros expressivos. A causa principal, reconhecia o semanário, é a redução expressiva (40%, no caso do HSBC) das perdas provocadas por empréstimos de risco — em grande medida assumidos pelos Estados.
Além disso, destaca o filipino Walden Bello, da ONG asiática Focus on the Global South, o requentamento do discurso que alardeia a “ineficiência” dos Estados ajuda a remendar a imagem do mundo financeiro, seus grandes executivos e políticos que o apoiam. No auge da crise, a opinião pública revoltou-se contra estes personagens, ao tomar conhecimento de suas práticas de cassino, fraudes costumeiras e salários nababescos. Fenômenos políticos de enorme repercussão, como a eleição de Barack Obama nos EUA, foram possíveis em grande medida graças a esta repulsa. Nos últimos meses, porém, ela tem sido mitigada pelo surgimento de um novo vilão — o governante supostamente perdulário, que a mídia ajuda a demonizar.
A revanche das elites assusta por seu grau de hipocrisia e egoísmo, considera Paul Krugman. Ele ressalta que, em nome do combate ao déficit público, uma maioria de parlamentares norte-americanos, dos dois grandes partidos, está disposta a aprovar qualquer corte de despesas — inclusive as que atingem os serviços de infra-estrutura, os mais pobres e os desempregados. O plano de auxílio-desemprego suplementar, recentemente rejeitado pelo Legislativo, foi considerado “inviável” por custar 77 bilhões de dólares. Mas os mesmos congressistas que o derrubaram rejeitam terminantemente rever as isenções fiscais em favor adotadas durante o governo Bush — embora elas beneficiem apenas os 1% mais ricos da população custem 1,3 trilhão de dólares ao Tesouro. Para Krugman, o que está em curso agora é uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentração de renda vivido entre 1973 e 2010. No período, “a renda de 90% das famílias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, enquanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda” e “a diferença entre os salários dos executivos-chefes das grandes corporações e o rendimento mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes”.
IV. A que futuro a Europa — e, de forma mais ampla, o antigo “primeiro mundo” — estão sujeitos, se prosperar a revanche das elites? Do ponto de vista social, é fácil enxergar. Além de reduzirem o déficit do Estado concentrando riqueza, os “ajustes fiscais” têm, do ponto de vista da economia internacional, o objetivo de aumentar a competitividade dos países que os promovem. O pensamento ortodoxo prega que, ao se tornarem mais “baratos” para as empresas (salários mais baixos, impostos sobre o capital reduzidos), os países atraem investimentos, produzem e exportam mais. Mas se a mesma receita é seguida por muitas economias simultaneamente, a redução de custos de cada um é neutralizada pelas dos demais. Produz-se o que o economista Randal Wray, da Universidade de Missouri, chamou de uma “corrida para o abismo”, na qual “vence quem for o maior perdedor”. Na Europa, tem frisado Krugman, esta disputa bizarra é agravada pelo ajuste fiscal da Alemanha. País de maior produtividade e enorme saldo comercial frente a seus vizinhos, ela precisaria, em favor da coesão e equilíbrios europeus, elevar seu consumo. Ao reduzi-lo, “vai prejudicar a recuperação da zona do euro, que terá mais dificuldades para exportar”.
Mas Krugman empenha-se em debater as medidas recentes também do ponto de vista da teoria econômica. Cada vez mais pessimista, ele diz temer, em seus artigos para o New York Times, que o egoísmo das elites seja destrutivo a ponto de provocar algo semelhante à Longa Depressão iniciada em 1873 — ou, ao menos, uma estagnação duradoura.
Num cenário de crise global ainda não superada, diz ele, os governos deveriam ter coragem de afirmar que o Estado precisa “ampliar enormemente o gasto público, e produzir déficits orçamentários maiores, para provocar uma recuperação robusta”. Quando ela se realizar, será fácil reduzir a divida. Mas se ela não se produzir, o setor público e a sociedade permanecerão no pântano — e as redução estatística da despesa pública consolará apenas os tolos.
V. A investida elitista encontra resistências. Conforme mostram os boxes de nossa matéria, na maior parte dos países europeus que iniciaram processos de “ajuste fiscal”, houve protestos e paralisações. Na Grécia, eles se transformaram em autêntica revolta popular. Na Itália, manifestações coordenadas em diversas cidades reuniram 1 milhão de pessoas. Em Portugal, a mobilização repercutiu no parlamento e ajudou a constituir uma frente de oposição às medidas que reúne, além dos três partidos mais à esquerda, dissidentes de centro e centro-direita. Entre os trabalhadores, o setor que mais se mobilizou foi o funcionalismo público — o mais imediatamente atingido pelos cortes de serviços, reduções de salários e ataque aos direitos previdenciários.
Mas estas ações não foram suficientes, até o momento, para evitar retrocessos. Há uma razão objetiva para tanto, já vivida no Brasil. Os “ajustes fiscais” decretados em sequência a crises financeiras assemelham-se à versão política das guerras-relâmpagos. Os pacotes de medidas são apresentados e votados em poucos dias e sob ameaças. Os governantes afirmam que a rejeição das propostas dissolverá o país — e são apoiados pela mídia.
