sexta-feira, 30 de abril de 2010

Contos Desbotados

SAGU COM VINHO*
Era uma hora da manhã quando começou a pensar naquelas coisas, mas tinha a nítida sensação de que pensava naquilo há muito tempo. Primeiro perdeu o sono no exato instante em que se preparava para dormir. Depois sentiu fome. Uma fome desesperadora. Queria comer tudo o que viesse a sua frente, e ao mesmo tempo não conseguia situar nada que pudesse acabar com aquilo.
Na verdade não era fome, mas uma vontade incontrolável de comer alguma que pudesse aplacar aquela ansiedade. Pensou que talvez estivesse ressuscitando o seu já superado alcoolismo. Buscou a garrafa de vinagre e cheirou, mas não sentiu nenhum barato. Procurou, alucinada, a garrafa de álcool, aspirou profundamente, mas também não deu nada. Vasculhou umas bebidas guardadas e pescou uma garrafa de vinho, tinto, seco, bem ao seu gosto (diga-se, de passagem, seu antigo gosto), sacou a rolha e deixou para sentir na taça o aroma daquela bebida aveludada. Quase entrou em êxtase, mas não sentiu nem vontade, nem necessidade de beber. Mas teve certeza de que tinha a ver com vinho aquele seu desejo indecifrável.
Já amanhecia quando abriu mais uma vez a geladeira –que estava abarrotada- e repassou tudo o que havia ali dentro. Por sorte nada provocou a sua compulsão. Nada do que ali estava serviria para aplacar sua imensa necessidade de preencher aquele vazio, aquele buracão que se abriu num repente em seu imaginário, e que parecia, mesmo, que era um buraco aberto em seu próprio corpo/ em seu corpo real.
Não lembrava como havia começado aquele desespero. Pensou em procurar um grupo de apoio. Um grupo de auto-ajuda que pudesse dar conta daquele seu desespero. Mas como haveria de procurar um grupo se não sabia ao menos de que é que se tratava aquele seu estado. Até pegou a Lista Telefônica e se pôs a procurar um psicólogo, um psicanalista ou um psiquiatra que pudesse lhe ajudar... um daqueles que já anunciam na publicidade quais são os problemas subjetivos que atendem e tratam (obesidade, alcoolismo, depressão, ansiedade, compulsão, tristeza mórbida, etc., etc.), mas deixou a lista de lado, porque não sabia do que é que se tratava o seu problema.
Foi procurar outras coisas para fazer, ocupou-se e acabou esquecendo, adormecido, aquele monstro que já de manhãzinha, antes do dia clarear, havia despertado dentro dela. Naquele dia receberia visitas para o almoço. O companheiro retornaria mais cedo porque se comprometera em preparar alguma coisa para a sobremesa, pois os amigos que viriam para o almoço não conseguiam apreciar com tranqüilidade a refeição principal se não tivessem a certeza da iminência do doce e do café passado em coador de pano.
Quando ele chegou, avisou que havia trazido vinho e sagu. Faria sagu com vinho, que rendia mais. Quando ouviu isso, seu corpo se transformou, sua cabeça rodopiou e ela teve a sensação de que havia encontrado o que tanto procurava. Sagu com vinho. Ficou contente por estar com os preparativos para o almoço já adiantados, assim poderia acompanhá-lo na preparação do sagu com vinho. E fez isso em estado de êxtase, já pensando na degustação daquela massa gelatinosa, suspirando com a mistura do aroma do vinho com o cravo e a canela. Depois aguardou, ansiosamente, o momento de comer o doce.
Almoçou pouco, que era para deixar espaço para o que viria depois. Serviu a primeira porção e foi comer sozinha nos fundos da casa, para que ninguém percebesse o que é que se passava com ela. Comeu devagarzinho, sentindo cada porção que colocava na boca. Quando concluiu, já estava mais calma e retornou à mesa com aquela expressão de saciedade, mas ainda serviu tantas vezes pôde, daquilo que podia preencher o seu vazio.
Passado o almoço, começou a sentir necessidade de comer sagu com vinho. No começo o companheiro atendia ao seu pedido de que preparasse o doce, pensando que fosse um desejo bobo, talvez vermes (poderia ser uma solitária autoritária e devoradora), ou talvez uma gravidez ainda não constatada, mas depois percebeu que ultrapassava todos os limites de normalidade. Tinha que comer sagu durante a noite (acordava até três vezes para comer sagu com vinho durante a noite). Tinha que comer sagu com vinho no café da manhã. No lanche das dez. No almoço. No café da tarde. No jantar. Antes de dormir. Nos intervalos entre essas refeições. E ele, que não gostava lá tanto assim de sagu com vinho, às vezes, para acompanhar, tomava uma taça de vinho, às vezes duas, às vezes a garrafa inteira.
Chegou um momento em que sua vida se tornara sagu com vinho. O companheiro já estava assustado... se ele não preparava o doce, ela dava um jeito de conseguir que alguém o fizesse, até que um dia decidiu ter uma conversa séria com ela. Ou se tratava daquele estado de sagu com vinho, ou não teriam mais como manterem o relacionamento.
Ela decidiu que como não teria como encontrar um grupo de auto-ajuda que pudesse lhe auxiliar na superação de seu estado sagu com vinho, montaria o seu próprio grupo. Chamaria alguns profissionais que pudessem dar um suporte técnico ao grupo e depois chamaria para a participação todos aqueles que sofressem por sagu com vinho ou por outra compulsão assemelhada. Sagu com leite. Ou raspa de arroz. Ou pele de galinha. Ou sorvete. Ou café doce. Ou leite condensado. Ou charutinho de chocolate. Ou salada de batata com maionese. Ou tantas outras coisas.
Enfim, nunca descobriu o que é que provocava aquele vazio imenso, mas já estava conseguindo, por mais vinte e quatro horas, passar sem sagu com vinho.
* Escrito publicado no Jornal Estilo - Cruz Alta/RS, em tempos idos.

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