domingo, 6 de fevereiro de 2011

divulgação: POLÍCIA E CIDADANIA

São onze horas da noite e encerramos nossa reunião de pesquisa. Saímos para um lanche. Mais tarde, dou carona a quatro pesquisadores. Em alguns instantes estaria na porta do edifício onde reside o último amigo. Na esquina da Rua Dr.Veiga Filho com a Amaral Gurgel, diante do semáforo vermelho, observo uma “batida” policial adiante, no Largo do Arouche. Poderia ter virado à esquerda ou à direita e escolhido uma rota de fuga de um imediato incômodo. Prefiro seguir em frente.
Um policial me pára e propõe o teste do bafômetro que não me recuso fazer. Em seguida, indica que estacione o automóvel em 45 graus. Estão à nossa frente 4 ou mais viaturas enfileiradas e ao seu redor vários policiais armados. Dois deles, com as mãos nos revólveres intimam-nos a sair do carro. Perguntam, de forma autoritária, se temos passagem. Conhecedores da linguagem, respondemos: não!
 Exigem os documentos de identificação de cada um e do automóvel. Procuro responder de forma amistosa e me informar sobre o que acontece. Eles exigem que me cale e os tratem por senhor. Esbravejam respeito às suas autoridades com lapidares frases histriônicas próprias a uma comédia vulgar e ordenam que esperemos na calçada. Pergunto-me: como seria tratada uma senhora ou uma garota que passasse naquele local, na mesma hora, por policiais tão superiores, autoritários e presunçosos?
Como sempre, na madrugada ou à luz do sol, os tensos policiais consideram cada cidadão um suspeito, um sujeito perigoso, alguém que deve obedecer às suas ordens sem responder, ou um submisso esperto e capaz de representar o ato esperado dos delinquentes: mãos para traz, um sim, senhor para qualquer ordem, cabeça baixa, enfim, a velha e velhaca cena contracenada pelo policial e o bandido numa batida.
Eles não admitem estar diante de um cidadão, mas tratam cada um como um vagabundo consumado, enquanto verificam os documentos. Rememoro, rapidamente, os tempos da ditadura e as batidas idênticas a essa durante a caça aos subversivos: todo policial vê o cidadão como um fora da lei enquanto ele, simultaneamente, é a lei e está acima da lei. Estabelece-se um comando apodrecido que pretende a sujeição do cidadão à autoridade policial e deixá-lo reduzido, muitas vezes, à condição de passageiro para o cárcere. Reproduz-se a conduta autoritária que deve silenciar e que exige obediência calada do cidadão.
Não apresento o documento do automóvel. Eles querem saber quem é o proprietário. Comunico que posso solicitar que o documento esteja ali em poucos minutos. Eles dão as costas. Fazem o seu trabalho! Eu e meu amigo conversamos na calçada calmamente, depois de informarmos uma advogada pelo celular. Sabemos que tudo é possível. Uma palavra que desagrade o poderoso policial pode ser o início de um macabro teatro do absurdo! O tempo passa, alguns carros são parados, outros seguem caminho. Decido ir ao policial e perguntar quanto tempo ainda demorará. Estamos cansados e eles nos querem dar uma canseira. O policial manda que eu espere. Volto a abordá-lo outras vezes até que depois de idas e vindas, ele fala mansamente, traçando reticências, que nos liberará em breve. Respondo-lhe, apenas, que aguardarei o documento de autuação e retorno à calçada.
Mais de 40 minutos depois nós entramos no carro para prosseguir.
Não só por exigências do meu trabalho de pesquisa, pergunto-me: qual o resultado dos variados programas implantados com dinheiro público para reformar a polícia? Cresceram as polícias e seus contingentes. Qual a diferença entre a polícia ditatorial e a polícia cidadã? Se a polícia imagina que a utopia do cidadão é a UPP, seguida da UPP social, e se cada cidadão quer mesmo que a polícia trate o outro como suspeito e bandido, isso é evidência de outro perigo a mais para cada um. A conduta entre o policial e o suspeito, seja ele quem for, permanece inalterada.
Pouco importa os quadros estatísticos sobre crescimento ou redução sazonal da criminalidade metropolitana, os relatórios científicos elaborados para colaborarem com políticas públicas e/ou as intermináveis palestras sobre cidadania: a polícia permanece um agente repressivo poderoso como instituição porque cada policial, antes de tudo, é um repressor. Em nome da panacéia chamada combate à impunidade os cidadãos apreciam sua conduta, por certo similar à sua com filhos, mulheres e subalternos... O governo policial sobre a vida encontra-se tanto no fardado como no civil e fortalece uma austeridade e um autoritarismo escancarados no cotidiano.
Assim, conserva-se a longo tempo a instituição, o policial e o cidadão educados pelo amor ao castigo, à punição, à obediência ao superior, produzindo uma sociedade de agentes e zeladores da ordem. Qual ordem? A do superior: seja ele um ditador ou um democrata disposto ao diálogo, compondo a sanha tolerante: a de fazer do outro aquele que deve ser manso e flexível para acatar o comando.
Como nem eu, nem meu amigo, tínhamos passagem (se tivéssemos, estigmatizados como qualquer infrator dimensionado como delinquente, estaríamos prestes a sermos encaminhados para a delegacia e...), tudo deveria acabar como mais um adendo à rotina do cidadão que não estava, naquele momento, com os documentos obrigatórios do automóvel.
Mas para um homem e pesquisador apreciador da liberdade não é assim que as coisas acabam. Não cabem as justificativas institucionais ou as palavras bem intencionadas dos reformadores do discurso policial. A polícia cidadã, armada ou não, científica e humanitária continua sendo a velha e podre polícia!
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Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol
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