sábado, 29 de maio de 2010

Para muito além do antibullying: poesia e (des)educação

Há mais ou menos três semanas, ao cruzar próximo a uma escola, no fim da tarde, deparei-me com um grupo de alunos com idades em torno de 9 e 10 anos, que se movimentava em bloco, acompanhando um menino que praguejava contra outro, chamando-o para a briga de socos e pontapés, usando ainda termos que em seu imaginário funcionavam como violentos torpedos contra o outro, tais como: veadinho, mariquinhas, gorducho, etc. O bloco veio em minha direção e estaquei entre o brigão e o outro, tentando apaziguar os ânimos. Enquanto isso, dois meninos que fomentavam a briga gritaram: “sai daí tia, tem que brigar sim, não tem nada disso de não brigar”... acho que foram os únicos que me viram, além do menino que estava tentando escapar da briga e aproveitou a minha barreira para escapulir para o outro lado da rua, já tendo perdido casaco e mochila... enquanto isso, o bloco inteiro se movimentou também para o outro lado da rua, onde foi dissolvido pela presença de dois adultos que buscavam crianças na escola, as quais estavam em meio ao bloco que se movimentava.
Desde então, andava querendo tramear este escrito, o que se juntou com eventos da semana, em que foram aventadas as ditas leis anti-bullying em nível estadual (RS) e municipal (Cruz Alta/RS)... o termo bullying deriva de bully, que significa fanfarrão, mata-mouros; capanga; tirano; brutal; insolente; e está relacionado, também, a bravata; ameaça; intimidação; dar trote... perguntava-me, noutro dia, porque será que toda essa violência vem aparecer exatamente na Escola?
Essa é uma questão sobre a qual não me aventurarei a falar hoje, mas gostaria de sublinhar que é muito triste perceber que a maioria dos educadores atua desfocada da dimensão humana da sua tarefa e das existências com que labutam (a própria e a dos alunos).
Quando legisladores se propõem à formulação de leis que subvertem o sentido daquilo que pretendem regulamentar, é no mínimo preocupante, fazendo-nos pensar que pouco entendem de gentes e de mundo!
A expressão, na Escola, da violência tipificada na intolerância, na opressão, no escárnio, no desrespeito, na discriminação, no preconceito, entre outros tipos, é fruto não do mero livre arbítrio de crianças e adolescentes, mas sim, do ideário em que estão planteadas nossas existências... um ideário que nos ensina a competir e não a ser solidário; a excluir e não propiciar a participação de todos; a oprimir e não a respeitar a liberdade; a pisar e escamotear a existência do outro, como forma de reafirmar nosso individualismo; a discriminar aquele que não segue os padrões dominantes e não a olhar o mundo com olhos não-normalizadores!
É esse ideário, indelevelmente pintado aqui, que produz essas práticas em que alguns se reafirmam pela violência, enquanto outros são apenas expectadores e fomentadores (estes também protagonizam a violência indiretamente) e doutra parte, resultam as vítimas que perdem, na grande maioria das situações, a capacidade de reação e de resistência, caindo, assim, em profundo estado de fragilização.
A tentativa de criminalizar ou normatizar essas situações não contribui em nada para sua compreensão e superação, ao contrário, garante assim, um estatuto tipificado e recortado da condicionalidade humana... não é demais lembrar, que essa é uma questão a ser trabalhada enquanto prática educativa, enquanto revisão das questões humanas e sociais, enquanto fator determinante na formação humana.
Só para tecermos uma comparação, essa lei teria um equivalente, se, por exemplo, as minorias excluídas do sistema social e educacional, reivindicassem a responsabilização criminal dos gestores que nada fizeram para que fossem criadas as condições teóricas, técnicas, humanas, sociais e políticas para o processo de discussão e de promoção da educação inclusiva.
Enfim, depois de ter postado um breve comentário sobre a dita lei, recebi vários email de parceiros de estudos e discussão, manifestando indignação com a estultice da mesma e, andava nessas reflexões, quando me ocorreu rever o filme espanhol “A Língua das Mariposas” (colarei, no final, um comentário sobre o filme), o qual começa exatamente com uma situação de aviltamento da dignidade de um menino que acaba de entrar na escola, sendo que o professor – um velho mestre chamado Don Gregório – conduz aquela e muitas outras situações de forma a transformar a intolerância no mais puro respeito humano, a vida em poesia e a existência no mais absoluto compromisso com as gentes e com o mundo.
