terça-feira, 11 de maio de 2010

De quê família falamos hoje?

Estou divulgando o texto-base (em movimento) para minha participação no FSEA 2010 - Fórum Social, Econômico e Ambiental, a realizar-se em Panambi/RS, nos dias 14, 15 e 16 de Maio de 2010 - http://www.fsea.com.br/.
Painel 2: Tema – Resgate da Família como Base da Sociedade Contemporânea
De quê família falamos hoje?¹

“O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra freqüentemente ‘ossificada’ por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança são reduzidas a sua mais pobre expressão...(...) É a relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra assim comprometida numa espécie geral de implosão(...) O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta(...)” (Félix Guattari)².

Sou do tempo em que se ensinava calar e que eu deveria, assim, aprender; em que não se podia cantar e nem o olhar dos olhos erguer; em que era proibido poetar, escrever e se alegrar; em que criança não se metia nas conversas dos mais velhos; em que criança devia trabalhar desde cedo e se um tempo sobrasse, lhe era concedido brincar; em que, quem não sabia ler as palavras dos livros, era analfabeto; em que espancamento, tapa, relhada e chinelada, significavam educação; em que, às gentes, não era dado pensar; em que a opressão era a única força em vigor... hoje já não calo e sei que posso mostrar que ninguém deve calar/ que ninguém deve calar, sossegar, aquietar, ancorar a vida no porto quieto do silêncio... hoje sei que as cores do mundo não são as cores que me ensinaram a ver... hoje sei que ali onde o som faz acorde, mora a possibilidade da canção, pois sei que podemos romper com as amarras que nos foram colocadas. Uma outra possibilidade de vida e de mundo, depende disso.
Digo isso, para trazer, inicialmente, um escrito produzido a partir da fala de uma pessoa sofrida/abandonada... é uma fala que sempre pulsa e faz pulsar meus pensamentos: “quando criança e até a adolescência, sofri toda a violência que minha mãe herdou de sua história de vida (filha de imigrantes alemães, economica, social e humanamente dilacerados). Naquele tempo de infância, materialmente nunca me faltou nada. Meu pai me bateu fisicamente somente duas vezes na vida... numa, por querer ficar morando com uma família com a qual eu me sentia acolhida e noutra, por ter me descuidado em minhas traquinagens e ter me acidentado quase que fatalmente... mas o silêncio do meu pai durante a vida, doeu tanto quanto as surras que levei de minha mãe.// Quando adolescente, moldei um sonho que iria pautar todos os instantes e todos os passos de minha vida: coloquei-me como ideal de vida, tornar-me um grande ser humano e não aquilo que estava se formatando para minha existência.// Queria ser uma grande pessoa: solidária, ética, justa, suave, fraterna, humana... algo que significasse GENTE”³.
Trabalho, cotidianamente, com pessoas que hoje sofrem psiquicamente por terem sido calcadas pelo abandono e pelo descuido dos adultos, vindas tanto de agrupamentos familiares tradicionais-conservadoras, quanto de novos formatos de agrupamentos familiares. Por isso minha fala vem marcada por essa questão, assim como, apresentei o relato acima, visto que penso que temos o dever de oferecer para as crianças e os adolescentes, não a dor que os faria passar a vida toda como seus reféns ou lutando para superá-la, mas sim, as condições de possibilidades para irem se constituindo, desde sempre, em grandes seres humanos!
Penso que somos, enquanto sujeitos, atravessados e produzidos pelas questões sociais, e é a referência que, enquanto comunidade/enquanto socius, mostramos aos nossos filhos, que ajudará a dar o rumo de suas vidas! Anoto, aqui, “que o desejo investe primeiramente em um campo ou formação social” e que “os investimentos sociais são primeiros em relação aos investimentos familiares, os quais derivam daqueles (...) que há uma determinação anterior à família no tocante ao investimento de desejo(...) a família é um corte ou um estado do campo social tomado em seu conjunto. A família seria apenas um cruzamento, uma conexão de rede e não um interior: antes de sermos membros de uma família, somos membros de uma formação social. Assim, a família não é determinante, mas determinada. Ela é um ponto de intersecção de comunicação do campo social. O investimento familiar constitui somente uma dependência ou uma aplicação dos investimentos inconscientes no campo social”4.
