segunda-feira, 31 de maio de 2010

Contos Desbotados

EMBAIXO DE UM PÉ DE JACA*
Quando conheceu um pé de jaca, ficou absolutamente impressionado. Aquela imagem jamais sairia de sua retina. Não era um pé de jaca qualquer, ou qualquer pé de jaca. Era um enorme pé carregado de jacas. Se não se tem idéia do que seja isso, do que seja uma jaqueira (deve ser assim que se chama o pé de jaca)/ um imenso pé carregado de jacas, é imprescindível que se faça alguma coisa para conhecer.
Quase armou uma rede para descansar embaixo do pé de jaca, mas achou que seria por demais ridículo, ao invés de meter o pé na jaca, acabar morrendo atingido por uma jaca. Passou um longo tempo a fantasiar como seria um traumatismo craniano provocado por uma jaca. De vez em quando tinha dessas bobeiras. Desistiu de descansar embaixo daquela sombra que poderia estar escondendo um furioso assassino.
Lembrou, imediatamente, de uma amiga que vivia preocupada com a mãe já velhinha, com seus noventa e tantos anos, e com um abacateiro (um pé de abacate) de proporções descomunais que banhava de sombra o enorme pomar de sua casa. E a preocupação não era mesmo com a sombra, mas temia que sua mãe fosse, distraidamente, buscar alguma coisa lá fora da casa, no pomar, e fosse atingida por algum abacate obediente à lei da gravidade, porque lei é lei e certamente um abacate não questionaria essas coisas de lei. Pensou como seria a vida da amiga e daquela velha senhora se tivessem em seu pomar um pé de jaca como aquele que conhecera, ou talvez maior, porque diziam os conhecedores que existiam pés muito maiores do que aquele que tivera o prazer e o espanto de conhecer.
Saiu daquela sombra assustadora e foi para a varanda cochilar e olhar o horizonte, que era olhando o horizonte que ele conseguia organizar melhor as suas idéias, e cochilando que conseguia fugir delas. Queria cochilar e fugir.
Deitara no meio da tarde e já era noite quando despertou do primeiro cochilo. Acordou com aquela vontade que ocupava toda a cavidade da sua boca. Aquele desejo incontrolável de tomar leite com café. Gostava muito de tomar leite com café e açúcar, porque sabia que poderia sentir distintamente o gosto de cada um dos elementos da composição. Do leite. Da doçura do açúcar. E do café, que não é solúvel no leite. Gostava de pensar que aquela cor no leite se dava exatamente porque o café não é solúvel no leite. Gostava dessa idéia de que leite e café não se misturam, jamais.
Enquanto bebia o leite quente e segurava o gole na boca para sentir o gosto do café, saiu para olhar a noite e percebeu que o seu dia fora afetado por alguma coisa mais intensa que uma jaca. Chegou a pensar que talvez realmente tivesse caído uma jaca em sua cabeça e que passara o dia a vagar inconsciente. Não havia como saber. Então buscou linha e anzol, catou iscas e foi pescar no riacho próximo de sua casa, mas tomou cuidado de não passar embaixo do pé de jaca. Enfim, nunca se sabe o que é que pode acontecer, principalmente quando o pé de jaca tem vida e vontade própria, ou segue a lei da gravidade.
* Conto revisado, publicado no Jornal Estilo - Cruz Alta/RS, em tempos idos.

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