segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

divulgação: INSTINTOS E INSTITUIÇÕES

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
INSTINTOS E INSTITUIÇÕES - por Por Gilles Deleuze*
O que se chama um instinto, o que se chama uma instituição, designam essencialmente procedimentos de satisfação. Ora reagindo por natureza a estímulos externos, o organismo extrai do mundo exterior os elementos de uma satisfação de suas tendências e de suas necessidades; esses elementos formam, para os diferentes animais, mundos específicos. Ora instituindo um mundo original entre suas tendências e o mundo exterior, o sujeito elabora meios de satisfação artificiais, que liberam o organismo da natureza submetendo-o a outra coisa, e que transformam a tendência propriamente dita introduzindo-a num meio novo; é verdade que o dinheiro livra da fome, com a condição de possuí-lo, e que o casamento poupa a busca de um parceiro, submetendo a outras tarefas.
 É dizer que toda experiência individual supõe, como um a priori, a preexistência de um meio no qual é conduzida a experiência, meio específico ou meio institucional. O instinto e a instituição são as duas formas organizadas de uma satisfação possível. Que na instituição a tendência se satisfaça, não há dúvida: no casamento, a sexualidade; na propriedade, a avidez. Objetar-se-á o exemplo de instituições como o Estado, às quais não corresponde nenhuma tendência. Mas está claro que tais instituições são secundárias, que elas supõem já comportamentos institucionalizados, que elas invocam uma utilidade derivada propriamente social, a qual acha em última instância o princípio do qual ela deriva na relação do social com as tendências. A instituição se apresenta sempre como um sistema organizado de meios. E bem essa, aliás, a diferença entre a instituição e a lei: esta é uma limitação das ações; aquela, um modelo positivo de ação. Contrariamente às teorias da lei que põem o positivo fora do social (direitos naturais), e o social no negativo (limitação contratual), a teoria da instituição põe o negativo fora do social (necessidades), para apresentar a sociedade como essencialmente positiva, inventiva (meios originais de satisfação). Uma tal teoria nos dará enfim critérios políticos: a tirania é um regime onde há muitas leis e poucas instituições, a democracia, um regime onde há muitas instituições, pouquíssimas leis. A opressão se mostra quando as leis incidem diretamente sobre os homens, e não sobre instituições prévias que garantam os homens. Mas se é verdade que a tendência se satisfaz na instituição, a instituição não se explica pe/a tendência. As mesmas necessidades sexuais não explicarão nunca as múltiplas formas possíveis do casamento. Nem o negativo explica o positivo; nem o geral, o particular. O «desejo de abrir o apetite» não explica o aperitivo, porque há mil outros modos de se abrir o apetite. A brutalidade não explica em nada a guerra; entretanto ela aí acha seu melhor meio. Eis o paradoxo da sociedade: falamos de instituições, quando nos achamos diante dos processos de satisfação que não desencadeiam nem determinam a tendência ao satisfazer-se - tampouco quanto os explicam as características da espécie. A tendência é satisfeita por meios que não dependem dela. Assim, ela nunca é sem ser ao mesmo tempo constrangida ou sabotada, transformada, sublimada. De tal modo que a neurose é possível. Bem mais, se a necessidade não encontra na instituição senão uma satisfação inteiramente indireta, «oblíqua», não basta dizer «a instituição é útil», ainda é preciso indagar: a quem é útil? A todos aqueles que têm necessidades? Ou a alguns (classe privilegiada), ou somente mesmo àqueles que fazem funcionar a instituição (burocracia)? O problema sociológico mais profundo consiste então em buscar qual é esta outra instância da qual dependem diretamente as formas sociais de satisfação das tendências. Ritos de uma civilização; meios de produção? Seja qual for, a utilidade humana é sempre outra coisa que uma simples utilidade. A instituição nos remete a uma atividade social constitutiva de modelos, dos quais não somos conscientes, e que não se explica pela tendência ou pela utilidade, uma vez que esta última, como utilidade humana, pelo contrário, a supõe. Nesse sentido, o padre, o homem do ritual, é sempre o inconsciente do usuário. Qual a diferença para com o instinto? Aí nada ultrapassa a utilidade, exceto a beleza. A tendência era satisfeita indiretamente pela instituição, ela o é diretamente pelo instinto. Não há interdições, coerções instintivas, de instintivas não há senão repugnâncias. Desta vez é a tendência propriamente dita, sob forma de um fator fisiológico interno, que desencadeia um comportamento qualificado. E sem dúvida o fator interno não explicara que, mesmo idêntico a si, ele desencadeie entretanto comportamentos diferentes nas diferentes espécies. Mas é dizer que o instinto se acha na encruzilhada de uma dupla causalidade, aquela dos fatores fisiológicos individuais e aquela da espécie propriamente dita - hormônio e especificidade. Logo, indagar-se-á apenas em que medida o instinto pode reduzir-se ao simples interesse do indivíduo: caso em que, no limite, não se deveria mais falar de instinto, mas de reflexo, de tropismo, de hábito e de inteligência. Ou só pode o instinto compreender-se no caso de uma utilidade da espécie, de um bem da espécie, de uma finalidade biológica primeira? «A quem é útil?» é uma questão que se reencontra aqui, mas seu sentido modificou-se. Sob seu duplo aspecto, o instinto se apresenta como uma tendência lançada num organismo com reações específicas. O problema comum ao instinto e à instituição é sempre este: como se faz a síntese da tendência e do objeto que a satisfaz? A água que eu bebo, com efeito, não assemelha-se aos hidratos dos quais meu organismo carece. Quanto mais o instinto é perfeito em seu domínio mais ele pertence à espécie, mais parece constituir uma potência de síntese original, irredutível. Porém quanto mais ele é aper-feiçoável, e portanto imperfeito, mais ele está submetido à variação, à indecisão, mais se deixa reduzir unicamente ao jogo dos fatores individuais internos e das circunstâncias exteriores, mais ele cede lugar à inteligência. Ora, no limite, como uma tal síntese dando à tendência um objeto que lhe convém poderia ser inteligente, uma vez que ela implica para ser feita um tempo que o indivíduo não vive, tentativas às quais ele não sobreviveria? É preciso decerto reencontrar a idéia de que a inteligência é coisa social mais que individual, e que ela acha no social o meio intermediário, o terceiro meio que a torna possível. Qual é o sentido do social em relação às tendências? Integrar as circunstâncias num sistema de antecipação, e os fatores internos, num sistema que regula a sua aparição, substituindo a espécie. É bem o caso da instituição. Anoitece porque nos deitamos; comemos porque é meio-dia.
Não há tendências sociais, mas somente meios sociais de satisfazer as tendências, meios que são originais porque são sociais. Toda instituição impõe a nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dá à nossa inteligência um saber, uma possibilidade de previsão, assim como de projeto. Nós reencontramos a conclusão seguinte: o homem não tem instintos, ele faz instituições. O homem é um animal se despojando da espécie. Assim, o instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição, as exigências do homem: a urgência da fome torna-se no homem reivindicação de ter pão. Finalmente, o problema do instinto e da instituição será apreendido, em seu ponto mais agudo, não nas «sociedades» animais, mas nas relações do animal e do homem, quando as exigências do homem incidem sobre o animal integrando-o em instituições (totemismo e domesticação), quando as urgências do animal encontram o homem, seja para dele fugir ou atacá-lo, seja para dele esperar alimento e proteção.
* In: Instincts & Institutions (col. «Textes et documents philosophiques», dirigida por G. Canguilhem - Classiques Hachette).
Tradução do francês por Fernando J. Ribeiro.
cooperação.sem.mando

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