Aí vai a divulgação do escrito de Marcelo Carneiro da Cunha: DIREITOS JÁ
Aleluia, estimados leitores! Pois não é que o mundo deu um salto pra frente nessa semana? Enquanto todos ficavam ligados na reunião do Copom para aumentar os juros, ou no Flamengo x Corinthians pra ver quem estava mais fora de forma, com vitória por larga vantagem para Ronaldo, ou embasbacados pela revista Time ter colocado o nosso Lula como a maior personalidade de 2010 NO MUNDO; o STJ concedia a um casal o direito de adotar duas crianças. O que parece a coisa mais saudável, feliz e normal do mundo, a adoção de um filho, foi um momento épico, porque o feliz casal, que finalmente pode adotar os filhos com quem já vivia há sete anos, era formado por mamãe Luciana e mamãe Lidia, duas mães, nenhum pai, no sentido formal do termo.
Assim, já que o Legislativo e Executivo não ajudaram, o STJ fez a sua parte na remoção do entulho, e, agora, casais gays vão poder adotar uma criança.
Claro que no dia seguinte, um padre da CNBB (um especialista em sexualidade, não é mesmo?) e um pastor da Assembléia de Deus (especialista em coisa alguma, não é mesmo?) vieram declarar que sentem muita pena das criancinhas, que agora não vão mais poderem ser órfãs e solitárias, mas poderão ser adotadas por qualquer um com suficiente amor no coração, uma coisa terrível, não é mesmo?
Nada me parece mais maluco do que alegar um suposto conhecimento do que Deus disse sobre algo para justificar uma injustiça. Mas é exatamente isso que padres e pastores adoram fazer, para convencer pessoas a torturar os seus semelhantes. Tortura é crime, estimados leitores. Privar alguém de dormir é tortura e é ilegal. Privar alguém da sua liberdade de ir e vir também é crime. Proibir alguém de amar é o que, na sua opinião? Privar alguém de exercitar o direito de amar uma criança ao ponto de suspender a solidão dela pela duração da sua vida inteira, adotando-a e assumindo essa enorme responsabilidade, é o que mesmo?
Eu não sei o que os leitores sabem, mas eu conheci crianças em orfanatos, e posso garantir a vocês que elas não querem nada mais nessa vida do que o que quase todos os que me lêem devem ter a sorte de ter, que são, nada mais, nada menos, do que um pai, uma mãe, vários de cada, o que for, desde que ela possa chamar pelas palavras mágicas, "pai", "mãe", e se sinta cuidada e amada. Uma criança não dá a mínima para a sexualidade da mão que toca a sua testa se ela tiver febre, não está nem aí para o número de pais e mães que venha a ter, desde que ao menos um esteja por perto para a admirar quando ela acertar o gol, tirar uma boa nota em alguma prova, se mostrar uma boa criança, ou simplesmente a sua criança.
Alguns entre vocês podem se preocupar com os eventuais preconceitos que as crianças possam sofrer na escola, no clube, na serra ou no campo, por terem pais gays, e eu vou ter que concordar. Dada a quantidade de intolerância e burrice ainda presentes no nosso mundo, essa é uma real possibilidade e, sim, temos um problema. Mas comparem isso a uma vida solitária para uma criança sem pais ou mães, hetero ou gays, e onde chegamos? Qual o maior problema?
Preconceitos são parte da nossa humanidade. Submeter-se a eles é apenas uma das nossas piores fraquezas. Superá-los é uma prova da nossa capacidade de sermos maiores do que nós mesmos.
Nada me incomoda mais do que os preconceitos abastecidos com doses generosas de interpretações nada generosas de bíblias, ou qualquer outro manual de normas religiosas. Vocês talvez não saibam, mas padres e pastores já usaram os mesmos argumentos para justificar a discriminação contra os indígenas, contra as mulheres, contra os judeus, contra os negros. E eles estiveram errados SEMPRE! Hoje, quem aí vai defender a tese de que os indígenas não têm alma, mulheres não podem votar, ou de que os negros são escravos por natureza? Portanto, é óbvio que padres e pastores estão tão errados nesse caso quanto sempre estiveram nos outros, e o preconceito contra os gays é tão estúpido e grosseiro quanto os outros preconceitos foram, antes de serem eliminados do nosso conjunto de crenças pela nossa evolução como sociedade. E, se não bastasse o fato de eu, obviamente, estar certo agora como sempre estou, ainda existe o pequeno detalhe de que temos uma Constituição nesse país, e ela é claríssima quando diz que TODOS os cidadãos são iguais perante a lei.
Ué, todos quer dizer todos, ou alguma outra coisa que pastores e padres não compreendem direito? Todos são iguais. Todos podem casar, adotar, amar, se separar, cuidar dos pais e mães, ser gente, com todos os direitos preservados, e não sonegados. As pessoas têm o direito ao que a lei garante a todos, estimados leitores. E elas têm esse direito, não porque eu ache legal, ou porque eu não ache legal, mas porque sim. E negar esse direito é cruel, e criminoso.
Em um dos maiores livros do mundo, "As Aventuras de Huckleberry Finn", Huck é um menino de rua americano no século 19, que foge em uma jangada de sua aldeia na margem do rio Mississippi, e que, por acaso, ajuda um escravo a fugir junto. No entanto, ele começa a se sentir culpado. O pastor evangélico da sua aldeia passou anos insistindo que ajudar um escravo a fugir era um crime contra Deus, e que quem o cometesse iria para o inferno. Huck, como todo mundo naquela época, tinha muito, mas muito mesmo, medo do inferno.
E então Huck resolve enganar Jim, o escravo, entregando-o à polícia, na primeira cidadezinha que surgir. Mas, ao se aproximar da cidadezinha, Huck começa a lembrar de todas as coisas boas que já viu Jim fazer, começa a pensar no sujeito legal, muito legal, que Jim é. Jim é um amigo! E nesse momento Huck faz a escolha bela, redentora, que eleva o livro para o nível de grande literatura em que ele vive desde então: "Azar", diz Huck, para si mesmo. "Eu prefiro ir para o inferno".
A forma certa de ser divino é ser um bom humano com os demais humanos, estimados leitores, mesmo que isso seja exatamente o contrário do que dizem padres e pastores desumanos.
Pense e seja um Huck você também, porque o rio Mississippi passa sempre em frente à nossa casa. Basta desligar a escuridão e ligar a luz, coisa que qualquer um de nós, mas qualquer um mesmo, pode fazer, e é só fazer. Então, e é simples assim, faça.
30 de abril de 2010 - Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.
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