sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

a vida segue

hoje sofri uma alta descarga de pressão na parte superior de meu cérebro. sou surda, ou melhor, pelas metades surda, portanto quando começo a ouvir coisas que não acredito que alguém ainda possa pensar e dizer isso, imediatamente aciono um mecanismo de defesa que cria uma ilusão de que eu não esteja ouvindo direito o que esteja sendo falado, o que provoca a tal descarga que congela a parte superior do cérebro. quando me acontece isso, há uma só coisa que pode aliviar tal quadro: caminhar! não adianta conversar. não adianta pensar. não adianta tentar desligar. tenho que caminhar. e nessas de caminhar, sempre encontro alguém com quem possa, depois de um pouco aliviada, ir conversando... quando vejo, a coisa passou!
antes de caminhar pensei: malditos sejam todos os dias, todas as horas, todas as pessoas e todas as coisas que me ensinaram a pensar! malditos, todos!
o primeiro livro com que minha mãe me presenteou e que me fez querer ler outros e outros livros. as professoras que me provocavam a ler e escrever. o bolicho em que aprendi conversar, escutar, escrever, calcular, ser meticulosa, racional. o moinho de grãos, que me ensinou a idéia e os movimentos de um processo. a água, que me ensinou a respeitar a natureza. o dínamo, que me ensinou as formas de se produzir energias, movimentos, luz e outros desdobramentos. o mundo e as convenções conservadoras, que me ensinaram a indignação com as coisas pré-moldadas. tantas coisas, tantas coisas! malditas sejam todas!
maldito seja, também, o dia em que conheci a literatura, foucault, deleuze, guattari, niezstche, bergson, spinoza e tantos outros.
maldito seja o dia em que aprendi a pensar e problematizar tudo o que via, sentia ou percebia!
poderia ter sido uma pacata conservadora, alienada, indiferente, defensora dos males que acabam com as dignidades humanas, cega, surda e muda frente às injustiças sociais, humanas e outros quetais.
poderia achar "normal" que os rebentos dos pobres vendessem o corolário escrito em papiros, nos cruzamentos cruzados pelos ricos motorizados, travestidos com suas gravatas podres (como diz meu amigo roger), com seus panos propositadamente amassados para parecerem rotos, com seus vidros fumês, com suas vidas blindadas às pragas das outras vidas, com seus descasos programados, com suas hipocrisias com jeito de modo de viver superior, com seus perfumes feitos das essências das vidas alheias, com suas horas marcadas nos manicures, pedicures e cabeleireiros, com suas sandálias feitas com passos programados sempre nos mesmos rumos!
poderia ser assim, sim, mas depois de cinco goles e meio de uma aguardente forte, percebo que então não seria eu! não sofreria essas descargas de pressão na parte superior de meu cérebro. teria cara de quem não está entendendo exatamente o sentido dos idealismos e das conversas. baixaria meus olhos e olharia somente para o infinito do chão que, incompreensivelmente, estaria sob os meus pés. arranjaria compromissos bestas para correr de meus compromissos não bestas. marcaria as coisas bestas para o mesmo horário das coisas não bestas. tomaria meu medicamento de dormir, de não pensar e de não viver. cruzaria os braços. seria uma casca portadora de um grande vazio, de um imenso vácuo. provavelmente não teria orgasmos e nem outras emoções intensas, ou me diria depressiva, fortemente depressiva. não faria literatura e nem intempestivas declarações de afetos. não acreditaria em poesia. e nem em gente. seria somente uma linha no horizonte do infinito do nada.
isso, não seria eu!
olho para o dia e para as coisas que me provocaram a pressão na parte superior do cérebro, esqueços os malditos todos que citei e rendo-lhes minha reverência, agradecendo por essa parte superior do cérebro, que reage às coisas que lhe provocam pressão! lembro de uma índia que me olhou no fundo da existência e disse: "vai, porque a vida segue!"... era uma índia do fogo... só quem sabe o que isso significa, sabe o poder desse ensinamento! a vida segue somente para quem está em movimento... quem está correndo atrás do prejuízo, já perdeu, pois parou no ponto da imobilidade! sem idealismos! sem pensamentos! sem problematizações! sem vida! sem movimento! de braços cruzados!

Um comentário:

  1. Essa pressão que sentes e que te assola o cérebro é justamente o que precisa ser sentido, tudo na dose certa, na medida certa. As superficialidades, as unhas coloridas, os nós das podres gravatas logo se evaporarão, engolidas pelo cotidiano. Caminhe, logo pessoas caminharão contigo. Caminhado vamos indo.

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