sábado, 17 de abril de 2010

Contos Desbotados

UMA FORMIGA* - Por um hábito bobo de correr os olhos e o olhar pela calcinha quando ia ao banheiro, deparou-se, naquela tarde quente de domingo, assim que sentou no vaso sanitário, com uma formiguinha que andava lentamente pelo forro de algodão macio e confortável que tem por função proteger os lábios inferiores de mazelas do meio externo, e logo ali encontrava-se a formiguinha.
Estava lá a formiguinha, tão tranqüila que parecia andar no carreirinho que faz caminho entre o alimento colhido e o formigueiro; pequenina, tranqüila e serena, apenas extraviada da correição.
Retardou suas ocupações sanitárias pensando que não haveria lugar mais insólito para encontrar uma formiga; pensou em contar para os amigos sobre o inusitado encontro, mas recuou quando entendeu que talvez pudessem não acreditar, ou que transformariam suas partes pudendas em engraçadas histórias -e o receio não se dava pelas ditas partes, mas pela pobre formiguinha; esqueceu da possibilidade de divulgação e pôs-se a tentar entender como é que chegara e o que é que fizera permanecer ali aquela formiga.
Pensou nas mais diversas possibilidades: no lugar úmido e aquecido; no açúcar presente em sua urina diabética; no doce de abóbora que comera em abundância, misturado ao leite morno; nos desejos secretos daquele ser tão pequenininho; que talvez não fosse somente uma e as demais formiguinhas já tivessem adentrado aquela caverna vulcânica que tantas lavas expele quando entra em erupção; no mel que poderia estar atraindo aquelas doceiras.
Recordou de uma situação vivida na infância, em que tentava acordar no meio da noite porque tinha a sensação de que sua cama estivesse tomada por formigas; era inverno e deixou-se dominar pela preguiça de despertar, mas a força da realidade que estava acontecendo fez com que acordasse e corresse acender a lâmpada e chamar sua mãe, quando, com pavor, constatou que a sua cama, as outras camas e várias outras partes da casa estavam tomadas por formigas que formavam as correições e que ficaram por vários dias instaladas pela casa.
Divagou muito nessa recordação das freqüentes invasões de formigas na casa de seus pais; pensou nos diferentes tipos de formigas e nas simpatias várias que aprendeu a fazer com um benzedor que era bom de reza e de mandingas, para dar conta dos despropósitos daquelas danadinhas que insistiam em invadir e recolher o que bem entendessem; tinha até uma simpatia muito individualista que acabava por mandar as formigas embora para as cercanias dos vizinhos, e isso a fez pensar que talvez aquela solitária formiguinha estivesse vindo, por meios de simpatias alheias, de algum outro recôndito lugar. Arrepiou-se toda com essa suposição.
Lembrou da fantasia que alimenta há anos de poder sentar nua sobre um formigueiro e ir aos poucos se sentindo formigar, amortecer, desfalecer e ter todos os orgasmos contínuos possíveis, mas agora, naquele instante, não daria porque era uma só formiguinha perdida no algodão do forro da calcinha. Levantou-se e vestiu com cuidado a calcinha. Nunca se sabe no que é que pode dar esses fenômenos da natureza, mesmo que seja somente uma formiguinha. Aprendeu cedo, já na infância, que não existe formiga sozinha, pois se apareceu uma, pode-se ter certeza de que logo surgirão as demais.
* Escrito publicado, em tempos idos, no Jornal Estilo - Cruz Alta/RS.

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