Além disso, é possível que as debilidades das lutas revelem insuficiências mais estratégicas da esquerda. Em quase todos os casos, os protestos enfatizam a resistência, o não. Diante de uma crise, como em face de um incêndio, não basta apontar os que foram negligentes, ou denunciar os que ganharão com a tragédia. É preciso propor uma saída, um sim. E falta visivelmente, aos movimentos que saem às ruas ou paralisam o trabalho, uma alternativa.
VI. Embora ainda não tenham ganhado as passeatas, alternativas inovadoras estão despontando de alguns pensadores e centros de pesquisa ligados aos movimentos sociais. Sediado em Washington, o Center for Economic and Political Research tem produzido estudos de caso importantes, em geral ligados a países europeus. Um deles, recente, é assinado por Mike Weisbrot. Intitulado “Alternativas à austeridade fiscal na Espanha”, dedica-se à análise dos planos adotados no primeiro semestre pelo governo Zapatero. Considera os cortes de despesas públicas “desastrosos, além de desnecessários. Frisa que ajudarão a elevar o desemprego de 8,5% para 20% da população economicamente ativa.
Mas não param na denúncia: oferecem uma alternativa. Sugerem que o Banco Central Europeu aja como o Fed norte-americano e compre títulos da dívida da Espanha até um limite de 4% do PIB. Na Europa, isso teria um efeito político maior: mostraria que sim, há liberdade; não, as sociedades não precisam se conformar com o corte de direitos.
Num outro artigo, publicado pelo Le Monde Diplomatique francês, James Kenneth Galbraith vai além. Não pensa num caso específico, mas na Europa como um todo. Mas ao invés de reduzir direitos em toda parte, como se faz agora, quer nivelá-los por cima. Não basta, crê Galbraith, recompor o Estado de bem-estar social do pós-guerra. Para enfrentar a ofensiva das elites, é preciso ir além das fronteiras nacionais, construindo “um regime fiscal integrado, um banco central dedicado à prosperidade econômica e um setor financeiro que não cause danos”.
Filho do lendário John Galbraith, James quer chegar a tanto pela trilha de uma igualdade ainda não imaginada sequer pela esquerda. Sugere unificar os regimes de aposentadoria (a partir dos mais completos, “a fim de que os trabalhadores de Portugal, Grécia ou Espanha beneficiem-se das normas em vigor nos países mais avançados”), “um salário mínimo decente parta todos os assalariados da União, e um Banco Europeu de Investimentos para financiar a criação de universidades transnacionais e garantir ensino de qualidade de norte a sul”.
Os custos seriam suportáveis? Galbraith responde que sim, desde que haja, adaptada à época que vivemos, vontade política equivalente à que permitiu o surgimento do Estado de bem-estar social. “Certamente, as reformas implicariam impostos mais pesados. Mas eles afetariam mais os ricos nos países pobres que os pobres nos países ricos”.
VII. Do ponto de vista das lutas sociais, a Europa é hoje um continente difícil. Uma ampla parcela da população, envelhecida, vê as conquistas sociais mais como privilégios que como direitos. A integração com os imigrantes é problemática — muito mais que nos próprios Estados Unidos. A formulação de propostas como a de Galbraith é um enorme alento, mas seria ilusório esperar que elas se concretizem no curto prazo.
Talvez um outro aspecto mereça, por ora, ser mais celebrado. Depois de cinco séculos, o Velho Continente — e, por extensão, o antigo “primeiro mundo” — perderam grande parte da capacidade exportar suas políticas para todo o planeta. Esta tendência perdurou até um passado muito recente. Ainda na década de 1980, o chamado “consenso de Washington” espalhou-se como rastro de pólvora — especialmente na América Latina –, pouco depois de formulado e proposto.
Agora, o mundo vive uma espécie de insubordinação silenciosa das periferias. Embora sem conflito, seguem-se na Ásia, na América do Sul e mesmo em certos países da África, outras políticas. Ainda que discreta, há certa distribuição de riquezas. No plano internacional, não se aceita mais a suposta superioridade do “Ocidente” branco. Sua supremacia é cada vez mais questionada — concreta e simbolicamente — inclusive no terreno decisivo das finanças.
Em curioso sinal dos tempos, os chineses avançaram, no início de agosto, num território antes vedado: o das agências de classificação de risco, que estabelecem “conceitos” para o crédito dos países. No dia 3, o diário londrino Financial Times ouviu Guan Zhianzong, responsável pela recém criada Dagong Global Credit Rate. Sem meias palavras, o entrevistado afirmou: “As agências de ranqueamento ocidentais são politizadas e altamente ideológicas. Não seguem padrões objetivos”.
A alfinetada tinha respaldo oficial e endereço certo. Horas depois, a agência de notícias Xinhua, de Beijing, publicava um comentário entusiasmado, saudando “o passo importante de quebrar o monopólio ocidental de agências de risco, das quais a China foi vítima por longo período”. Na matéria do Financial Times, o próprio Zhianzong frisou que, segundo os critérios de sua companhia, os Estados Unidos — um dos centros da revanche das elites — “estão insolventes e arriscam-se à bancarrota, na condição de nação puramente devedora”.

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