Don Gregório, quando chega a primavera, leva seus alunos para aula em meio à natureza e lá lhes faz lembrar sobre o que falara com relação à língua das mariposas, que se parece com um tromba de elefante ou com uma mola de relógio, servindo para que as mariposas colham o néctar que lhes servem as flores em seus cálices, diz: “cheirando o néctar, a mariposa desenrola a língua e alcança o funda do cálice da flor”. Ensina seus alunos a apreciarem a vida guardada nos livros: “nos livros nossos sonhos se refugiam para não morrer de frio”. Mostra a um menino assustado com a finitude humana, que “o inferno não existe... ódio e crueldade é o que existe”. Quando se aposenta, apesar do olhar e da manifestação controladora do mais forte representante do capitalismo na comunidade em que vivem, mostra, quando o fascismo já tomava corpo na Espanha, que trabalha acreditando que “se uma só geração cresça livre”, tem certeza, “ninguém lhes tirará a liberdade!”. Ele não viu seu sonho feito vida, foi surrupiado de sua existência humana e poética logo no início da Guerra Civil Espanhola, levando no olhar as pedradas por mostrar aos alunos e às suas gentes, os sonhos guardados na poesia e nos livros, o néctar que mora no fundo do cálice das flores, as contradições presentes nas crenças cegas, o desapego presente na existência simples, e, acima, de tudo, a possibilidade de construírem práticas de liberdade. Ele fez isso tudo e quando o fascismo o enquadrou, foi levado de cabeça erguida, pois não teve que negar nada daquilo em que acreditava e com que encantava as gentes de sua comunidade.
Num dos email que recebi, foi-me feita a seguinte provocação: “neste momento leio suas ‘Rápidas Notas sobre o Vago Sentido do Nada’, e concordo com suas colocações. Estamos em tempos em que precisamos criar leis a fim de dar conta de posturas resultantes do próprio sistema. Como conduzir esse barco?”.
Espero que tenha conseguido expressar um pouco do que se pode pensar sobre essa questão. E digo, ainda, que essa é uma questão para muita discussão, a qual pode nos mostrar também o quão longe a Escola está de alcançar uma condição de gentidade para os mestres e os alunos... talvez tenhamos que mirar a vida com os olhos de Don Gregório, sabendo que se ajudarmos a construir pelo menos uma geração de gentes livres, o mundo nunca mais será o mesmo... com poesia e (des)educação!
E, para concluir, trago a poesia do espanhol Antonio Machado, que Don Gregório utiliza para semear idéias no imaginário de seus alunos, de “Extracto de Proverbios y cantares (XXIX)”: Caminante, son tus huellas/ el camino y nada más;// Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar.//Al andar se hace el camino,/ y al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar.// Caminante no hay camino/ sino estelas en la mar”.
ANEXO: “Um mestre à frente da descoberta do mundo”, de Karla Hansen
O filme "A Língua das Mariposas" conta a história de Moncho, um menino de 7 anos, em seu primeiro ano na escola. Na véspera do primeiro dia, crucial na vida de qualquer pessoa, Moncho não consegue dormir, atemorizado por que seu irmão mais velho lhe contou sobre professores que batem em alunos. Tímido e asmático, ele vive debaixo da saia da mãe superprotetora, numa pequena aldeia, no interior da Galícia, ao norte da Espanha, no ano que antecede a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Na manhã do grande dia, Moncho é apresentado a Don Gregório, o velho professor primário, que o recebe afetuosamente. Mas ao pedir que o novo aluno se apresente para a classe, os outros meninos chamam, em coro, "pardal", o apelido de Moncho. O susto é tão grande que o menino faz "xixi", de pé, diante do professor e de toda turma, e foge da escola, indo se esconder na floresta, onde fica até a noite chegar.
O filme, então, mostra a sensibilidade do velho mestre que vai à casa de Moncho pedir desculpas por tê-lo humilhado, mesmo que sem intenção, e, em conversa com a mãe do menino, descobre que ele tinha medo que o professor lhe batesse. Com isso, Don Gregório ganha a confiança de Moncho, que passa a ter com o mestre uma relação de admiração e amizade, por intermédio da qual se abrem as portas do conhecimento.
A escola, assim, se torna para Moncho uma fonte de prazer, pela descoberta de um mundo desconhecido, fora de seu ambiente familiar. Na companhia do amigo Roque, espia um casal de namorados e aprende sobre os mistérios do amor e do sexo. E, quando a primavera chega, Don Gregório leva os alunos para fora da sala de aula, ensinando-os a admirar a natureza e a explorar seus segredos. É também pelas mãos do mestre que Moncho descobre a magia da literatura, ao receber de presente o romance de aventura "A Ilha do Tesouro", de Robert Louis Stevenson. A amizade e a companhia permanente com Don Gregório faz que esse seja o grande ano de Moncho, marcado, ainda, por uma excursão com a banda de músicos da qual seu irmão faz parte.
A aprendizagem como fonte de prazer e de crescimento e a liberdade como função primeira da educação são, em síntese, as principais mensagens do filme espanhol. Mas, aos poucos, ao fundo começa a se desenhar o quadro social e político que definem a ascensão do fascismo na Espanha, na qual se aliaram a Igreja Católica, o Exército e o grande dono de terras contra a Frente Popular, formada pelos republicanos, pelos sindicatos, pelos partidos de esquerda e pelos que defendiam a democracia, entre os quais se encontrava Don Gregório.
A sombra do fascismo acabará por atingir a pequena população da aldeia e, mais profundamente, a vida de Moncho. Homens armados começam a perseguir e a prender os republicanos, comunistas ou, simplesmente, suspeitos de simpatizarem com as ideologias de esquerda, de tal modo que Moncho e sua família são levados de roldão pelo clima de terror e de delação impostos pela ditadura franquista, contrariando, assim, as lições de liberdade aprendidas com Don Gregório, seu grande mestre.

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