De quê família falamos hoje? Coloquei-me essa interrogação como ponto de perspectiva para este escrito-devir, pensando sobre qual seja o desenho de família ou de agrupamento-familiar a que nos referimos. Não tomo como referência a raiz da família nuclear, mas sim, o rizomático devir das novas formações familiares contemporâneas, portanto, acredito que não se trata de resgatar um modelo que é desenhado numa perspectiva de superioridade ou de cultura dominante, mas sim, de contemplarmos as novas possibilidades que se apresentam. E para dar o retrato desse pensamento, trago as formulações tecidas pelo anarco-pensador Hakim Bey, quando diz: “A família nuclear é a unidade básica da sociedade de consenso (...). A família nuclear, com suas conseqüentes ‘dores edipianas’, parece ter sido uma invenção neolítica, uma resposta à ‘revolução agrícola’ com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de caçadores/coletores é formado por cerca de cinqüenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura do bando é mantida por clãs dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas, sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as ‘repúblicas de crianças’ e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e as crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto – não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norte-americanos preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura).// Muitas forças estão trabalhando – de forma invisível – para dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a ‘estabilidade’ estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia, o ‘bando’ de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais fica evidente a armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade – mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial - do bando”5.
Pensar na exaustão de um dado modo de agrupamento familiar e na constituição dessas novas possibilidades que vemos cotidianamente se constituindo, implica em considerar que a sustentabilidade humana funda-se no princípio da valorização, antes de qualquer coisa, das condições humanas de vivência/ do existenciar a vida e não na conjugação de esforços para tornar mais vigoroso o sistema que faz vigorar sobre a vida e sobre as vidas, idéias e valores que desprezam as gentes. O sistema e o ideário capitalístico, que usurpa e corrói a vida, não vem de hoje, visto que já se iniciou quando o bicho-homem deixou de usufruir dos recursos da natureza e passou a explorá-los.
Onde quero chegar com isso? No ponto da questão do agrupamento familiar como condição de promoção da vida. Quando coloco o prefixo BIO na frente nas noções e dos conceitos que vigem sobre as existências, não estou seguindo um modismo acadêmico ou político/social, nem apenas subvertendo valores, mas sim, colocando a vida como condição básica do existenciar humano no mundo, portanto, proponho que falemos de agrupamentos BIO-familiares e do que possa nos mover para essas questões.
Não quero, com isso, propor fórmulas e nem parâmetros de pensamento ou reflexão, mas sim, tomar os elementos que temos assistido na vida das gentes e na vida das comunidades - os quais apontam a degradação do sistema que herdamos e perpetuamos - e, poder, a partir deles, desenhar o rabisco de uma outra possibilidade de vida e de mundo.
A construção de agrupamentos BIO-familiares depende da construção de BIO-existências, BIO-éticas, BIO-estéticas, BIO-políticas, entre muitas outras BIOS, e, para isso, é necessário que as gentes que emergem no mundo - que nascem e vivem -, possam ir se fazendo de uma outra forma, que não as únicas duas que são reconhecidas por suas linhas mais precisas. E quais são essas duas formas? Uma: a reafirmação permanente dos valores pautados pelo ideário capitalístico; outra: o existenciar da vida como condição de sobrevivência. As duas são produtoras de violência: uma, pela opressão e dominação, e, outra, pela necessidade de enfrentamento para que se possa re-sistir e existir... é essa condição que o sistema dominante reconhece efetivamente como violento – e não o que ele próprio faz imperar -, pois a força da reação e da resistência, coloca o princípio da vida de frente com a violência da opressão-dominação.
Hakim Bey, citando Renzo Novatore, nos mostra que sempre há de existir um sistema a vigir sobre nossas existências, ou seja, “Qualquer sociedade que você construir terá seus limites”6, mas quando pensamos e falamos em outras possibilidades de mundo e de existenciar o mundo, pressupõe, antes de mais nada, pensar em outras possibilidades de gentes... gentes fundeadas numa BIO-ética do cuidado de si e do cuidado do outro.
A BIO-ética do cuidado visa não a uma condição acomodatória dentro das normas dominantes, mas sim, à valorização do SER em detrimento do TER. A BIO-ética do cuidado requer que olhemos, que visemos essa outra possibilidade de gentes, de que falo... de gentes que não sejam exploratórias, predatórias, segregatórias, discriminatórias e opressivo-dominadoras, mas sim, cuidadoras, solidárias e libertárias... a BIO-ética do cuidado pressupõe a vida por excelência, como prática de liberdade.
Trago isso, para que não nos extraviemos da criança que nos habita... como já disse: para que as nossas crianças não tenham como marcas de vida, o sofrimento e a dor e que, assim, não tenham medo de viver... para sublinhar com muita tinta, que a vida não é só isso, não pode ser só isso: só tristeza, só crueza, só dureza, só verso sem rima, só letras jogadas ao vento, desprendidas das páginas ainda grudadas de livros antigos que aguardam para serem lidos. A vida não pode ser só isso!... para que possamos pensar em agrupamentos familiares que queiram garantir não uma normalização e um governo da vida, mas sim, o necessário, ou seja, a vida por excelência, enquanto prática de liberdade!
Para isso, cabe sublinhar a questão do desejo como aquilo que move as gentes e que as faz produzir um ou outro movimento existencial, humano ou social: “O desejo está relacionado às formas de existência e também aos códigos do Socius. Ele não tem por objeto pessoas ou coisas mas uma maneira de ser, e não pode ser definido com base nas noções de falta e carência. Numa concepção nietzschiana, o desejo é pensado como um efetivar-se, como uma força que internamente quer crescer e transbordar. Ele é desejo de si, crescimento.O desejo é desejo de uma forma de ser e de uma forma de relação ou forma de sociabilidade(...) O primado do campo social como termo de investimento do desejo define os estados pelos quais um sujeito passa, o que os autores chamam de devires, mas que podemos entender por metamorfoses(...) Para Deleuze e Guattari, a família não é a matriz das relações. O pai e a mãe e o eu se relacionam com os elementos da situação histórica e política: o soldado, o ladrão, o patrão. A família não é um microcosmo nem descentrada. (...) Os pais serão pensados como agentes na corrente de um processo que os transborda de todas as partes e que coloca o desejo em contato com uma realidade histórica e social”7.
O Socius, a sociabilidade, tomado por Deleuze e Guattari como efeito no campo do registro dos elementos presentes na relação entre desejo e formação social, é que determina os processos de produção da subjetividade, pois “Registrar é o mesmo que inscrever, distribuir e ‘referenciar’. E referenciar, aqui, se dá em relação aos códigos dessas formas de sociabilidade. Os códigos sociais moldam, soldam, articulam, ligam, combinam” e é o sujeito/ são as gentes que, atravessadas pelas coisas do mundo/ do socius, atravessam o socius e refazem as coisas do mundo... ou apenas as reafirmam!
Deixo a provocação para que possamos, enquanto nômades da existência, que não se limitam à territorialização da vida nos liames de uma pretensa superioridade dos acomodados-sedentários, nos desterritorializarmos e produzirmos a reterritorialização enquanto outra possibilidade de gentes, de agrupamento familiar e de mundo... desde que esse seja o nosso investimento e nosso desejo de pensarmos e produzirmos outras maneiras de viver, daqui em diante, sobre o planeta Terra!

1. Maria Luiza Diello – Psicóloga – Graduada em Psicologia, Especialista em Ciência Política e Mestre em Filosofia. Atuando profissionalmente na Secretaria Municipal de Saúde/ Cruz Alta/RS e em Espaço Privado.
2. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1990.
Impedida de citar a fonte.
3. Tomo, aqui, a leitura de Jairo Dias Carvalho, do anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, Em: CARVALHO, Jairo D. O anti-Édipo – O social e o desejo em Deleuze e Guattari. Em Revista Mente, Cérebro e Filosofia – N. 6. São Paulo: Duetto Editorial, 2007, p. 88-93.
4. BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001. – (Coleção Baderna), p. 23-4.
5. Em: BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001. – (Coleção Baderna), p. 82.
6. CARVALHO, Jairo D. O anti-Édipo – O social e o desejo em Deleuze e Guattari. Em Revista Mente, Cérebro e Filosofia – N. 6. São Paulo: Duetto Editorial, 2007, p. 88-93.
7. CARVALHO, Jairo D. O anti-Édipo – O social e o desejo em Deleuze e Guattari. Em Revista Mente, Cérebro e Filosofia – N. 6. São Paulo: Duetto Editorial, 2007, p. 88-93.

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